Desarmam-nos os preços exorbitantes dos quartos nas imediações do Parque Nacional Grand Canyon.
Acabamos por eleger, para base de sucessivos vaivéns rodoviários, um dos retalhos históricos da velha Route 66, perdidos no vasto Arizona.
Situada a quase 100 km, Williams provou-se uma pequena povoação em estilo Main Street América, bissectada pela estrada emblemática e em que, apenas na aparência, pouco mudara no tempo. E, no entanto, em plena franja do território índio Hualapai, quase só indianos geriam as dezenas de motéis geminados de ambos os lados da via.
O crepúsculo tomava conta do vilarejo e fazia resplandecerem dezenas de placards de néon quando, estasiados de uma viagem que já vinha do longínquo litoral californiano do oceano Pacífico, demos entrada num desses abrigos práticos mas sem vestígio de alma.
Dormimos bem mais que o que precisávamos. Despertamos para um novo dia de céu azul e sol radioso.
Mesmo conscientes de que, por essa hora, parte substancial dos hóspedes de Williams embarcavam no comboio a vapor do Grand Canyon Railway com destino ao Grand Canyon, mantemo-nos fiéis ao nosso velhinho mas fiável Buick Le Sabre.
Fazemo-nos ao norte pelas rectas sem fim das Highways 64 e 180, nesta última, ao longo de uma tal de floresta Kaibab pejada de pinheiros Ponderosa que prenunciavam o término forçado do percurso.
Uma hora depois, cruzamos o portal sul. Damos entrada na Grand Canyon Village.
A Visão Abismal do Grand Canyon
Ansiosos por recompensar os sentidos, seguimos de imediato em direcção ao abismo. Quando o confrontámos, percebemos, por fim, porque tantos viajantes o consideram o cenário supremo dos Estados Unidos.
Para diante, estendia-se um domínio caprichosamente esculpido até às profundezas, retalhado em camadas e colunas multicolores de rocha das mais diversas eras.
Acima, nuvens tresmalhadas, seduzidas pela sumptuosidade e complexidade geológica, disputavam jogos de sombras.
Por instantes, ficámos de queixo caído. Aproveitámos o deslumbramento para recuperar a respiração cortada a meias pelo panorama e pela rarefacção própria daqueles 2200 metros de altitude a que estávamos mas que a fundura (quase 1900 metros) e dimensão incrível do precipício (446 km por 29 km) mal deixava perceber.
Admiramo-lo a partir do Yavapai Point, um miradouro que honra um dos vários povos indígenas da zona, rivais da grande nação Navajo do norte logo do Mather Point.
E enquanto saltitávamos na Desert View Drive pela beira elevada da Orla sul, de outros pontos de observação com varandas naturais instaladas sobre reentrâncias vertiginosas.
De oeste para leste, percebemos a visão do leito distante e esquivo do rio Colorado ser favorecida pela configuração do relevo.
Por altura do Lipan Point, o grande responsável fluvial daquela mutilação da superfície terrestre, submete-se a meandros apertados.
Para logo fluir, quase desafogado, pelas terras bem mais regulares a oriente do Tanner Canyon.
Uma Obra Geológica e Erosiva do Velho Rio Colorado
Prevalece um intenso debate entre os cientistas mas os últimos estudos têm defendido que o rio Colorado estabeleceu o seu curso e começou a talhar a sua bacia exuberante no Planalto do Colorado há 17 milhões de anos.
A enorme profundidade – nem assim a maior do Mundo que se situa na garganta nepalesa de Kai Gandaki – e a altitude superlativa das suas vertentes, a maioria formadas abaixo do nível do mar, deve-se a um levantamento massivo (de entre 1500 a 3000 metros) do Planalto do Colorado há mais de 60 milhões de anos.
Este levantamento tornou maior a gradiente do caudal do rio Colorado e dos seus afluentes o que incrementou dramaticamente a velocidade a que fluem e a sua capacidade de desgaste da rocha.
As condições climáticas durante as eras glaciais também aumentaram a quantidade de água drenada na bacia, o que voltou a reforçar o processo de erosão.
Desert View Watch Tower: uma Velha Sentinela de Inspiração Kiva
Chegamos ao limiar leste do Grand Canyon, damos com o edifício mais alto da Orla Sul. À primeira vista, a torre cilíndrica parece-nos uma velha ruína nativo-americana.
No seu interior dividido em quatro andares, constatamos que se tratava de uma de várias construções do início dos anos 30 para uma empresa de nome Fred Harvey que ainda hoje promove a cultura e a arte nativo-americana.
Foi erguida com inspiração numa kiva, uma estrutura usada nas práticas espirituais de vários povos Pueblos e com base numa sólida estrutura metálica que suportou o actual revestimento com visual indígena fidedigno, porque conseguido com pedras criteriosamente seleccionadas.
Para a inauguração, o mentor da empresa escolheu um ritual de bênção tradicional da etnia Hopi, com cantos, danças e discursos. Em seguida, os convidados desfrutaram de uma refeição típica acabada de cozinhar por mulheres indígenas.
Nem assim, a torre de vigia se provou consensual.
Parte do pessoal do parque apoiou-a mas os encarregues pela interpretação da natureza embirraram com a novidade. “Destaca-se da paisagem como um polegar ferido e chamar-lhe torre de vigia índia é, no mínimo, enganador.” Desabafa Edwin McKee, o líder dos naturalistas.
O monumento resistiu à polémica e às frequentes intempéries.
Aproveitamos para subir a sua rampa em cornucópia até ao último andar de onde sabíamos que a vista nos recompensaria.
Os Meandros do Rio Colorado, o Deserto Pintado e o Arizona em Fogo
Vimos ainda mais do Colorado, tanto do rio – que adiante gerava um Little Colorado – como do planalto homónimo que, para lá do seu leito, se travestia da paisagem que os nova-iorquinos 10,000 Maniacs exaltam em “The Painted Desert”, um dos seus mais famosos temas.
“The Painted Desert can wait ‘till Summer. We’ve played this game of just imagine long enough...” canta Natalie Merchant, desiludida com uma relação amorosa com alguém a quem deseja ardentemente juntar-se e que lhe conta as suas peripécias no Grande Canyon e redondezas mas que adia vezes sem conta a união.
O entardecer não falhou. Trouxe um frio fulminante que nos apanhou numa caminhada mais longa que o esperado por um trilho íngreme. De regresso ao cimo, aconchegámo-nos os dois no interior do carro, a bebermos chocolate quente para evitarmos enregelar
Em simultâneo, o sol punha-se a ocidente do desfiladeiro gigantesco do rio.
Desfazia-se de tal maneira sobre as incontáveis silhuetas das suas falésias e no céu acima que mais parecia ter incendiado o Arizona.
Recuperados da iminente hipotermia, cedemos à sedução do cenário incandescente e voltámos à beira do canyon.
Dali, na companhia de alguns outros Neros obscurecidos pela penumbra, extasiámo-nos a observar como o fogo celeste se extinguia.
Como deixava o firmamento de um laranja-amarelado cada vez mais ténue.
Recolhemos ao longínquo motel de Williams.
“E então, gostaram do Canyon?” pergunta-nos o recepcionista indiano que nos recebera no dia anterior, um quarentão hindu de Gujarat. “Eu estou cá há dois anos.
Só o espreitei uma única vez.
Sabem como é, quem vem da Índia pobre e acha uma oportunidade nos States, dá prioridade é ao trabalho.
Ainda hei-de lá voltar e explorar mais do Oeste!”
Grand Canyon, a Depressão Intransponível do Arizona
Nova alvorada, nova viagem ao abismo, cumprida ainda mais depressa que no dia anterior. Por estes lados, tendo em conta a qualidade das estradas norte-americanas só mesmo o Grand Canyon levanta barreiras intransponíveis à deslocação.
A sua Orla Norte fica a menos de 20 km da Orla Sul. Como era de esperar, nem as autoridades federais nem as estaduais alguma vez se atreveram a propor a construção de uma ponte sobre a jóia da coroa dos parques nacionais dos E.U.A.
Se lá quiséssemos chegar, teríamos que enfrentar 350 km rodoviários.
A saga da óbvia intransponibilidade do Grand Canyon vem, aliás, de há muito. Os índios Hopi já o habitavam e percorriam há séculos quando chegaram os primeiros europeus.
Em 1540, o capitão espanhol Garcia Lopez de Cardenas e um pequeno grupo de soldados procuravam as então badaladas Sete Cidades de Cibola quando chegaram à sua borda, auxiliados por guias nativos.
Três dos homens desceram um terço do declive mas tiveram que regressar ao cimo por não terem água suficiente. “Alguns dos rochedos lá em baixo são maiores que a torre de Sevilha” reportaram.
Vários historiadores defendem que os indígenas evitaram revelar-lhes os trilhos para o rio Colorado e que nenhum europeu voltou a visitar o canyon nos duzentos anos que se seguiram.
Só quase no fim do século XVIII, padres hispânicos em busca de uma rota entre Santa Fé e a Califórnia encontraram um caminho conhecido como a “Passagem dos Padres”.
Hoje, esse trilho está debaixo da água do gigantesco lago artificial Powell que visitaríamos mais tarde.
As Mulas Vaivém que Carregam os Visitantes às Profundezas do Rio Colorado
Tentamos juntar-nos a uma das caravanas de mulas organizadas pelo parque e replicar as suas travessias históricas.
Só teríamos vaga daí a uns bons dias. O muleiro de serviço mostra-se solidário com a nossa frustração. Para compensar, deixa-nos acariciar duas das suas mulas, com quem falava como se fossem filhas.
“Daqui a pouco estamos a descer de novo, Lulu.” Já não te estava a apetecer nada, não é? Mas vai ter que ser!”
Lulu reconhece o nome e o afecto.
Esfrega o focinho no seu dono pitoresco e inaugura uma exibição de carinho que não esperávamos de tais criaturas.
O vento aumenta a olhos vistos. Traz uma tempestade que cobriu a zona de nuvens plúmbeas.
Em três tempos, caem aguaceiros localizados.
Um enorme arco-íris projecta-se do fundo das falésias até ao céu carregado.
A tempestade passa. E o vento diminui o suficiente para alguns dos helicópteros que sobrevoam o canyon voltarem à actividade.
Embarcamos num deles.
Desbravamos o grande cenário a partir do ar, na companhia de um grupo de japonesas que, em pânico devido à turbulência, não conseguem disfarçar a sua agonia, muito menos apreciar o fundo grandioso em que temiam despenhar-se.
Aterramos sãos e a salvo. Continuamos até ao limite oeste de Hermits Rest. Lá repousamos a contemplar a vista surreal.