A tarde mal começou.
O pequeno supermercado está à pinha e há uma longa fila para a secção autónoma do álcool que, na Austrália, à imagem dos Estados Unidos, não é vendido a qualquer um.
Adultos e sóbrios, safamo-nos com as desejadas cervejas. A carne para churrasco está prestes a sumir.
Destacam-se na prateleira refrigerada pacotes de costeletas de cordeiro que uma folha branca rabiscada promove com criatividade tão nacionalista como básica: “Australia Day, Buy Australian Lamb”.
Encontramos também, a preço especial hiper-inflacionado, bifes de canguru com a forma característica da grande ilha, uma cilada do marketing matreiro do downunder em que muitos ozzies fazem questão de cair.
Na sua moradia espaçosa de Redcliffe, arredores de Perth, Mick e Jamie preparam saladas. Rod, o nosso gentil anfitrião, bebe Toohey atrás de Toohey.
Refresca-se assim dos calores do Verão austral e do grelhador em que cozinha o seu barbie preferido do ano.
Enquanto isso, a família próxima e amigos irrompem com espalhafato já semi-ébrio pelo jardim.
Meia hora depois, saem os primeiros burguers. a festa entra em piloto automático, como acontece em centenas de milhares de outras vivendas da vasta Austrália.
A Polémica Sempre Acesa em Redor do Dia da Austrália
O Dia da Austrália começou a ser celebrado em 1808. Desde então, transformou-se no maior evento público anual do país e numa comemoração tão popular como controversa.
A data em si é contestada por diferentes razões. Para começar, marca o dia da fundação da colónia de Nova Gales do Sul (26 Janeiro de 1788) acontecimento que muitos consideram não ter o relevo nacional adequado.
Depois, na opinião de outros contestatários, assinala, acima de tudo, o inicio do passado penal do país já que, nessa data, foram conduzidos para terra os primeiros condenados britânicos.
A mais grave das lacunas apontadas é o dia escolhido não contemplar a comunidade aborígene que a despreza seja qual for a perspectiva e prefere denominá-la de Invasion Day, Survival Day ou Day of Mourning.
A 26 de Janeiro, a Austrália está em plenas férias estivais. Promotores multimilionários levam a cabo os maiores festivais de música de Verão, casos do Big Day Out, do Hottest 100 e do Australia Day Live Concert.
Este último festival é emitido nos canais de TV aussies, à imagem do que acontece com as galas requintadas do prémio Australian of the Year e de algumas Citizenship Ceremonies que concedem cidadania a mais de dez mil imigrantes chegados dos quatro cantos do mundo.
Outros eventos característicos da “civilização” britânica galvanizam a nação aos seus próprios ritmos. Test Matches internacionais de criquete arrastam-se dias a fio na Oval de Adelaide.
Enquanto isso, um sortido de outras competições comprovam a vocação ozzie para o desporto e a vida ao ar livre.
Contra o Dia da Austrália, o Dia da Sobrevivência Aborígene
Ao mesmo tempo, em Sydney, de costas voltadas para os restantes compatriotas, os aborígenes levam a cabo o Survival Day Concert. Este evento comemora o facto macabro de nem todos os seus congéneres terem sido mortos pelos europeus.
Manifestações paralelas têm lugar nas cidades australianas com maior presença dos nativos que também reivindicam direitos nunca concedidos pelos governantes como a devolução dos vastos territórios ocupados.
Esta contra-celebração acontece há décadas. Tem conseguido sensibilizar as autoridades para a falta de bom senso e de sensibilidade com que era planeado o Australia Day.
De tal maneira que, nas últimas sondagens sobre o tema, 90% dos australianos reconheceu a necessidade de respeitar a população aborígene. E, a partir de 2006, o governo de Nova Gales do Sul introduziu no programa de comemorações eventos como o Woggan-ma-gule que conta com a presença de aborígenes e procura honrar o passado doloroso da colonização.
Apesar destas e de outras tentativas de reconciliação, a relação com os nativos continua por resolver. Não parece perturbar os festejos prevalecentes nem na vivenda de Rod, nem em Perth ou na Austrália anglófona em geral.
Da Casa de Rod às Margens já em Festa do Rio Swan
Deixamos a casa de Rod. Seguimos o grupo frenético em direcção às margens do rio Swan. Juntamo-nos aos 400.000 sandgropers (habitantes da Austrália Ocidental) que se concentram para assistir aos famosos fogos de artifício da cidade.
Pelo caminho, passamos por jardins de outras moradias também animadas por churrascos à beira de piscinas ou sobre relvados imaculados.
Rod e os seus convidados gritam “Aussie, Aussie, Aussie!!” a viva voz e em uníssono. Do lado oposto da rua, compatriotas alcoolizados respondem em jeito de eco e reclamam nova repetição do ritual.
Aos poucos, os espectadores distribuem-se pelas margens do rio. Asseguram a melhor vista possível para o Central Business District da metrópole onde a iluminação precoce promete uma entrada digna ao grande acto.
Já sobre o pôr-do-sol, helicópteros sobrevoam a área e fazem esvoaçar bandeiras australianas gigantescas.
Levam a multidão a um êxtase true blue fácil que é vocalizado com novos gritos australianos e reforçado pelo ondular de milhares de outras bandeiras mais pequenas.
Quando o ruído diminui, um pequeno clã de meia-idade, já farto da berraria impinge “Waltzing Matilda”, um dos temas incontornáveis do cancionário tradicionalista e nacionalista aussie.
O mote pega. Do nada, um coro solidário e comovido entoa e dança a canção do princípio ao fim.
Outros hinos quase se seguem mas, com a noite já instalada, dão-se os primeiros rebentamentos de fogo-de-artifício sobre os arranha-céus do outro lado do Swan.
Tanto o firmamento como a superfície alisada do rio, se enchem de cor.
As explosões repetem-se durante quarenta minutos e hipnotizam os espectadores. Por momentos, a nação da grande ilha entrega-se ao deleite efémero daquela visão e ignora os seus dramas por resolver.
Ou assim sentem os australianos que nunca por eles passaram.