O longo Verão da Ásia Central ainda mal começou.
O sol sobe no horizonte. Reforça o dourado da cruz de oito braços da igreja ortodoxa de Santo Alexei e o verde das árvores da avenida da Universidade.
Passaram-se 21 anos desde que o Uzbequistão aproveitou a oportunidade concedida por Gorbachov e se libertou do jugo do Kremlin. Muitos russos preferiram ignorar o fluir da história. Deixaram-se ficar onde estavam.
Como um pouco por todo o país, em Samarcanda, aproveitaram a vantagem social e económica antes conquistada pelas famílias e preenchem vagas nos melhores negócios e empregos. Vemos jovens mulheres orgulhosamente louras e belas percorrer os passeios a caminho do centro, sobre saltos altos, em vestidos apertados.
E homens de porte altivo preocupados em rentabilizar os seus investimentos, sejam ainda os desenquadrados soviéticos ou os recentes da nova era do Presidente todo-poderoso Karimov.
O Velho Entreposto de Culturas e Comércio de Samarcanda
Samarcanda sempre foi tida como um cruzamento de culturas. Acolhe gente de todas as partes, a começar pelos visitantes nacionais que aproveitam os curtos períodos de férias estivais para prestarem homenagem à cidade.
Chegamos à extremidade nordeste da avenida e damos com a estátua imponente e negra de Timur, o emir de linhagem mongol-turca que, no século XIV, conquistou um dos maiores impérios do mundo e fundou uma dinastia islâmica ambiciosa.
Examinamo-la, sem pressas, quando três uzbeques saem de um táxi e atravessam a rotunda circundante de forma incauta.
A um deles, fotógrafo de rua, a manhã tinha começado melhor do que esperava. Os dois compatriotas estavam prestes a deixar a cidade.
Resgataram-no do seu pouso laboral para poderem levar como recordação uma imagem de companheirismo e veneração, aos pés do grande monarca, terror dos inimigos mameluques, dos otomanos e até dos Cavaleiros Hospitalários.
Praça Registão, o Monumental Legado Timurida de Samarcanda
A praça Registão, a menos de um quilómetro, celebra o esplendor da era timúrida. Quando a encontramos, recebe os afagos de um batalhão de jardineiras dedicadas e a supervisão promíscua de vários “pepinos”, como chamam os uzbeques aos polícias da sua nação, por trajarem uniformes todos verdes.
Vemos chegar grupos coloridos de peregrinos muçulmanos, entusiasmados por estarem por fim diante das madraças mais emblemáticas do místico Turquestão. Acompanhamos os seus movimentos solidários até desaparecerem através dos pórticos imponentes.
A Ulugh Beg (1417-1420) e a Sher-dor (1619-1636) foram as primeiras a ser construídas. Confrontam-se e disputam o protagonismo arquitectónico da praça com a mais jovem, a Tilya-Kori (1646-1660) que surge de frente para quem chega.
Em tempos, funcionaram como escolas islâmicas proeminentes a que a população era convocada para ouvir proclamações reais e assistir a execuções públicas.
E o Legado Astronómico do Emir Ulugh Beg
Ulugh Beg, o último dos emires da dinastia, tinha muito mais para transmitir. Além de líder, provou-se um mestre matemático e astrónomo. Transformou a sua madraça numa das melhores universidades do Oriente Muçulmano.
Construiu ainda um observatório pioneiro do Espaço.
Nos nossos dias, as autoridades transformaram-no em museu, complementado com jardins desafogados que os habitantes da cidade adaptaram aos seus usos terrenos.
A Urgência Social Uzbeque do Casamento e Procriação
Juntamo-nos ao séquito de uma boda. Divertimo-nos a acompanhar os fotógrafos de serviço enquanto estes posicionam o casal contra um firmamento pintado num muro e ensaiam poses tão apaixonadas como saturadas com o véu da noiva a pairar sustentado por uma ausência ilusória de gravidade.
O matrimónio e as famílias sem fim são sagrados no Uzbequistão. As mulheres nativas perguntam-nos vezes sem conta se somos casados e quantos filhos temos. A resposta deixa-as quase sempre destroçadas. Algumas não se conseguem sequer conformar.
Raifa Egamnazarova mudou-se do Vale de Fergana para passar o fim-de-semana em Samarcanda. Usa um lenço branco que faz de moldura à face gasta de babusca ternurenta.
Permite que a fotografemos e exibe as suas íris de aço e os dentes de ouro.
A sessão fotográfica gera na senhora alguma apreensão: “Vocês vejam lá! O meu marido ainda vê isto nas revistas e vai-me perguntar se afinal fui às compras ou namorar para Portugal”.
Acaba por nos adoptar como filhos e, durante uma boa meia-hora, insiste que temos que lhe dar o primeiro neto já no ano seguinte.
A importância do casamento e dos laços familiares saíram incólumes das experimentações comunistas mas, durante era colonial russa e, depois, na soviética, foram destruídos vários edifícios sagrados do Islão e anulada a sua influência na sociedade.
O Absolutismo do Presidente Karimov e o Controlo do Islamismo
O Presidente Karimov adoptou parte da receita soviética e mantém a religião sob controlo. São poucas as madraças do país que continuam a servir os antigos propósitos.
As de Samarcanda não fogem à regra. Em várias, abrigam distintas famílias ocupam os antigos quartos térreos dos alunos com bazares de artesanato e outras recordações.
No interior da Sher-dor, um vendedor com visual portentoso de Nikhita Mikhalkov aproxima-se de Nilufar – a jovem guia que nos acompanha. Em russo, tenta impingir-lhe primeiro uma visita à sua loja de fotografia.
Não tarda, cassetes de vídeo poeirentas que afiança ilustrarem a glória da cidade a que se manteve fiel: “Diz-lhes lá que têm muito interesse para eles.
Escusam de ter tanto trabalho com essas máquinas enormes! Só custam 20 euros…”. Contagiados, logo, outros vendedores de visual uzbeque, tentam convocar-nos para os seus mini-mercados e montras.
A Era Próspera da Rota da Seda
Nos tempos da Rota da Seda, o comércio devia fluir bem melhor que agora.
Samarcanda estava a meio caminho entre a China (Xi An), e as civilizações do Mediterrâneo, sobretudo Roma. Produtos valiosos da Ásia e da Europa que seguiam nas duas direcções sobre longas caravanas de camelos, encontravam compradores durante o percurso e nos destinos finais.
A exótica seda justificou a longa jornada da família veneziana Polo que chegou a viver na vizinha Bukhara até prosseguir para leste e cair no goto do Imperador mongol Kublai Khan. Anos mais tarde, Kublai Khan nomeou os Polo embaixadores das suas mensagens para o Papa. Fez deles seus diplomatas para outras missões.
De acordo com Marco Polo, algum tempo depois da segunda visita do seu pai e tio à China – a primeira de Marco – , os três Polos pediram várias vezes ao Imperador para regressarem à Europa.
O Khan apreciava de tal forma a sua companhia que lhes terá adiado vezes sem conta a partida. Sem alternativa, os Polos conformaram-se com respeitar a sua vontade.
Estaline e outros líderes Soviéticos levaram adiante distintos caprichos.
A Era do Algodão, o Ouro Branco que Tomou o Lugar da Seda
Por altura da vigência de Estaline, o algodão era conhecido por Ouro Branco, tinha um enorme valor comercial. Atraídos pela fortuna que poderiam cultivar na então colónia uzbeque, os políticos do Kremlin decretaram o desvio da água do Mar de Aral e dos principais rios do pais para irrigar plantações sem fim nos desertos de Kyzyl Kum e Aral Kum.
A experiência confirmou-se tão catastrófica em termos ambientais como lucrativa. O algodão é, ainda hoje, a principal produção do Uzbequistão e da região de Samarcanda.
Mas nem todas as heranças Soviéticas geraram tal polémica. Uma frota de automóveis Lada continua a circular em Samarcanda e resiste à substituição pelos recém-chegados modelos Chevrolet.
Depressa aprendemos a valorizar esta longevidade. As estradas secundárias da cidade revelam-se destrutivas como poucas e os homens uzbeques – por norma, tranquilos e corteses – entusiasmam-se com frequência ao volante dos seus bólides envelhecidos.
Por alguma razão que não conseguimos apurar, parecem gerar mais adrenalina e testosterona – e, por consequência, muito mais buzinadelas, discussões, colisões e amolgadelas – em Samarcanda que no resto do país.