Os Alísios, sempre os Alísios.
Não há como lhes fugir em Cabo Verde. Na travessia de São Vicente para Santo Antão, as vagas que geravam fizeram o ferry baloiçar como uma casca de noz. No voo entre Santiago e São Nicolau, sentimo-los na pele, em forma de arrepios, de cada vez que o avião da TACV saltava ao sabor das suas rajadas.
A aproximação final ao Aeroporto de Preguiça, em particular, revelou-se uma curta-metragem de verdadeiro terror aeronáutico. À medida que se alinhava com a direcção da pista, o vento incidia no avião lateralizado. Fá-lo descair sem aviso.
Uma vez atrás da outra, para sobressalto dos passageiros, como nós, estreantes naquela rota e que começámos a duvidar se a aeronave não se estatelaria sobre a pista, em vez de nela pousar. Por fim, o piloto concede um derradeiro grande salto ao Embraer. Completa a travagem num ápice e com uma estabilidade que nos devolve a confiança.
Enquanto aguardamos pela bagagem, conversa puxa conversa, desabafamos com um funcionário do aeroporto. Este trata de nos confirmar o extremismo do voo. “Pois amigos, por norma, cancelam-nos quando registam 40 nós. Hoje, estavam 36 mas não me admira que tenham apanhado umas rajadas superiores a 40.”
As malas chegam. Em boa hora. Mesmo em modo humorístico, a confissão tinha-nos tirado a vontade de apurarmos mais. Sabíamos já, em vez de o estimarmos, o quanto os Alísios contribuíam para a aspereza da vida de São Nicolau.
Do aeroporto, cumprimos uma curta viagem para a Ribeira Brava, a maior povoação da ilha. Lá nos instalamos. No que restava do dia, resolvemos a logística necessária à volta que tínhamos planeada.
Tal como tinha acontecido em Santo Antão, alugamos uma pick up robusta. Depois, almoçamos cachupa pobre no bar de um italiano expatriado e remediado na ilha.
O Encanto Tom de Pastel da Ribeira Brava
Recuperados das atribulações do voo, revigorados, deambulamos à descoberta dos recantos e encantos da Ribeira Brava.
Como o deixa perceber o seu nome, após o declínio de Preguiça, a povoação antes protagonista, adaptou-se aos meandros intermédios de uma ribeira que, em tempo de chuvas, flui com grande fúria pelas vertentes do ponto mais elevado da ilha, o Monte Gordo (1312m) abaixo.
Estávamos a meses dessa monção do Atlântico. Tanto a Ribeira Brava como a povoação viviam uma paz abençoada. Abençoada a dobrar ou não fosse a agora cidade a sede orgulhosa da diocese de Cabo Verde.
Apontamos à praça central. Do fundo da ruela que descemos escutamos o crioulo dos taxistas à conversa junto às suas Hiaces geminadas.
E, do lado oposto, ao sol que incide na igreja amarela, castanha e branca do Rosário, um outro núcleo de anciãos, diríamos que reformados, com tempo para se perderem nos assuntos do dia.
A essa hora encalorada, o jardim que se estende da meia-lua empedrada à frente à igreja, entre o velho pelourinho e a meia-encosta a que se ajeitaram a biblioteca, pertencia apenas à ave pernalta de pedra que ali coroa a fonte seca.
Espreitamos mercearias familiares clássicas, com mobiliário de madeira do antigo, bem sólido, e uma panóplia de embalagens e produtos coloridos, boa parte deles importados de Portugal e, como tal, familiares.
Toda essa tarde, continuamos a deambular sobre a calçada cinzenta da povoação, ruela após ruela, tranquilizados pela constância multicolor do casario pastel.
O Mote Musical Escutado na “Banana Secca”
Com a inevitabilidade da noite, do cansaço e da última fome série do dia, refugiamo-nos num restaurante “Banana Secca”. Lá devoramos nova cachupa enriquecida e uma ervilhada, adocicadas por pontches fortes e pelas inevitáveis mornas, coladeiras, funanás e outros ritmos das ilhas que aquecem Cabo Verde e o mundo.
Às tantas, soa “Sodade”. Uma versão distinta da que a diva dos pés descalços Cesária Évora eternizou. A letra volta a enquadrar o tema em São Nicolau. Estávamos no coração urbano da ilha. Ansiosos por a percorrermos em busca da quintessência de mar, de lava e de amor ao próximo que tanto custou a tantos sanicolauenses a deixar.
O sábado amanhece solarengo. Por uma ou duas das suas horas matinais, dá-nos a impressão que os Alísios se haviam mudado para outras paragens. É sol de pouca dura.
Com a pick up pronta a pegar, saímos para a ilha.
A Subida Monumental às Alturas do Monte Gordo
A inevitável ascensão para o cimo do vale em que expandiu a Ribeira Brava, desvenda-nos o todo do seu casario, acomodado na base de um cerro, quase meseta, com uma vertente preenchida por arbustos viçosos.
Invertemos rumo para um alto bem mais elevado: o do Cachaço.
Quando chegamos ao adro terroso da Capela Nª Srª Monte Cintinha, o vendaval aliseu ressuscita, mais poderoso do que alguma vez o tínhamos sentido.
Aventuramo-nos sobre o promontório rochoso e pejado de agaves nas imediações da igrejinha, de onde, quanto mais à frente, mais desimpedida se revelava sobre o talvegue nessa altura verdejante que descia para a quase cidade de que tínhamos partido.
As rajadas sacodem-nos como se nos quisessem impedir de fotografar tamanha beleza. Com cuidados redobrados e uma ínfima parte de inconsciência, estabilizamos os pés e as pernas em saliências das rochas.
O suficiente para cumprirmos a missão. Voltamos ao caminho.
Reverenciamos a exuberância geológica do Parque Natural Monte Gordo e os dragoeiros imponentes do vale da Fajã.
Surpreendemo-nos com o duo de coqueiros tresmalhado, mais abaixo, sobre uma profusão de milheiral e outros cultivos, contra o recorte caprichoso da cumeada em redor da Covoada.
A Caminho da Costa Norte
Por muito que tivéssemos viajado e subido, continuávamos nas imediações da Ribeira Brava. Com a manhã a sumir-se na névoa que irrigava aquele reduto virado a norte que era o mais luxuriante de São Nicolau, vemo-nos forçados a prosseguir no périplo, rumo à costa oeste, ao invés, estival a um grau que a tornava virtualmente desértica.
Dos minifúndios verdes e férteis, descemos por uma das várias cristas áridas que sulcam o ocidente. Vários quilómetros dessa vastidão poeirenta e ocre depois, avistamos o casario cinzento-cimento e branco do Tarrafal, estendido por uma longa beira-Atlântico, a encerrar um declive demasiado irregular para ser urbanizado.
A estrada faz-nos atravessar o casario de cima abaixo. Leva-nos à Avenida Assis Cadório e à Baia do Tarrafal de que faz de marginal.
Detemo-nos, seduzidos pela frota garrida de barcos de pesca, uns em doca seca a poucos metros do mar, outros ancorados sobre á água quase espelho, mais de lago que de mar, do oceano.
Estamos nessa contemplação quando um súbito frenesim piscatório toma conta da enseada.
Tarrafal. Festa Interrompida por um Cardume Passageiro
Relembramos que é sábado. Sobre a hora de almoço, os jovens pescadores do Tarrafal confraternizavam numa festa bem regada, a ter lugar do lado de lá da avenida, entre conversa, petiscos e danças descomprometidas. A pândega evoluía a bom ritmo quando o mar diante os convoca para o trabalho.
Malgrado a diversão, dois ou três deles avistam um cardume a fervilhar e a brilhar acima do azul da baía. Com as suas vidas dependentes da quantidade de peixe, não se fazem de rogados.
Correm para uma grande rede verde, aos poucos, ajudados por alguns miúdos determinados a comprovar a sua utilidade, enrolam-na bem enrolada. E depositam-na na popa do “Viviano” um dos barcos mais à mão.
Esta preparação toma-lhes um bom quarto de hora. Só que ao contrário do que desejavam, o cardume está de passagem. Nesse lapso, veem-no afastar-se para alto mar.
O suficiente para justificar o regresso à festança em detrimento da pescaria.
Nem todos o fazem de imediato. A nossa inesperada presença e a chegada de um outro barco do mar suscita momentos de convívio com alguns elementos mais novos, que posam em grupo sobre o amontoado da rede e nos exibem peixes-voadores recém-pescados e acrobacias amortecidas pela areia.
A Génese Piscatória do Tarrafal
Desta feita, o peixe fugiu às redes. Foi, todavia, a pesca que colocou o Tarrafal no mapa de São Nicolau. Durante o século XIX, a enseada tranquila a povoação tornou-se um ancoradouro de navios baleeiros. Mais tarde, foi complementada com uma unidade de processamento de peixe.
Essas estruturas e os empregos a que deram origem estiveram na base da promoção a um estatuto equivalente ao da Ribeira Brava, mesmo se com quase metade da população.
Prosseguimos a circundar a ilha, no sentido contrário aos ponteiros, pela orla marinha a que não chegavam os veios geológicos imponentes das vertentes. Passamos a Ponta do Portinho, a Ribeira das Pedras e o farol velho, manchado pelo tempo, do Barril. A estrada flecte para norte.
Logo, curva para o interior, na direcção do âmago mais húmido da ilha que tínhamos cruzado após a subida da Ribeira Brava.
A vastidão que percorríamos mantinha-se ressequida, forrada por uma palha quase rasa que dourava as abas à nossa direita. Embrenhamo-nos na quase elipse que percorríamos no mapa.
Top de Matinho, Uma Expressão Deslumbrante da Orografia de São Nicolau
A determinada altura, a trajectória desvenda-nos uma floresta íngreme de acácias e arbustos afins. E, muito acima, a visão de dois picos aguçados, lado a lado, como irmãos.
No processo de os circundarmos, avistamos um casario distante, disperso em mais que um núcleo, parte no sopé do duo de montes, outra parte, mais acima.
Sem aviso, a calçada negra põe-nos de frente com um pórtico enquadrado na perfeição com o tal pico duplo, Top de Matinho, informam-nos mais tarde que assim se chamava.
Pilares feitos de quadrados de basalto, a sustentarem uma trave dotada de um painel ferrugento. Uma clave de sol do mesmo material decorava o pilar direito.
Apesar de a ferrugem ter invadido as letras do painel superior, conseguíamos decifrar “Terra di Sodad”.
Sentimentos à parte, mesmo já algo distantes da beira-mar, estávamos à entrada de Praia Branca, a maior aldeia do noroeste de São Nicolau. Interrompemos a marcha para o fotografarmos.
No processo, passa um nativo daquelas paragens. Curioso com o afazer dos forasteiros, aborda-nos. “Ficou bonito, não ficou? Vocês sabem porque é que isso tá aí, certo?”
Praia Branca: a Terra di Sodade e da Sua Controvérsia
Cesária Évora cantou “Sodade” até à sua morte e à fama eterna da canção. Desde 1991 que a autoria do tema se mantinha como pertença da dupla de músicos Amândio Cabral e Luís Morais.
Assim foi até que, em 2002, Armando Zeferino Soares surgiu a reclamar a criação do tema, apoiado pelo músico Paulino Vieira.
Mesmo se em épocas distintas, tanto Armando Zeferino Soares como Paulino Vieira nasceram em Praia Branca, a povoação deslumbrante que tínhamos por diante. Orgulhosa do mérito de Zeferino Soares, que faleceu em Abril 2007, com 77 anos, e de ter sido o berço de “Sodade”, Praia Branca ergueu o pórtico evocativo e comemorativo “Terra di Sodad”.
Mas como nasceu “Sodade”? Recuemos até à década de 50, em plena era salazarista das colónias do Ultramar, era frequente os caboverdianos necessitados migrarem para São Tomé e Príncipe onde encontravam trabalho nas roças de cacau e café.
Uma vez para lá mudados, muitos deles ficaram para sempre e integram uma parte substancial da população santomense. Foi neste contexto que Armando Zeferino Soares compôs “Sodade”.
Corria o ano de 1954. Sem grandes alternativas e alguma esperança, quatro sanicolauenses: José Nascimento Firmino, José da Cruz Gomes e o casal Mário Soares e Maria Francisca Soares constituíram o grupo pioneiro de migrantes de São Nicolau destinados às ilhas do Equador.
Por essa altura, era tradição os conterrâneos que ficavam despedirem-se com música dos que partiam. A letra de “Sodade” traduz a dor de os ver partir sem se saber se alguma vez se voltariam a ver.
Com o passar dos anos e das audições, a genuinidade e a intensidade das emoções da partida e da migração de São Nicolau fizeram de “Sodade” o hino à emigração cabo-verdiana.