Com o Verão austral no seu término e na mais solitária das cidades australianas, a mais de 2000km de outra grande urbe, os passageiros a bordo eram uns poucos, adeptos de uma paz silenciosa que favorecia a contemplação.
Pelo menos, a possível, nos 25 minutos do trajecto. Em menos que esse tempo, as linhas de Rottnest definem-se. Acentua-se o ciano que decora o mar mais próximo da ilha, para dentro da barreira de recife que a protege.
O ferry rasa a referência geológica da Philip Rock. Logo, atraca na costa leste, protegido pelo pontão que atenua a força das vagas, quase sempre orientadas de sul.
A área urbanizada da ilha fica ali mesmo, numa faixa oriental exígua, instalada entre a Baía de Thomson que nos tinha acolhido e os nove ou dez lagos que salpicam a secção oriental de Rottnest. Dessa franja arruada e repleta de negócios turísticos, estendia-se uma vastidão natural e intrigante.
Com quase um mês a vivermos a vida citadina de Perth, sentíamo-nos ansiosos por nos deixarmos perder.
Confirmamos que a ilha media meros 10km, de uma ponta à outra. Alugamos bicicletas.
Como acontece demasiada vezes a quem viaja, funcionais em plano e a descer, verdadeiros castigos, mal mecanizados, até nas mais suaves ladeiras.
Apostamos no sul. Pedalada após pedalada, a Parker Point Rd. aproxima-nos de uma tal de Baía Porpoise. Não avistamos os botos que o baptismo anglófono indicia serem visitantes habituais.
Só por si, a pequena enseada e praia de Paterson que antecede a baía, revela o esplendor balnear que, interesse histórico à parte, atrai forasteiros a Rottnest.
Um areal coralífero de uma alvura imaculada entra pelo mar translúcido.
Adensa o tom esmeralda de uns poucos metros. Logo, com a profundidade a aumentar, passa a turquesa ou a um azul-petróleo denso.
A estrada desce por uma península, até a um ponto de observação, já elevado sobre o areal, que lhe empresta o nome.
Uma escadaria de madeira, dá acesso a uma praia vizinha da de Paterson.
Lá em baixo, uns poucos ciclistas tinham-se já convertido em banhistas.
Aos 32º de latitude, mais de 1100 km abaixo da Coral Bay em que o Trópico de Capricórnio intersecta a costa ocidental da Austrália e na provável iminência do indefinido oceano Antárctico, só os tons do mar que banha a Rottnest Island são tropicais.
Entre o frio e o fresco, aquele litoral Índico irrepreensível falha em demover os verdadeiros amantes da Natureza.
Vemo-los desfrutarem de enseadas sem vagas e quase-privadas. A barreira de recife ao largo protege-os da Natureza e aconchega-os. Nada faz pelos aventureiros que se metem no oceano Índico aberto.
Há muito que a vida selvagem letal da Austrália contribui para o seu imaginário de exotismo deslumbrante. À cabeça das espécies perigosas encontram-se, claro está, os tubarões. A Rottnest Island não é excepção.
O que não tem impedido diversas agências de actividades de lá organizarem saídas de snorkeling e mergulho, nem milhares de clientes de nelas participarem.
A última das inevitáveis fatalidades deu-se, em Outubro de 2011. Um americano que fazia mergulho, sozinho, a 500 metros ao largo da costa norte, foi atacado por um tubarão que lhe provocou ferimentos fatais.
Na década que passou, registaram-se outros contactos trágicos ou quase trágicos, a espaços, com os grandes tubarões-brancos.
Em 2021, as autoridades viram-se forçadas a encerrar todas as praias da ilha. Uma carcaça de baleia que deu à costa, gerou um banquete de tubarões famintos.
Os meros avistamentos, esses, verificam-se todos meses. A ilha acolhe colónias de leões-marinhos australianos e de focas. Há muito que os tubarões a patrulham em busca de alimento.
Na mitologia dos aborígenes da costa australiana – os que chegavam a avistar o animal – os maiores tubarões eram tidos como espíritos da criação e da destruição, em simultâneo, símbolos de bravura e de destemor, de tribo para tribo, ora deificados ora demonizados, e até as duas coisas a par.
Os aborígenes do sudoeste da Austrália não desenvolveram o uso de canoas, como fez o povo maori da Nova Zelândia. Os nativos destas partes da grande ilha costumavam nadar nos rios e nos estuários, incluindo o do rio Swan.
Nunca se aventuraram mar adentro, nem sequer em busca das ilhas mais próximas do continente, aquelas a que chamavam Wadjemup (a de Rottnest) e a de Meeandip (a Garden Island a sul).
Ora, subsiste uma tradição oral aborígene das zonas hoje ocupadas pelo estuário do rio Swan e outras partes de Perth que o testemunha. Diz-se que um aborígene mais destemido se aventurou a nadar até Wadjemup.
Regressou são e salvo, intimidado por ter encontrado o lugar cercado por tubarões.
Daí para cá, nenhum outro aborígene se atreveu a imitar o feito.
Em tempos pré-históricos, povos indígenas Noongar chegaram a habitar Rottnest. Provam-no artefactos lá encontrados, datados de entre há 7000 e 30.000 a 50.000 anos.
Estima-se que, há cerca de 7000 anos, à medida que o aumento da temperatura e do nível do mar causavam a separação da ilha do continente, os indígenas viram-se forçados a abandoná-la.
Haveriam de voltar, num contexto que a sua elaborada mitologia nunca previu, a invasão e colonização da Austrália pelos povos europeus.
Prosseguimos na nossa Volta a Rottnest em bicicleta, entretanto, já ao longo da vasta baía de Salmon. A mesma Parker Point Rd. leva-nos às imediações de uma escola de surf local.
E à torre do farol de Rottnest.
Admiramo-la, destacada, à laia de foguetão, do topo do outeiro de Wadjemup, acima de arbustos e árvores diminutas, todos de tons de verde resplandecentes que contrastam com o céu carregado de humidade e de um azul etéreo condizente.
Acompanha o farol uma bateria de canhões e posto de observação, e um quartel erguido para abrigar mulheres do exército australiano, que tem acolhido sobretudo grupos encarregues de estudos científicos.
A ilha tem um outro farol. Formam o duo dos edifícios mais altos construídos pelos colonos chegados do Velho Mundo.
Desde o início do século XVII que diversas expedições holandesas, francesas e britânicas avistaram a ilha.
Seria o relato de um capitão holandês que, em 1696, haveria de inspirar o nome ocidental do lugar, Rottnest.
Por mais que uma vez, cruzamo-nos com animais que nunca tínhamos visto, nada fugidios, num ou outro caso, aparentemente sorridentes. O seu sorriso levou, aliás, a que os quokkas (setonyx brachyurus) sejam apelidados “o animal mais feliz à face da Terra”.
Isso não impede que a enfermaria da ilha receba, amiúde, visitas de forasteiros que abusaram nas suas abordagens, feridos por mordidelas dos seus dentes aguçados.
Os quokkas são marsupiais.
Tal como os tubarões, integram a mitologia Dreamtime dos aborígenes que o descrevem como capaz de metamorfoses noutras criaturas, guardiães sagrados dos lagos e das fontes de água dos nativos, de tal maneira que estes usam as suas peles em cerimónias da chuva.
Toda esta sacralidade e adulação destoa do desdém com que os primeiros europeus encontraram e descreveram o animal. O primeiro relato registado, fê-lo Willem de Vlamingh, o tal capitão holandês.
Confrontado com a abundância dos quokkas, de Vlamingh apelidou a ilha de Eyland’t Rottenest, “ilha ninho dos Ratos.”
Como é conhecido, os britânicos suplantaram os holandeses na colonização da Austrália, muito graças à política de para lá desterrarem milhares dos condenados que enchiam as suas prisões.
Em 1831, na sequência da colónia britânica do rio Swan, pelo menos uma família numerosa recebeu terras em Rottnest.
Para lá se mudou, onde prosperou da criação de gado e da venda do sal que ainda abunda nos lagos do leste da ilha.
À época, os britânicos mantinham uma relação belicosa com os aborígenes que, procuravam, por todos os meios, expulsar e até dizimar, de forma a se apoderarem das suas terras.
Pois, apenas sete anos após a chegada dessa família britânica, até 1931, as autoridades da colónia do Swan usaram a ilha como prisão de aborígenes, lá escravizados para, entre outros, trabalhos de pedreira, agrícolas e recolha de sal.
Nesse período, foram tratados de forma cruel e desumana, e enterrados a condizer no actual Wadjemup Aboriginal Burial Ground, próximo da prisão em que eram mantidos.
Outra das ironias reside no facto de os edifícios do reformatório para rapazes indígenas, funcional entre 1881 e 1901, ser agora usado como um dos mais populares alojamentos de férias da ilha, ainda sagrada para os aborígenes, ainda tão fora do seu mundo, como popular entre os colonos australianos.