A alternativa iria revelar-se um improviso rodoviário sinuoso e custoso, como vários outros em que, nos dias que já levávamos de deambulação por Creta, nos tínhamos metido.
Optamos, assim, pelo caminho mais fácil da auto-estrada grega 90, mais conhecida por VOAK, a via suprema da ilha, que percorre a sua costa norte e de que partem incontáveis estradas secundárias que servem outros tantos lugares para sul.
Em plena Kolpos Kissamou, a Baía de Kissamos, desviamos para uma delas, a Epar.Od. Kaloudianon-Chrisoskalitissas.
Ainda no seu início, a montra insuflável de uma loja deixa-nos a impressão de que estamos no bom caminho. Preenche-a uma formação de boias garridas, de flamingos, cisnes brancos e até unicórnios.
Acima da placa destacada do edifício, um letreiro informa a morada e contactos da loja. Em grego, e a azul e branco, as cores da bandeira helénica, para que não restem dúvidas quanto ao patriotismo do negócio. Dissimulado atrás das boias, um painel de um verde quase igual ao da fachada, versa, em inglês “Going to the Sea”.
Estrada Kaloudianon-Chrisoskalitissas Abaixo, Rumo à Garganta de Topolia
Dali para baixo, quase não tínhamos como nos equivocarmos. De volta às nações e seus alfabetos, foi o que fizeram os donos de uma banca de produtos rurais, uma de tantas que servem a região de Kissamos, sobretudo no fim da Primavera e Verão, quando a fértil Creta se torna ainda mais prolífica.
Desta feita a branco, vermelho e verde, uma tabuleta promovia TraNditional Products, assim mesmo, com um N desnecessário, um erro irrisório se tivermos em conta o quanto o alfabeto grego nos conseguia desorientar.
Devemos, acima de tudo, vangloriar a diversidade e a qualidade de tudo o que sai dos terrenos agrícolas e pequenas granjas da região de Kissamos: os queijos e carnes fumadas, azeite, as compotas, rakomelo (raki com mel) e, o expoente dos expoentes, o famoso mel de tomilho que não tardarmos a encontrar, em distintos miradouros sobre a garganta de Topolia.
Distração após distração, damos connosco à sua entrada. Estacionamos junto a um destes mirantes, no sentido contrário ao que seguíamos, com vista sobre as profundezas do desfiladeiro.
Dedicamo-nos a apreciar os penhascos rochosos por diante e um casal de grandes águias-douradas que, tudo indicava, pairavam em redor de um ninho no cimo da falésia.
Águias Douradas, Cabras kri kri e a Moda Cretense de Vestir
Um vendedor da banca aproxima-se e aborda-nos, num inglês com algum sotaque helénico: “Compreendo que as águias vos mereçam toda a atenção. Connosco é a mesma coisa. Aqui, por estes lados, estamos no território das cabras kri kri (cabras-de-creta). E, acreditem ou não, estas águias têm força para apanharem os cabritos mais pequenos e os levarem para os ninhos. Já não é a primeira vez, nem a segunda que o testemunhamos. Aliás, já aconteceu camponeses daqui lá irem tentar resgatar cabras deles. Querem ir espreitar o ninho? Se quiserem, levo-vos lá e fazem fotos incríveis!”
Confrontado com a nossa escusa, Savvas – assim se chamava o interlocutor – direcciona-nos para a montra do seu mel e apresenta-nos ao amigo Giorgos Papantonakis. Este, deslumbra-nos de imediato. Giorgos traz vestes tradicionais da zona, camisa negra de que pende um lenço a terminar num X de pernas díspares.
Veste ainda calças de um cinzento-claro, do mesmo tom do lenço, enfiadas numas botas de cano alto que lhe ficavam logo abaixo do joelho. Giorgos segurava ainda um cajado de madeira retorcida. E mantem uma barba e bigode arruivados que combinavam com o conjunto, tão genuíno como Creta se podia revelar.
Como se não bastasse, não falava inglês.
De quando em quando, esboçava um esforço para o fazer. Mas seu o discurso tombava logo para o helénico e obrigava Savvas a vir em seu socorro. “Ele está a perguntar se querem ver o bode dele” transmite-nos o tradutor.
Curiosos, anuímos. Giorgos, olha para um pequeno curral abaixo do muro que nos separava do fundo da garganta. Ouvimo-lo chamar “Yero! Yero!” Num ápice, um enorme bode lança as patas dianteiras sobre o muro, encavalita-se na direcção do dono e beija-lhe a face.
Giorgos pega no cajado. Sem sequer o termos que sugerir, segura a barbicha negra do animal e compõe uma produção caprina-cretense que nos tira do sério. Fotografamos o inesperado duo. Logo, Giorgos remete a cabra para os seus aposentos. Savvas retoma o discurso. “Tem quatro anos. Já viram bem o tamanho?? Incrível não é?”
Despedimo-nos. Prosseguimos pela garganta de Topolia abaixo, uns poucos quilómetros, apenas, os suficientes para atingirmos Kythira.
A Visita Incontornável à Gruta Agia Sofia
Já nesta povoação, um grande sinal castanho à direita da estrada indica a gruta de Agia Sofia, e o início ventoso dos cento e cinquenta degraus que lhe dão acesso.
Vencemos a escadaria imposta à falésia, entre figueiras bravas e outras árvores que renovavam o aroma inconfundível do estio cretense. Mais para o alto, certas aberturas revelavam-nos o aperto do desfiladeiro para norte. E como, para dela se livrar, a estrada ziguezagueava em apuros, numa das subidas mais íngremes do percurso.
No cimo da escadaria, já dentro da caverna, cruzamo-nos com um funcionário solitário, sentado a uma mesa com vista para uma galeria de estalagmites e estalactites dispostas por diante. O funcionário levanta a cabeça. Contempla-nos com olhar de toupeira, detrás de uns óculos com lentes fundo de garrafa.
Saúda-nos com um “kalispéra” contido e deixa-nos à vontade para explorarmos a sacralidade lúgubre e ortodoxa do santuário, também conhecido como Sabedoria de Deus, de acordo com o ícone trazido de um templo de Constantinopla por combatentes cretenses.
Num recanto da gruta, uma simples parede e um telhado coroado por um campanário com uma cruz de pedra e uma estrela eléctrica compõem uma capela.
Lá dentro, encontramos uma área exclusiva aos sacerdotes, delimitada por um biombo preenchido com um sortido de imagens iconográficas de Cristo, de Nossa Senhora, de anjos e afins, assentes num dourado que a luz natural que ali se aventurava e a de algumas lâmpadas faziam resplandecer.
Em redor, um grande cadeirão de madeira e vários outros ícones alinhados sobre um muro baixo completavam a ortodoxia grega da gruta.
Malgrado a sua importância histórica e religiosa, no tempo que lá passámos, fomos os únicos visitantes. Não nos demorámos.
Por altura da Taverna Oi Myloi Iliakis Michael, tínhamos deixado a garganta de Topolia para trás.
Prosseguimos pela sua sequência, o desfiladeiro longo, se bem que menos apertado e profundo do rio Potamos. Mesmo diminuído pela secura do Verão, o rio entregou-se ao Mediterrâneo na baía de Ormos Stómio. Nós, flectimos para sul, rumo aos confins sudoeste de Creta.
Avistamos Elafonisi do cimo de um ponto sobranceiro da estrada, junto a um restaurante que, com justiça posicional e etimológica, se intitulava Panorama.
Dali, vemos uma meio ilha meio península estender-se pelo azulão do mar adentro, separada de terra apenas por uma lagoa de águas rasas e, como tal, bem mais claras, de um gradiente translúcido de ciano e esmeralda.
Apesar de distante das principais cidades do norte da ilha – Chania, Iráklio, Retimo – Elafonisi tornou-se um dos domínios litorais reverenciados de Creta.
Frequentam-na milhares de cretenses, outros gregos e estrangeiros, muitos dos quais alugam casas de campo e de praia nos fundos da ilha.
A comprová-lo, quando descemos para o nível do mar, damos com um parque de estacionamento improvisado entre as árvores à pinha.
Àquela hora, a maré estava tão baixa quanto possível. Mantinha a descoberto o istmo anfíbio que separava a ilha de Elafonisi da grande Creta e que, em simultâneo, dava para duas praias opostas.
A virada a oriente preservava um mar quase digno desse nome, menos raso, mesmo se exigia várias dezenas de passos para nos subir à cintura.
Não obstante a superficialidade e imobilidade do Mediterrâneo, as autoridades gregas levavam a sério as suas responsabilidades. Uma torre de vigia destacada bem acima das colónias de chapéus de palha vigiava os movimentos dos banhistas.
Estava identificada a vermelho, como “Lifeguard” mas, de maneira a evidenciar a helenicidade daquele domínio, ostentava uma bandeira azul e branca listada a ondular ao vento.
À sombra concedida pelo cimo da estrutura, um jovem salva-vidas mantinha-se no seu posto, não propriamente a postos. “Tu, com este mar, chegas a ter alguma coisa que fazer? atiramos, em jeito de brincadeira, de maneira a estabelecermos conversa. Giorgis surpreende-se com a abordagem.
“Olá! Olhem que não é bem como vocês pensam. O mês passado morreu aqui uma senhora estrangeira. Claro que não teve a ver com ondas ou correntes. Foi vítima de um ataque de epilepsia e ninguém reparou a tempo. Eu estava de folga”.
“De onde são vocês? De Portugal? Ai, tão feliz que eu fui por lá. Fiz um Erasmus inteiro em Lisboa, sabiam? O mais difícil, ainda foi estudar, não preciso de explicar porquê, certo?” e pisca-nos o olho com ar malandro. “Subam. Tirem umas fotos cá de cima! O meu turno está no fim. Eu vou andando. Assim até ficam com mais espaço”.
Durante uns bons dez minutos, aproveitamos a benesse. De volta á areia, caminhamos até ao solo permanente da ilha de Elafonisi, uma reserva natural protegida das multidões que esconde mini-praias deliciosas.
Exploramos as suas dunas. Admiramos o Mediterrâneo imaculado daquele sul remoto, estendido até uma baía recortada a leste, no sopé das montanhas que escondiam a vila piscatória, hoje mais estância de Verão que outra coisa, de Gialos.
Até o paraíso que nos cercava preservava o seu passado macabro.
Como acontece em tantas outras partes da pátria helénica, tinha-o originado o conflito que há séculos opõe a Grécia à Turquia e vice-versa.
Em Abril de 1824, em plena expansão do Império Otomano, centenas de habitantes gregos destas partes abrigaram-se das incursões inimigas. Por azar, as tropas turcas decidiram aquartelar-se nas imediações. Como se não bastasse, um dos seus cavalos fugiu. Na comoção gerada, o animal acabou por revelar o esconderijo dos cretenses.
Reza a história que, entre 650 a 850 gregos, boa parte foram mortos, e os sobreviventes levados para o Egipto, onde se viram vendidos como escravos.
Uma placa no cimo de Elafonisi assinala a tragédia e a eterna contenda turco-helénica, hoje, mais acirrada que nunca, pela disputa dos tesouros do Mediterrâneo, os minerais, não os balneares.
A riqueza de Elafonisi, vivemo-la e louvámo-la em paz. Até que o sol se sumiu para os lados da Sicília, de Malta de Gozo e nos ditou o regresso à menos longínqua Chania.