Não é que fosse necessário, longe disso, mas, no preciso momento em que damos entrada no espaço retalhado por muros da aldeia da Cuada, nuvens carregadas surgem do cimo das encostas a leste.
Pairam sobre os fios de água do Poço da Alagoinha. Aos poucos, as nuvens estendem-se na direcção do Atlântico. Gotas tresmalhadas pelo vento irrigam os minifúndios por onde cirandamos. Deixam-nos de sobreaviso.
Afastamo-nos do castro de casas que nos obstruía a vista. Detectamos um arco-íris, completo e enorme.
Enquadrava o casario da aldeia, amornado pela iminência do ocaso.
Parecia confirmar o pote de ouro em que, contra o fluxo da história e das mais optimistas previsões, se transformou a Cuada.
Os chuviscos ora caem, ora dão tréguas, ao sabor da nortada.
Os poucos mais de cem habitantes que deixaram a aldeia até 1960, esses, como tantos outros da ilha da Flores e dos Açores, nunca voltaram.
O Abandono da Cuada para as Américas
Durante boa parte do século XX, a Cuada manteve-se ao abandono, as pedras e telhas das suas casas à mercê dos vendavais, das bátegas que fustigam estes confins atlânticos de Portugal.
Em 1970, aliás, já só duas das dezassete casas e palheiros preservavam telhados que merecessem tal nome.
A tempestade que parecia insinuar-se não chega a tanto. Confrontada com os ares do oceano, a franja de nuvens provinda do cimo da ilha intimida-se e dissipa-se.
O arco-íris segue-lhe o exemplo.
À medida que o sol se esparrama para trás do Atlântico, somem-se ainda a sombra abaixo do muro que nos suportava e o tom fulvo das fachadas.
Com a noite, os forasteiros à descoberta da ilha regressam aos seus abrigos de ocasião.
Ressuscitam os lares das gentes florenses que a excessiva insularidade e o subdesenvolvimento das Flores forçaram a partir, em perseguição de sonhos longínquos.
Os novos inquilinos chegam de todas as partes. Ficam um, dois, ou três dias. Recuperam um pouco das vidas lá interrompidas.
Cada casa está identificada com um nome de um dos emigrantes: Fátima, Fagundes, Esméria, Luís.
Nós, instalamo-nos na de Luciana.
Abençoada a dobrar pela proximidade da casa do Império do Divino Espírito Santo local, o único edifício rebocado e alvo do conjunto, diz-se que a casa de Império mais antiga de toda a ilha das Flores.
Cuada: e Como a Aldeia foi Recuperada mas Respeitada
Desconhecemos o que o destino ditou aos emigrantes após cruzarem para as Américas. Não sabemos sequer se o seu destino foi o Canadá, os Estados Unidos, o Brasil – os países acolhedores protagonistas da diáspora açoriana – ou um outro.
Constatamos que, mesmo resgatado da ruína, das silvas e dotado de modernidade, o povoado humilde e pitoresco que Luciana e os vizinhos abandonaram pouco mudou.
Os caminhos e lajedos de pedra mantêm-se tão ásperos e irregulares como quando as gentes da terra os percorriam, amiúde, descalços. Em tempos terrenos cultivados, os prados ervados surgem divididos a critério, por muros de pedra semelhante à usada na estrutura das casas.
Até há algum tempo, frequentavam esses prados e pastos a vaca Mimosa, Florentina, uma burra. E Tina, a cabra da aldeia.
Algumas casas têm eiras, agora usadas como pátios desafogados. Outras, foram adaptadas de palheiros, como o que pertencia a Pimentel.
O Capricho e a Teimosia Criativa dum Casal Açoriano
O prodígio de ressuscitar a Aldeia da Cuada deveu-se a Teotónia e Carlos Silva, um casal, hoje, com 72 anos que tinha por hábito passar o estio na Fajã Grande, a usufruir do retiro e da paz idílicos do faroeste da ilha das Flores.
Decorria a década de 80. Teotónia e Carlos, originário da ilha do Pico, sentiram o chamamento de recuperar a Cuada. Começaram por comprar uma primeira casa. Logo outra.
A determinada altura, o feitiço verdejante da Ilha das Flores atraía aos confins dos Açores mais e mais viajantes intrigados. Abrigarem-se e viverem o legado das casinhas da Cuada, sem electricidade, TV ou Internet, revelou-se um privilégio que entrou em modo de passa-a-palavra.
Por essa altura, Carlos tinha uma situação profissional estável nas Finanças. Teotónia, trabalhava na Sata, a companhia de aviação que serve os Açores. Apesar do traquejo que tinham no que dizia respeito a dinheiro e a viagens e turismo, ouviam com frequência que se estavam a meter numa loucura.
A própria Direcção de Turismo dos Açores louvou a sua determinação, mas recusou-se a participar, pela lógica de que, mesmo recuperada, a aldeia da Cuada, distante e isolada como estava, não chamaria hóspedes que justificassem o investimento.
Os anos sucederam-se. Chegamos a 1998. A aldeia abriu, de forma oficializada, as portas ao turismo.
Da Ruína, ao Turismo de Aldeia Pioneiro da Cuada
O mesmo destino e humildade que condenou os moradores da velha Cuada a emigrarem, levou à Cuada renovada um número crescente de forasteiros que, de início, tinham como iluminação velhos candeeiros a óleo, bem menos poluentes, em termos visuais, que os postes e cabos da instalação eléctrica que Carlos e Teotónia anseiam trocar por uma outra subterrânea.
Dois anos depois, a aldeia viu-se legalmente protegida pelas autoridades. O até então reticente Governo Regional dos Açores declarou-a “património cultural com interesse histórico, arquitectónico e paisagístico”.
A Cuada tornou-se um Turismo de Habitação (logo, Turismo de Aldeia) pioneiro em Portugal.
Ficou a salvo das atrocidades urbanísticas que abundam por todo o país. Tanto das que viessem do próprio governo como das de iniciativas privadas nas redondezas.
Quanto mais visitantes chegavam, mais sentido tinha para o casal Silva ignorarem os agoiros e prosseguirem com a sua missão.
A Beleza da Cuada e da Ilha das Flores em Redor
Afinal, de tanto ali passarem Verões, ambos conheciam como ninguém o valor dos cenários que envolvem a aldeia que, na opinião de muitos, fazem das Flores a ilha mais deslumbrante do arquipélago.
Conheciam a Fajã e a Fajãnzinha, as companhias mais próximas da Cuada, uma de cada lado.
O Poço da Alagoínha e a Cascata do Poço do Bacalhau, os dois a pouca distância, cada qual com o seu visual florentino de encantar.
Conheciam ainda, o conjunto de miradouros elevados que revelam panoramas verdejantes arrebatadores, salpicados de vacas, a começar pelo do Portal.
Também as piscinas naturais e a linha de costa vulcânica, rude e bela a condizer faziam já parte de si, como fazia a solidão emblemática do ilhéu do Monchique, o derradeiro pedaço de rocha do ocidente lusitano.
Teotónia e Carlos esforçaram-se por, dentro dos limites da simplicidade original, equipar e decorar cada uma das casas à altura dos cenários circundantes.
A Encantadora Simplicidade Histórica da Aldeia da Cuada
Os equipamentos e utensílios – espelhos, interruptores, torneiras, colchas, napperons e tantos outros – vêm do antigamente.
Ou, se não vêm, imitam o melhor possível, segundo o gosto e os caprichos de Teotónia.
Em termos gastronómicos, a Cuada prenda os seus hóspedes com o melhor que as Flores e os Açores têm para oferecer. Quando despertamos, esperava-nos um pequeno-almoço com pão fresco, queijo flamengo e da Ilha de São Jorge. Mel, doces, bolo de chia e fruta.
Ao jantar, também no restaurante ao lado da recepção, deliciamo-nos com peixes pescados ao largo, bem grelhados e acompanhados de vegetais colhidos nos terrenos da propriedade.
Por enquanto, cultivam-nos os trabalhadores da Cuada. Carlos e Teotónia partilham planos de que os hóspedes se possam entreter com tarefas rurais.
A Cuada conta, agora, com um acesso rodoviário a partir da estrada da Assumada que serve boa parte do fundo ocidental da ilha.
Tem também um parque de estacionamento inclinado que permite aos hóspedes chegarem com a sua bagagem até à entrada da vila, marcada pela recepção e museu.
Em horas ditas normais, da recepção até cada uma das casas, contam com a força de braços descomunal de Sílvio, encarregado e faz-tudo da Aldeia da Cuada.
As nossas, tratávamos ainda do check in, já Sílvio as tinha deixado à porta da Casa Luciana.
As Canadas Irregulares que Levam a uma Beira-Mar Dramática
Noutros tempos, as gentes chegavam à aldeia por uma canada secular.
Sulcava a floresta entre dois dos templos cristãos emblemáticos daquelas paragens, das imediações da capela de Santo António de Lisboa à casa do Império da Cuada, a tal igreja branca situada acima da Casa Luciana.
Como já vimos, a teimosia de Teotónia e Carlos em, apesar do desajeito dos hóspedes, preservarem os caminhos internos da aldeia, concedeu-nos o privilégio de nela caminharmos por vias fascinantes de história e de genuinidade.
Numas poucas dezenas de metros, a canada principal, sinuosa e vegetada da aldeia conduz-nos do ambiente bucólico e rural da Cuada para o marinho, bem mais selvagem que se sucede a ocidente.
Por ali, os coelhos são donos e senhores de um mato labiríntico pejado de tocas e ninhos. Sobrevoam-nos as abundantes cagarras. Com sorte podem revelar-se pintainhos, estapagados e garajaus.
À medida que desce, a canada transforma-se num trilho pouco claro, nada que pudéssemos comparar com o bem demarcado e concorrido que liga a Fajã Grande ao Farol de Albernaz, virado para a ilha vizinha do Corvo.
Quando um dos seus meandros nos desvenda um inesperado precipício rochoso e o Atlântico agitado, damos meia volta, rumo à Cuada.
Não seria, essa, a última vez que nos abrigávamos na aldeia.
Sempre que o fizemos, sentimos o aconchego humano e o afago da Natureza que os seus moradores se viram obrigados a sacrificar.
ALDEIA DA CUADA
Tel.: +351 292 552 127
Morada: Lajes das Flores 9960-070