Da primeira vez que alvejámos o Forte de São Sebastião, encontrámo-lo inacessível.
A hora de fecho eram as 4h30 da tarde, demasiado cedo para o que íamos a contar.
Barrados do interior do também Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, demos connosco intrigados com o entorno estranho, ao mesmo tempo, familiar do monumento.
A fortaleza ocupa um recorte arenoso da ponta que encerra a Baía de Ana Chaves, a sul.
Antecede-o a longa Av. Marginal 12 de Julho, baptizada como comemoração vial da independência de 1975, do arquipélago-colónia.
No caso de São Tomé e Príncipe, são inúmeros, estão por todo o lado, os laços que unem a nação do equador à antiga Metrópole.
O Museu Colonial Fortificado do Forte de São Sebastião
A avenida estende-se entre vivendas coloniais, à sombra de árvores africanas, e o oceano Atlântico. Sobre uma curva que a orienta para ocidente, deixa-nos junto a uma instalação histórica.
Ali mesmo, no centro de um relvado desnivelado, destaca-se um obelisco, erguido para comemorar a visita de 1970 do presidente da República português a São Tomé.
Na ocasião, Américo Tomás desembarcou do navio “Príncipe Perfeito”. A ilha do Príncipe, já a tinha visitado seis anos antes.
Logo em frente, três estátuas alvas contemplam o forte.
Representam os navegadores e colonizadores João de Santarém, Pêro Escobar e João de Paiva.
Até à independência, essas e outras estátuas de figuras e personalidades portuguesas, ocupavam lugares de destaque em praças e jardins da ilha de São Tomé.
Em 1975, as autoridades santomenses reuniram várias delas no museu. Como testemunhámos, o obelisco e as estátuas estão à solta.
Têm a companhia da Rolotte – Beira Mar, uma expressão de design da marca Sagres que mais parece uma caixa de guardanapos de papel, com coqueiros a fazer de antenas.
Sempre que se confirmava a falta de clientes, o rapaz do balcão deixava o interior lúgubre e claustrofóbico do bar.
Quando uma amiga o visita, ficam a tagarelar na sombra de Pêro Escobar.
De planta quadrangular, o forte está envolto ou de areia ou de grandes calhaus basálticos, alguns, polidos e arredondados pelas idas-e-voltas das marés e das vagas.
Àquela hora, está vigente a baixa-mar.
Um grupo de estudantes, homologados pelos uniformes, vagueia, para lá e para cá de uma árvore que a esterilidade e salinidade do solo tinham torturado e desfolhado.
Contornamos o forte, sem pressas, atentos às sucessivas expressões da história e vida santomense.
Regressados ao ponto de partida do obelisco, flectimos para o início da Baía Ana Chaves, onde nos cruzamos com pequenos pelotões de mais estudantes de saída da escola.
Da Beira Atlântico ao Mercado Municipal Frenético de São Tomé
Caminhamos por caminhar, ao longo da enseada.
Chegados aos pontões no prolongamento da Praça da Independência, com a alfândega rosada e palmeiras imperiais em fundo, damos com uma inesperada faina.
No cimo do pontão, munidas de grandes baldes e alguidares, várias mulheres aguardavam e pareciam disputar o peixe recém-pescado, ainda a bordo de lanchas elementares.
A pescaria não parecia satisfazer a procura, nem resolver a impaciência crescente das peixeiras.
Cortamos para o coração da cidade, pela Travessa do Pelourinho. Pouco tempo depois, confrontamo-nos com a verdadeira génese do problema.
O Mercado Municipal estava à pinha, de compradores interessados em produtos frescos. As varinas sabiam o dinheiro que aquela procura lhes podia render. Sentiam-se frustradas a condizer.
O mercado de São Tomé comprova-se todo um mundo africano e frenético de cor e de formas, sobretudo no exterior, onde a luz natural se mantém intacta.
Faz resplandecer os tons da fruta e dos vegetais dos trópicos, os padrões exuberantes das roupas das vendedoras e os de alguns chapéus de sol que lhe concedem um refúgio do braseiro da tarde.
O Mercado Municipal de São Tomé é um domínio matriarcal.
Compõem-no senhoras e raparigas autoritárias que antipatizam com as incursões fotográficas dos visitantes.
Não esperávamos que, mesmo favorecidos pela língua portuguesa em comum, e pela experiência que temos a lidar com tais casos, nos víssemos a braços com tamanha resistência.
Como não esperávamos encontrar um supermercado vizinho, denominado Pingo Doxi e com imagem de marca a emular a da empresa original.
Uma Caminhada ao Ritmo de São Tomé
Salvo umas poucas excepções, os trabalhadores homens mais próximos ocupam uma área vasta da Av. Conceição, ao lado.
São os condutores de uma frota amarela de táxis, de pequenos autocarros e de carrinhas estilo Hiace que, como os muitos mototáxis, percorrem a cidade e a ligam as povoações mais próximas.
Com tanto na capital ainda por descobrir, prosseguimos a pé.
Metemo-nos pela Av. da Independência que calcorreamos até identificarmos o rio ladeado de vegetação que dá o nome à avenida contígua, a da Água Grande.
Por esta última, de novo na direcção do oceano, cruzamos o desafogo urbano em frente à Catedral de São Tomé e ao Palácio Presencial rosa-claro, também conhecido como Palácio do Povo mas de que, por razões de protocolo e segurança, o povo se mantém distante.
Vislumbramos a coreografia dos guardas presidenciais, de uniforme verde-tropa e capacetes e botas brancas, abaixo da bandeira esvoaçante da nação.
Sem muito mais para ali apreciarmos que a sua retomada imobilidade, enfraquecidos de tanto andar, voltamos a cruzar o Água Grande apontados à grelha de edifícios coloniais das ruas com nomes luso-africanos e africanos de Patrice Lumumba, de Angola e de Moçambique.
Detém-nos, por breves momentos, o encanto azul-rosa e juvenil do Salão de Beleza “Moda Ideal”.
O Bar Xico’s e uma Peixeira que a História deixou na ilha de São Tomé
Sentimos os físicos já num farrapo. É com alívio que esbarramos com o Xico’s Café, o autointitulado “sabor de Portugal em São Tomé”, gerido por um luso que se mudou de Sintra.
À data, havia já uma década a viver em São Tomé, como uma espécie de elo entra a ex-Metrópole e o deslumbrante refúgio tropical.
Instalamo-nos numa mesa no topo, entretidos com a acção gastronómica e convival abaixo e com o degustar dos petiscos meio portugueses, meio africanos que pedimos.
À saída, vendedoras de rua impingem-nos fruta colorida.
Pelo menos até que a persistência fotográfica com que respondemos ao repto as cansa e demove.
Passa por elas uma outra mulher. Tem uma face que nos parece portuguesa e uma pele muito dourada pelo sol equatorial. Traja uma capulana de padrões quentes, abaixo de um top cor-de-rosa.
Transporta à cabeça um alguidar cheio de peixe, trazido do pontão onde já tínhamos estado.
Uma conversa curta faz-nos perceber que não se sentia à vontade com a atenção que dedicávamos à sua diferença face aos convencionais cidadãos santomenses.
Percebíamos, no entanto, que um qualquer capricho da história a teria separado dos mais de quatro mil residentes coloniais que, durante a década de 70, abandonaram o arquipélago rumo à metrópole.
Os Retornados de Angola e a “Cidade do Tchiloli”
Na mesma altura em que muitas centenas de santomenses de então davam entrada nas ilhas do Equador, foragidos da instabilidade político-militar pós-independência de Angola.
Intuíamos que, consequência de um destes fluxos urgentes tinha ficado semi-desfasada em São Tomé. E que, objectivas de visitantes curiosos à parte, vivia bem com a sua realidade.
As senhoras da fruta partilham fofocas. Mandam as bocas bem-dispostas, quase tão bem-intencionadas.
Quando reviramos as objectivas para a sua montra de bananas, mangas, papaias, maracujás e até algum cacau fornecido. por alguma roça, agarram em capulanas soltas e tapam-se por completo.
Nas imediações, damos com a sede da construtora Teixeira Duarte, no enfiamento de um velho póster que anuncia a exposição “A Cidade do Tchiloli”, esticado sobre a fachada de um tom de salmão gasto de um edifício abandonado e decadente.
A exposição exibia imagens da complexa, mas rica coadunação das culturas europeia e africana, visíveis, óbvias, por toda a cidade por que tínhamos passado e voltado a passar.
No dia seguinte, voltamos ao Forte de São Sebastião. A horas. De novo entre estudantes libertos das suas obrigações.
Entramos.
Examinamos o património que comprova o mais de meio milénio habitado, colonizado, escravizado.
Por fim, libertado e entregue ao seu destino de São Tomé e Príncipe.
Neste tempo, São Tomé evoluiu o que evoluiu. Aumentou de forma comedida, numa harmonia civilizacional que nos continuou a deslumbrar.