É noite cerrada quando o motorista do autocarro nos aponta para o começo do desvio para o ryokan Magomechaya.
Sentimos o frio de rachar do exterior. Aquele retalho de Japão campestre mantinha-se no passado. Carecia de uma solução tecnológica que nos ajudasse a vencer a longa rampa por diante. Conformados, carregamos as mochilas mais pesadas contra a gravidade. Até as pernas nos ferverem e o suor nos percorrer as faces ruborizadas.
Recuperamos o fôlego quando entramos na recepção do edifício antigo. Acompanha-nos um canadiano de origem nipónica prestável. Malgrado a fragilidade do momento, pouco ou nada poupa o seu. Em vez, transmite-nos informação em catadupa sobre a cultura dos ancestrais.
Quando por fim conseguimos algum recobro, percebemos que devíamos ser os únicos hóspedes daquela pousada tradicional. Rendemo-nos ao conforto dos futons acabados de desenrolar e a um sono revigorante.
Despertar Madrugador e a rua de Magome Só para Nós
Acordamos às 7 da manhã. Sentimo-nos rejuvenescidos e prontos para o sábado invernal mas solarengo. Saímos de pequeno-almoço japonês tomado, curiosos pela novidade do que nos cercava.
Não vemos vivalma na rua íngreme e de visual medieval. Percorremo-la para cima e para baixo, tantas vezes e com tal intriga que depressa precisamos de restabelecer energias numa espécie de taverna histórica.
Lá nos sentamos a devorar pastéis manju ainda fumegantes, acompanhados de chá com leite.
De regresso à descoberta, damos com uma velha azenha bem preservada e a rodar em pleno.
Subimos nova escadaria. Desperta-nos a atenção uma tábua de madeira que exibe as regras e penalizações ditadas pelo xogunato Tokugawa e pelos daimyos (líderes feudais) para uso das estações que compunham a via e as terras em redor.
Entre as várias, destaca-se a pena dada a quem cortasse um só que fosse dos ciprestes da região, necessários para construção dos castelos dos governantes: a morte.
O Velho Caminho Nakasendo Entre Edo e Quioto. Ou Vice-Versa.
O caminho Nakasendo tinha início em Edo. Atravessava as cordilheiras centrais da ilha de Honshu e conduzia a Quioto.
Foi apenas uma das vias principais (gokaidos) encomendadas por Tokugawa Ieyasu, o general que, em 1603, na sequência de complexos jogos de guerra, passou a controlar o Japão e viu o seu poder legitimado pelo Imperador que lhe atribuiu o título de xogum (comandante supremo).
Os xogunes estabeleceram 69 estações intermédias do percurso (jukus), em povoações que, além de acolherem os viajantes e os seus cavalos, centralizavam a distribuição da correspondência.
Magome, a povoação pitoresca e antiga em que nos encontrávamos era a 43ª destas estações, na sequência da vizinha Tsumago.
Nem de propósito, quando voltamos a subir a calçada alisada pelas autoridades para maior conforto dos moradores e visitantes, cruzamo-nos com um carteiro em plena entrega.
Traja um uniforme fidedigno dessa época e vai munido de uma mala preta de madeira leve, com enormes caracteres kanji que identificam a sua função.
Mais para cima, uma dona de casa lava tubérculos que temos dificuldade em identificar. Enxágua-os com recurso a uma tábua e um balde.
Ainda é cedo. Conseguimos apreciar este e outros episódios da vida real da aldeia, mesmo se é Tsumago e não Magome a mais genuína das duas povoações.
À letra, Magome traduz-se como cesto de cavalo. O nome da povoação popularizou-se porque os viajantes eram obrigados a ali recuperar os seus cavalos antes de enfrentarem a subida íngreme no início do percurso para Tsumago.
A mesma rampa que nos deixara de rastos na noite gélida em que chegámos à povoação.
O Aumentar dos Visitantes. E dos Caminhantes do Nakasendo.
Tinham passado três horas desde o despertar madrugador. Reparamos que o número de visitantes aumentava a olhos vistos. Como o número de clientes nos cafés, doçarias, lojas de artesanato e recordações de ambos os lados da estrada.
A determinada altura, a afluência torna-se avassaladora. Ao ponto de termos dificuldade em caminhar em linha recta e em não pisarmos as centenas de cães de bolso que as senhoras e donzelas japonesas passeiam com trela curta.
Aproveitamos uma paragem num ponto de informação turística para perguntar o que se passava. Contra a sua forte timidez, uma funcionária lá se resolve a recorrer a um inglês básico e explica-nos: “é um fim de semana especial. Fim de semana cultural. Três dias. Muitos japoneses vir aqui”.
Agradecemos o esclarecimento. Logo, constatamos um aviso gráfico bilingue que pede às pessoas para usarem guizos quando percorrerem o trilho florestal entre Magome e Tsumago.
Afiançava o alerta, que era essa a melhor maneira de afugentar os ursos já que os animais só atacavam quando surpreendidos.
Mais que os ursos, era o excesso ameaçador de humanos nipónicos em Magome que nos apoquentava. Mesmo assim, fazemo-nos ao Nakasendo sobre a calçada de pedra redonda ishidatami por que serpenteia por 7.8km até Tsumago.
Acima e abaixo, entre minifúndios verdejantes, ao longo de florestas lúgubres de cedros.
Paramos apenas para fotografar os cenários mais sedutores. E para colher alguns dos dióspiros irresistíveis que abundam à beira do caminho e em quintais, como por grande parte do Japão, nos meses mais frios do ano.
Atravessamos pontes convenientes em redor de quedas d’água e sobre riachos, estruturas anciãs que justificaram, em tempos, uma histórica preferência das mulheres nipónicas pelo Nakasendo, fartas de se encharcarem em caudais incontornáveis, noutras vias mais antigas.
Pela Floresta Nipónica Abaixo, Rumo a Tsumago
De início e por momentos, temos a sensação que o Nakasendo está por nossa conta. Não tardamos a escutar tilintares longínquos. Sem que o esperássemos, seguem-nos grupos de caminhantes precavidos contra as feras felpudas da floresta.
Em breve, haveríamos de nos cruzar com muitos mais deste peregrinos estridentes, no sentido contrário do percurso.
Por certo, bastante mais silencioso, também o famoso poeta haiku Matsuo Bashô terá percorrido estas paragens, durante as suas longas jornadas de contemplação descritiva do Japão.
Chegamos aos derradeiros meandros do trilho que, já na imediações de Tsumago se rende, por momentos, ao asfalto para logo recuperar a genuinidade.
A via principal desta 42ª estação, como a de Magome, foi fechada ao trânsito e concentra uma variedade de edifícios seculares de madeira escura.
Tsumago, a Rival Também Pitoresca de Magome
Casas, estalagens, templos e santuários de arquitectura nipónica ancestral compõem um conjunto pitoresco de igual forma ocupado por alguns dos melhores artesãos, doceiros e gastrónomos da região.
Mulheres pintam chapéus cónicos de vime. Outras espalham malaguetas escarlates para secarem em cestas rasas.
Como acontecia já há muito em Magome, também ali uma multidão solidária de famílias nipónicas aprecia e regista para mais tarde recordar estas visões sedutoras das origens da sua pátria.
Em pleno Inverno, a tarde depressa se torna enregelante e se precipita para o fim. Como apareceram, aos poucos, estes herdeiros da era Edo refugiam-se nos restaurantes e pousadas recuperadas da zona.
Um lusco-fusco rosado, depois um breu atenuado por uma iluminação dourada acolhedora apodera-se de Magome e de Tsumago e de todo este Japão de outros tempos.