É Domingo de manhã cedo. Tbilissi está deserta.
Viajamos nos bancos de trás de um Lada Niva que flui pelas suas avenidas largas, interrompido apenas por um ou dois semáforos inconvenientes. À frente, seguem Apo, ao volante, e Tamara Giorgadze, com quem falamos em castelhano.
Chegamos num ápice à entrada Mtskheta, uma das cidades mais antigas da Geórgia, situada na confluência de dois dos grandes rios da nação, o Mtkvari e o afluente Aragvi. Ignoramo-la por uns dias mais. Prosseguimos até às imediações do campo de refugiados Tserovani.
Foi neste campo que o governo de Tbilissi instalou os habitantes georgianos que abandonaram os seus lares na Ossétia do Sul quando se acendeu o conflito militar que opôs a Geórgia, nação natal de Josef Stalin e os separatistas ossetas eslavos, apoiados pela Rússia.
A E-60 corta a 90 graus para oeste.
Transforma-se numa auto-estrada sofisticada e cruza a maior parte do país até ao Mar Negro. Nós, trocamo-la pela bem mais antiga e verdejante E-117, conhecida como a Estrada Militar da Geórgia. Esta via avança contra o fluxo do rio Aragvi pela rota histórica de retorno de comerciantes e invasores oriundos do lado de lá do Cáucaso.
É de tal forma antiga que Strabo a mencionou na sua Geographica.
Progredimos para norte, em direcção às montanhas do Cáucaso e à Rússia.
Sucedem-se bancas e pequenos negócios de berma repletos de fruta outonal e outros víveres. Até que nos internamos num desfiladeiro que estreita o acesso à grande cordilheira que se diz separar a Europa da Ásia.
O cenário torna-se inóspito, ressequido pelo vento e pelo frio. Alguns quilómetros para diante, encharcam-no as águas frígidas do reservatório de Zhinvali, sobrevoadas por uma névoa que filtra a luz solar ansiosa por aquecer a terra e sublima a atmosfera.
Uma descida íngreme conduz-nos ao lugar em que o Araqvi se ramifica e se entrega ao lago. Em simultâneo, desvenda um castelo que nos parece saído de um conto de encantar.
Tínhamos chegado a Ananuri. “A ideia era pararmos aqui no regresso.” adianta-se Tamara – ou Tamo, como preferia que a tratássemos – ao perceber a nossa inquietação.
E, rende-se, de imediato, quando a lembramos que só por milagre encontraríamos um ambiente tão mágico como aquele, isto, se ainda voltássemos de dia. Aproveitamos o acordo.
Exploramos e fotografamos o castelo, as margens do reservatório e a estranha ponte negra que se estendia de um lado ao outro de um braço de rio lamacento.
Do século XIII ao XVIII, foi aquele o assento fortificado da dinastia feudal Araqvi de que o rio tomou nome. Nesse período, a fortaleza foi palco de inúmeras batalhas. Por fim, em 1739, os seus senhores foram massacrados por um clã rival. Apesar de incendiada, a fortaleza manteve-se de pé.
A UNESCO tarda em lhe atribuir o estatuto de Património Mundial, devido a alterações na estrutura causadas pela formação do reservatório. Assim como a conhecêramos, resistiria para sempre nas nossas mentes uma Ananuri resplandecente que suplantava o que alguma vez tínhamos esperado. Satisfeitos, retomámos a viagem.
A altitude aumentou e a neve não tardou a tomar conta da paisagem e da estrada. Fazia um frio de rachar. Uma temperatura semelhante à das relações entre a Geórgia e a Rússia após a guerra que travaram de 7 a 12 de Agosto de 2008 e que, nos dias que correm, continua a causar danos.
Apo ainda sente a comoção do conflito e faz questão de nos explicar: ”durante anos a fio, as autoridades russas baniram por completo a entrada de cidadãos e produtos georgianos, principalmente a nossa água mineral e o vinho”.
Até à guerra, exportávamos quase 80% para a Rússia.
Hoje, nunca sabemos o que vai ou não passar e os produtos que passam fluem para norte da fronteira a conta-gotas, de acordo com a predisposição dos guardas que se habituaram a lucrar com a aflição dos camionistas.”
O que admirávamos, incrédulos, era uma fila interminável de camiões, sobretudo arménios e russos estacionados na berma da estrada; os seus condutores entregues a conversas repetidas ou a tarefas que se esforçavam por diversificar.
A sequência de TIRs era tão longa que desistimos de lhe tentar prever o fim. “Têm ideia de por quantos camiões passámos”, pergunta-nos Apo que, até então, conduzia em silêncio. “Eu sei quantos. Quando vou a Kazbegi gosto de os contar.
Estavam ali 184 camiões. Mas, até à Rússia, ainda vão aparecer muitos mais.”
Detemo-nos numa estação de serviço à entrada de Gudauri, a estância de neve por excelência da região. Tamo fala ao telemóvel por algum tempo. Transmite-nos complicações de última hora.
Nevara imenso na noite anterior. As autoridades cortaram, por estar gelada, a secção Gudauri-Gobi, uma das mais traiçoeiras da Estrada Militar da Geórgia, enfiada num grande vale em que, devido à sua configuração, grande parte do asfalto ficava à sombra.
Além deste vale, em particular, também um caminho às alturas de Deus e de Kazbegi teria ficado intransponível ou, pelo menos, para os pneus e condições oferecidas pelo Lada Niva em que seguíamos. Tamo conferencia com Apo e faz chamadas atrás de chamadas para Tbilissi e para Kazbegi.
Esperamos quase uma hora naquela estação de serviço. Pelo meio, tentamos obter boas novas de polícias e autoridades do parque que por lá paravam.
Meia-hora depois dessa hora, é Tamo quem as transmite, mais animada:” OK, parece que já estão a abrir a estrada. Isso era o mais importante. Vamos até Kazbegi, depois lá vemos o resto.”
Retomamos a viagem. Não tarda, voltamos ter a visão surreal de novas filas de camiões, tão ou mais extensas que as anteriores, provavelmente atrasados em simultâneo pelos procedimentos da aduana russa de Zemo-Larsi e pelo congelamento da estrada.
Ao chegarmos a Kazbegi – ou a Stepantsminda como pretendem as autoridades georgianas que seja conhecida – Tamo já tinha o imbróglio local resolvido. “Vamos passar para um outro veículo, OK?”
Apresenta-nos Xvicha, o novo condutor que, sem mais demoras, nos leva à sua carrinha estilo Hiace artilhada.
Acima de tudo, imperava que ascendêssemos dos 1740 metros da povoação aos 2170 da Igreja da Santa Trindade que dali vislumbrávamos como que suspensa.
Devíamos cumpri-lo e regressar a tempo de evitar a frigidez do fim da tarde que nos poderia bloquear tanto no cimo da igreja como em qualquer trecho montanhoso do regresso a Tbilissi. Mesmo assim, ainda nos detemos no Monumento Gudari, que celebra a amizade entre a Geórgia e a Rússia.
A essa data, seriamente desactualizado.
Xvicha inaugura o caminho por ruelas apertadas de Gergeti, a aldeia a oeste do rio Terek. Fá-lo entre casas de campo com inspiração de isbas soviéticas e desgaste a condizer. Logo, livra-se do casario e mete-se por uma estrada de encosta, apertada, serpenteante e subsumida na floresta.
Seria provavelmente de terra batida mas nunca o poderíamos saber tal era a quantidade de neve acumulada nas suas bermas e sobre o solo da floresta e o gelo entretanto picotado que cobria a superfície da via e que transformava a ramagem marginal da vegetação em estranhos candelabros brancos.
Xvicha e a carrinha pareciam mover-se no seu ambiente predilecto. O condutor já levava vários anos a ganhar a vida com aquele percurso.
Não só não receava os resvalares inesperados, como os usava para apressar a locomoção, seguro da tracção adicional conferida pelas correntes nas rodas traseiras.
Entretínhamo-nos com este rali de montanha quando um meandro da estrada nos desvendou o cume altivo do monte Kazbegi (o terceiro da Geórgia e sétimo da cordilheira do Cáucaso) a libertar laivos de névoa contra o azulão do céu.
Daí, até atingirmos o planalto que acolheu a Igreja da Santa Trindade, decorreram apenas alguns minutos.
Detectámos a silhueta escura do templo ao longe, bem definida contra a vertente branca das montanhas opostas ao monte Kazbegi.
Xvicha seguiu o trilho deixado pela anterior passagem de carrinhas e jipes, cavado numa altura impressionante de neve. Atingimos a base da igreja ao mesmo tempo que um outro Lada Niva, esse, ao contrário do de Apo, preparado e equipado para a rudeza da ascensão.
Vencemos uma derradeira escadaria, entramos no precinto e caminhamos em redor do edifício secular, espantados com o isolamento a que foi votado nas alturas.
Também com a negrura espartana da sua arquitectura, eventualmente mais apurada que a maior parte das muitas igrejas que tínhamos visitado no Cáucaso, admitimos que devido ao contraste com a alvura da neve.
Tamo explica-nos que vivem 6 a 8 monges na igreja. No tempo que lá permanecemos, só vemos um deles passar, esquivo e de feições fechadas condizentes com o visual do seu lar espiritual.
As suspeições e intrigas anti-religiosas da era soviética terão contribuído para aquela postura comum entre os monges. Nessas décadas, os serviços religiosos estavam proibidos mas a Igreja da Santa Trindade não deixou de atrair visitantes.
Séculos antes, também servira para esconder relíquias preciosas trazidas de Mtskheta em tempos de perigo.
A mais importante foi a Cruz de Santa Nino, uma mulher que, no século IV d.C. introduziu a Geórgia ao Cristianismo já prolífico na Arménia e é, hoje, a padroeira da nação.
O interior da igreja revela-se escuro quanto escuro podia ser. Ainda abrimos a porta pesada para melhor o apreciarmos, mas o vento que de imediato nos fustigava e a outros visitantes frustrou-nos.
Virámos a atenção para o exterior: para as montanhas caucasianas majestosas e enregeladas em redor, para a torre do sino independente do edifício principal e para o casario de Gergeti e Kazbegi.
Dali o contemplamos, disposto de forma geométrica e coberto de neve, no fundo da Garganta de Dariali que, dali se estendia por 18 km até à problemática fronteira Russo-Georgiana.
A descida de volta à povoação evoluiu atribulada. Não pelo tarde que se fazia ou por qualquer desleixo de Xvicha.
Originaram a desventura uma série de turistas que estimaram que, por viajarem em modelos invejáveis, os seus veículos também eram invencíveis.
No tempo que passámos no cimo, o gelo em certos trechos da estrada tinha-se reconstituído. Foi preciso um desses jipes quase resvalar encosta abaixo e um sermão pragmático de Xvicha para aquela embaixada surreal da teimosia se render.
Acabámos por acolher o transbordo da esposa alemã e dos dois filhos desse condutor georgiano. A senhora pouco ou nada se atreveu a dizer enquanto o marido fazia regressar o jipe, a passo de caracol e a empatar a vida de alguns guias/condutores residentes.
Às três da tarde, despedimo-nos do guia de Kazbegi, sentámo-nos à mesa de um restaurante local e entregámo-nos a um dos banquetes com que os georgianos prendam os seus convidados.
O repasto incluiu mais algumas maravilhas da gastronomia da nação.
Só uma hora depois, e a grande esforço, conseguimos regressar à Estrada Militar da Geórgia e à sua capital.