Vários grupos iam sair de Guwahati, a capital do Nordeste Indiano, para distintos itinerários por diferentes províncias da região. Na noite anterior, John, o guia para o estado de Arunachal Pradesh informou-nos que, devido à exigência do nosso percurso apontado ao Sela Pass, tínhamos que sair do hotel às 5 da manhã, três horas antes das restantes comitivas.
Já andávamos com um bom défice de sono. Contemplámo-nos um ao outro numa partilha de pânico contido mas, à hora marcada, demos entrada no átrio e cumprimentámos pela primeira vez os quatro outros participantes da viagem: Annapurna, inglesa; Stephen e James dos E.U.A. e Peter, canadiano.
Às 6h da manhã continuávamos no lobby à espera não sabíamos bem do quê. Uma vez que o pequeno-almoço ia abrir, aproveitámos para o tomar. Só as 7h é que John deu sinal de vida. Explica que um dos motoristas não tinha aparecido e que tinha ido procurá-lo. Por fim, às 7h15, metemo-nos nos carros e partimos.
Serpenteamos pela vastidão urbana de Guwahati. Por pouco tempo. Todos precisamos de comprar cartões SIM. Nativo de Tawang, John estima que resolveria a questão pelo caminho. Mas, de cada vez que pára, dizem-lhe nas lojas que não conseguem. Paramos mais uma, duas, três, quatro vezes.
À quarta, numa lojinha mal-amanhada enfiada numa quase cave, dois jovens assameses lá aceitam a tarefa. Mas levam o seu tempo. Eram quatro os telefones dos estrangeiros, e quatro as activações necessárias, cada qual com intermináveis procedimentos.
Só nisto, foram-se quarenta minutos. Enquanto esperávamos, fotografámos a acção na barbearia logo ao lado e uma boa série de moradores das casas em redor.
Com os telefones operacionais, voltámos à estrada. Perdemos os arredores de Guwahati de vista e, aos poucos, ingressámos na planura aluvial e tropical do estado de Assam.
Preenchiam-na arrozais sem fim entrecortados por aldeias e lugarejos. Uns, hindus, outros muçulmanos. Muitos deles que as autoridades de Delhi considera habitados por imigrantes bangladeshis de várias gerações e que quer legalizar ou expulsar, uma polémica que sem têm revelado o principal barril de pólvora desta região.
Cruzamos o grande rio Bramaputra. Avançamos paralelos ao Kameng, um afluente vindo dos Himalaias que se entrega ao Bramaputra na perpendicular. Aproximamo-nos mais e mais do sopé tropical da cordilheira.
Os arrozais dão lugar a grandes plantações do famoso chá Assam. Vemos mulheres de saris coloridos trabalharem entre as fileiras do vegetal sob o olhar controlador dos capatazes. Outros funcionários pedalam pasteleiras ao longo da vereda de terra vertebral da plantação.
O exotismo daquela visão e a fama quase extraplanetária do chá Assam deixam-nos a todos em pulgas. Rogamos a John para pararmos. O cicerone responde-nos que tínhamos começado com duas horas de atraso e que o percurso até Dirang – onde iríamos dormir – era longo e complicado. Não nos fez à vontade então. No regresso, numa reacção algo sindicalista de fotógrafos, obrigámo-lo mesmo a ceder.
Prosseguimos pela Chariduar – Tawang Road, curva contra curva, a seguinte tão ou mais apertada que a anterior. Ascendemos ao longo da margem do Kameng que acompanhamos por incontáveis vertentes selvagens dos Himalaias.
De início, vemo-las forradas de pequenas palmas, ráfias, de sub-florestas de bambu, colónias de bananeiras, de uma bem mais prolífica fauna dos trópicos. Salta-nos à vista como se tornam menos densas, viçosas e luxuriantes à medida que a altitude aumenta.
Numa das inúmeras ladeiras que teve que vencer, um dos Toyotas Innova usados de que a companhia de John (como tantas outras da região) se orgulhava dá de si. Tivemos que que nos deter para que arrefecesse.
A paragem permitiu um convívio espontâneo na natureza por que vínhamos há muito a ansiar.
Meia hora depois, mecânica funcional – não propriamente recuperada – ascendemos mais umas boas centenas de metros dos Himalaias.
Abandonamos as vertentes íngremes tropicais e o Kamenga. Passamos a seguir o caudal amplo e o vale escavado por sucessivos anos e monções e inundações do Tenga, outro colosso fluvial destas paragens na iminência de Bondila.
Atrasos, paragens para Sim Cards e avarias, tudo junto, o tempo perdido tinha feito John esticar a corda da viagem a limites inconcebíveis. Tudo bem que em cada pausa forçada aproveitávamos para beber milktea ou mordiscar um qualquer petisco. Fosse como fosse, às quatro da tarde não tínhamos ainda almoçado.
John encostou num nenhures qualquer de beira da estrada entre Bondilla e Dirang, a 2km de Kamalanchan – assim ditava um marco quilométrico. Ali nos concedeu a refeição e descanso por que já desesperávamos.
O estabelecimento revelou-se pitoresco, enfiado num barraco de tarja pintada por dentro em tons de azul, com mesas cobertas de linóleos com design despretensioso.
Uma jovem mãe e uma filha tomavam conta do negócio a partir do balcão à entrada, cercadas de garrafas de refrigerantes, pacotes de aperitivos, de caixas de ovos, de noodles instantâneos e ainda de grandes termos com chá e café. Acima das duas e da mercancia, uma fotografia emoldourada do Dalai Lama abençoava-lhes o negócio e as vidas.
Com a fome com que tínhamos chegado, todos nos limitámos a responder que sim à sugestão meio imposta de John de comermos dal bahts, o mais clássico dos pratos populares indianos, que combina arroz, lentilhas e outros vegetais.
Para Annapurna Mellor, a inglesa loura, branquinha de visual frágil mas muito aventureira que seguia no nosso carro, estava perfeito.
“Bom, chamo-me assim aparentemente porque os meus pais me conceberam durante o Annapurna Circuit, pelo menos foi o que me explicaram”. Pelo seu nome mas também pela atracção e pelo amor que sentia pela Ásia e pelo budismo em particular, Annapurna era vegetariana e uma apreciadora inveterada da gastronomia indiana, como da nepalesa e da tibetana.
Já fazia frio. Enquanto esperávamos, sentámo-nos uns breves minutos à conversa em volta de uma fogueira. Dali, para mal dos pecados de todos os outros, percebemos que Peter e James mantinham a mesma postura de divas ofendidas com que tinham partido de Guwahati. E que pouco mais faziam que se queixarem.
Os dal bhats chegaram. Cada qual coroado com a sua papad dourada e estaladiça. Para gáudio de John, sumiram-se num ápice.
Chegamos a Dirang às nove da noite, seis horas mais tarde do que havia sido programado.
Às onze, entramos em modo de recarregamento de baterias. As nossas e as da tralha electrónica toda que nos vemos forçados a transportar nas viagens.
O repouso dura o que dura. Voltamos a despertar antes das galinhas. Após o pequeno-almoço madrugador, John e os dois motoristas tratam de trocar o Toyota Innova problemático por um jipe.
Nós, aproveitamos a trégua rodoviária para explorar um pouco de Dirang. Acabamos seduzidos sobretudo pelo garrido religioso das suas ruas decoradas com sucessivos estendais de bandeiras tibetanas de oração que o vento faz tremelicar e que reluzem contra o sol já a espreitar sobre as montanhas.
Mal John surge com o jipe, voltamos à estrada. Desta feita, para variar, detemo-nos menos de 20km depois.
John planeara uma paragem estratégica no Nyukmadung War Memorial, erguido no local exacto de uma batalha do conflito sino-indiano de 1962, quando forças do exército chinês se infiltraram na Índia, devido a divergências que desde então se arrastam quanto à definição das fronteiras entre os dois países na região.
Durante os anos subsequentes, os nativos preservaram o costume de empilhar pedras em homenagem dos soldados indianos abatidos na batalha. Mais tarde, seria erguido o memorial que presenciávamos, sem qualquer dúvida budista, acessível por um pórtico e uma escadaria que conduzem a uma estupa no centro de uma profusão intrincada e colorida de bandeiras de oração.
Não seria o último memorial de guerra do trajecto. Muito menos seria a sua única visão com génese bélica.
Estávamos a meros 45km do Sela Pass, ponto mais alto do itinerário, tanto devido aos 4170m cimeiros a que se situa mas também pelo significado religioso do lugar.
Em boa parte dessa distância, a NH13 ascende a bom ritmo e contorce-se em dezenas de meandros, alguns deles tão apertados que nos dão a sensação de estarmos a retroceder. A esta altitude, escasseia já a vegetação. Alguns iaques cruzados com vacas alimentam-se da pouca que encontram.
Mas o que mais salta à vista, é a profusão de acampamentos militares e de paióis camuflados e disseminados pelos vales e encostas abaixo e até acima da estrada. E a quantidade de caravanas e camiões militares que nos obrigam a encostar à berma e ultrapassam a grande velocidade.
Casa assaltada, trancas à porta. Tal como testemunha há muito o memorial de Nyukmadung, em Novembro de 1962, foi exactamente pelo desfiladeiro de Sela que as forças chinesas invadiram e surpreenderam as indianas.
Com a fronteira sino-indiana do noroeste dos Himalaias ainda em disputa, a Índia não só não baixou a sua guarda como a reforçou de modo exponencial, tanto aquém como para lá do Sela Pass.
Como consequência, este desfiladeiro sagrado para os budistas-tibetanos que acreditam na sacralidade dispersa de mais de cem lagos da zona, permanece há muito cercado de tendas, material militar e soldados camuflados.
E, no entanto, o Sela Pass, em si, mantém-se um cenário à parte. Sopra um vento furibundo quando o alcançamos. Faz esvoaçar e estica sobre a estrada o emaranhado de bandeiras budistas de oração a partir do pórtico de passagem.
Mal sai do carro, John instala lá uma bandeira sua em jeito de agradecimento por a viagem até ali ter sido abençoada.
O Sela Pass marca uma espécie de linha de vida para boa parte dos habitantes do estado de Arunachal Pradesh, já que é a única passagem entre a região de Tawang ao resto da Índia.
A ventania frigida mantém dois soldados para ali destacados no conforto do edifício de acolhimento dos visitantes. Mais que meros soldados, estão de plantão no bar e são eles que nos servem milkteas providenciais. Voltamos ao exterior e apreciamos por mais algum tempo a beleza excêntrica do pórtico fustigado pelo vento e por alguma neve levantada do solo.
De quando em quando, viajantes de carro ou até de mota estacionam e fazem-se fotografar de frente para o portal. Depois, seguem o seu rumo. Uns na direççao de Dirang. Outros, na de Tawang. Foi nesta que continuámos.
Cruzamos o pórtico a pé. Do lado de lá, encontramos um dos 100 lagos sagrados do budismo tibetano, coberto de uma camada de gelo fina e envolto de um solo amarelo ensopado e endurecido o Inverno.
John conhecia uma senhora proprietária de uma casa de chá do outro lado da estrada que contornava o lago, Dima, assim se chamava a dona. Entrou, saudou-a com sentimento, pediu um milktea e ficaram uns minutos à conversa.
Parecia estar-se melhor naquela teahouse que no carro e milkteas nunca são demais. De acordo, seguimos todos o exemplo do guia. Ao entrar, a Sara e Dima apercebem-se que vestem blusões para o frio praticamente iguais.
A Sara aponta-o e, ao sorrir, deixa a senhora à vontade para a reacção que lhe aprouvesse. Acabam as duas a rir à gargalhada enquanto as fotografo lado a lado.
Estávamos para lá do desfiladeiro de Sela. Quem cruza Sela quer chegar a Tawang. Só nos faltavam 70 km. Umas derradeiras meras três horas de caminho.
Os autores agradecem o apoio na realização deste artigo às seguintes entidades: Embaixada da Índia em Lisboa; Ministry of Tourism, Government of India.