A travessia atlântica desde Lisboa demora as suas nove horas.
Passamos o tempo quase todo acima de água salgada e azulada. Com sorte, ainda na primeira metade do percurso, vislumbramos algumas ilhas açorianas. De Maio a fim de Outubro, em plena época dos furacões, o voo revela-se algo mais turbulento, nada que chegue a gerar apreensão.
Quase finda a rota em arco apontada à latitude do Trópico de Câncer, sobre o norte do arquipélago das Bahamas e na iminência da península da Flórida, a janela do avião emoldura uma inesperada compensação paisagística.
Numa zona deixada para trás por um furacão que se desfaz para norte, centenas de nuvenzinhas rasantes e etéreas pairam sobre o mar liso e translúcido.
As suas sombras parecem flutuar logo abaixo, em manchas abundantes que suplantam as de uns poucos retalhos de recife.
Progredimos para sudoeste.
Esses retalhos dão lugar a uma longa barreira, coberta por ondas de areia coralífera, tão alva que a superficialidade as tinge de ciano.
O sobrevoo mantem-nos nesse tom e num deslumbre absoluto por quinze minutos mais.
Até que passamos sobre uma verdadeira língua de terra, consolidada ao ponto de sustentar vegetação e edifícios.
Miami: Porta de Entrada da América Latina à Vista
É a badalada franja de Miami Beach.
Uma lagoa salpicada de ilhéus quase todos edificados, surge ligada à Flórida contígua por quatro ou cinco vias e pontes impostas à lagoa.
Pelo menos três delas conduzem ao núcleo da grande metrópole que tínhamos como destino final. Dita a direcção do vento que, para aterrar, ainda tivéssemos que entrar e dar voltas sobre os Everglades, a pradaria alagada que contem a cidade a oeste.
A aterragem e incursão no imenso aeroporto reforça o que já tínhamos constatado em visitas anteriores. Estamos a chegar aos Estados Unidos.
As gentes que processam a entrada e com que nos cruzamos têm quase todas visuais hispano-americanos. Conversam num espanhol suavizado pelo clima mais quente.
Quando nos abordam, têm dificuldade em concluir se somos ou não “como eles”. De acordo, mudam para o inglês com sotaque a que os obrigam os protocolos profissionais.
O predomínio linguístico que sentimos à chegada é sintoma de uma realidade mais abrangente. Nos E.U.A., só Nova Iorque acolhe mais visitantes anuais que Miami.
Se, como no nosso caso, lá desembarcam europeus e ainda mais norte-americanos, o grosso dos forasteiros provem da ampla metade sul das Américas, a que, como a Flórida, foi descoberta para o Novo Mundo pelos espanhóis e que se preservou hispânica.
A grande excepção desse universo, reside nos milhões de passageiros brasileiros, divididos entre turistas, trabalhadores imigrados e recém-convertidos em americanos.
O Protagonismo Cubano em Miami
Devido à proximidade e ao passado de êxodo intenso que se seguiu à tomada de poder de Fidel Castro, em 1959, os Cubanos são mais de 1.2 milhões. O facto de o mais famoso bairro cubano de Miami se denominar Little Havana prova-se ilusório.
Quase metade da população do Condado de Miami tem origem cubana. Os refugiados mais abastados voaram de Cuba assim que perceberam que a viragem Revolucionária-Comunista da ilha os condenaria. Ao longo das décadas, seguiram-nos muitos mais, como podiam, uns a bordo de aviões e grandes barcos.
Outros, os balseros, sobre jangadas improvisadas que, nalguns casos trágicos, os atraiçoaram.
A Little Havana, com os seus bares, murais, casas de charutos e o parque Máximo Gomez em que os cubanos disputam partidas e torneios ruidosos de dominó, a discutirem as novidades desportivas e políticas da sua nova pátria, exibe o lado pitoresco da migração cubana.
Um pouco por todo o condado, destacam-se monumentos ao empreendedorismo destes recém-chegados.
Jorge Mas Santos nasceu já em Miami (em 1962), filho de imigrantes cubanos. É o presidente da MasTec, uma multinacional especializada em construção e infraestruturas, sediada em Coral Gables.
Mesmo se considerado bilionário, no incrível extracto do sucesso financeiro das gentes de Miami, não surge sequer no Top 10. Mesmo assim, a sua fortuna estimada em 1.3 mil milhões de dólares permitiu-lhe adquirir o clube de futebol Inter Miami e, em Julho de 2023, contratar por valores extraterrestres (leia-se entre 50 a 60 milhões anuais), a estrela argentina em decadência Lionel Messi.
Miami e os seus Outros Latino-Americanos
A outra grande comunidade latino-americana de Miami é a formada pelo sempre criativos porto-riquenhos, já mais de duzentos mil. Seguem-se os colombianos e os mexicanos. Nos últimos tempos, só Madrid se pode equiparar a Miami no acolhimento de hispano-americanos.
Ambas assimilam, sem pruridos, os investimentos imobiliários que lá realizam. Ambas oferecem em troca, vivências sofisticadas e cosmopolitas.
Em termos meteorológicos, a mácula do frio invernal de Madrid está a par do calor, humidade e furacões excessivos do Verão de Miami.
De tal maneira excessivos nos últimos tempos que as autoridades decidiram nomear um pioneiro Oficial Chefe para o Calor.
Ano após ano, chegado o Inverno do hemisfério norte, junta-se à comunidade latino-americana de Miami uma outra, por norma, sazonal. Compõe-na os reformados e nómadas digitais norte-americanos (americanos e canadianos) que se abrigam, em Miami, do Inverno enregelante do grande Norte.
Desde que a Venezuela tomou o mesmo caminho ideológico de Cuba, os venezuelanos chegam e instalam-se em número considerável, atraídos pelas possibilidades sem fim deste sul-abafado da Terra da Oportunidade.
Miami Beach, a Waterfront e a Miami Bay
À descoberta de Miami, deambulamos pelo domínio Art Deco de Miami Beach que as autoridades transformaram numa ilha com espaço para a arte, cultura, para um convívio multinacional mais saudável.
Apesar de já pouco parecer, a partir do que era um antro festivo pejado dos vícios combatidos na TV e na cidade pelas brigadas “Miami Vice” e, à sua maneira sanguinária, mais tarde, por “Dexter”.
Com o passar dos anos, esta maré evolutiva alastrou-se a outras partes de Miami. Inspirou outras cidades floridenses e de estados vizinhos a seguirem-lhe o exemplo.
Até o abandonado e degradado bairro de Wynwood deu lugar a uma vasta galeria de arte urbana. E, com essa metamorfose, as suas ruas e edifícios valorizaram-se sobremaneira no mercado imobiliário.
Exploramos a Miami Waterfront e a Miami Bay que se estende entre ambas.
Uma volta de barco guiada por estas águas represadas revela-nos – agora de baixo para cima – a prolífica skyline de Miami, formada por arranha-céus comedidos, exuberantes que baste.
Mais tarde, de uma das ilhas da baía, fecharíamos o dia a admirar como, com o arrebol, o seu perfil acinzentado se convertia num festival de luz, duas das suas pontes iluminadas de azul quase fluorescente.
Os incontáveis quadradinhos dourados dos arranha-céus reflectidos na água, a brilharem, contra o derradeiro azul-celeste.
Ainda de manhã, por detrás dos prédios e acima, uma frente de cumulus nimbuscarregados e azulados preparava-se para invadir a cidade, para sobre ela chover, relampejar e fazer os moradores suarem as estopinhas.
Se tivermos em conta a apetência da Flórida para atrair e sofrer com os furacões, eram todos males menores.
Little Haiti e a Génese Histórica de Miami
Noutros dias, embrenhamo-nos em bairros distintos, menos visitados da cidade, porque menos seguros e, sobretudo menos turísticos.
Em Little Haiti, encontramos uma congénere da Little Havana, bem mais afastada, para norte, do CBD da cidade.
Ali, na também denominada Lemon City, se concentrou boa parte dos haitianos, bahamianos e caribenhos de outras paragens, muitos deles, imigrantes ancestrais da cidade, chegados desde o início do século XX. Hoje, reunidos numa comunidade com predomínio afroamericano de quase 30 mil habitantes.
As gentes de Little Haiti moram numa expansão de pequenas vivendas térreas, em ruas com nomes franceses-crioulos. Constatamo-las, humildes, degradadas, mas, à imagem de Miami em geral, arejadas e refrescadas por uma camada arbórea generosa que a meteorologia irriga.
Em termos arquitectónicos, lá se destacam o edifício garrido do mercado e a estátua de homenagem a Toussaint L’Ouverture, o general negro que fez espoletar a Revolução Haitiana.
Diz-se que Miami é uma das poucas urbes dos Estados Unidos fundadas por uma mulher, no caso, Julia Tuttle, uma produtora de citrinos que, a braços com a necessidade de transportar os seus frutos, terá convencido um magnata de nome Henry Flagler a fazer o caminho de ferro que construía passar junto às suas terras.
Os carris fizeram valorizar as plantações e as propriedades. Num ápice, devido à migração, os moradores de Miami aumentaram de meros trezentos para muitos milhares. Entretanto, para cima de dois milhões.
O nome emblemático e sonoro que ostenta adveio do termo Mayami (grande água) que os nativos Calusa e Tequesta usavam para o actual lago Okeechobee e para a etnia Mayami que também habitava as suas margens.
Preserva o seu quê de irónico que, dois séculos decorridos desde que – dos conquistadores espanhóis ao exército dos E.U.A. – os invasores da América submeteram os nativos destas paragens, o Mundo parece dividir-se entre duas formas divergentes de proferir o nome da cidade: entre a original Mayami e a hispânica Míami.
Para Miami, pouca diferença faz. A cidade tem todo um mundo para seduzir e acolher.
COMO IR
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