Passeamos pelo coração da fazenda produtora de humidade da família Lars.
Não encontramos sinal de Luke Skywalker nem de nenhum outro membro do vasto clã que habitava desde há muito aquelas paragens imaginárias.
São humanos reais – tanto nativos e residentes como vindos de longe – os que vemos em redor e no fundo das muitas cavernas escavadas no solo arenoso a sudeste do oásis de Gabes, não na Grande Planície imaginária de Sal de Chott, nem nas terras desoladas e fictícias de Jundland.
Também foi só no ecrã que esta quinta em que Luke Skywalker cresceu até aos 19 anos, criado por Owen e Beru, foi queimada pelo Império Galáctico quando o seu exército buscava os droids C-3PO e R2-D2.
Estamos em Matmata, uma cidade troglodita real e hoje tunisina e em que, tal como há milhares de anos, mais de 6.000 mil terráqueos empregam estas concavidades como seus lares, silos, armazéns e até negócios.
O Covil Terráqueo e Tunisino de Matmata
Circundamos cinco fossos redondos. Espreitamos para dentro com cuidado redobrado para evitarmos cair para o fundo. Nos dias que correm, o complexo filmado como casa dos Lars é o hotel de Sidi Driss.
Quatro destes fossos abrigam quartos espartanos. O quinto faz de restaurante. Abriga e serve viajantes entusiasmados pela excentricidade do estabelecimento e dos cenários da região, em particular por aqueles seleccionados pela equipa de George Lucas para ilustrar Tatooine, o primeiro planeta do sistema solar binário Tatoo.
Um astro bem mais ressequido e peculiar que a paisagem que o inspirou.
A base deste quarto buraco argiloso está caiada e pintada de anil. Foi dotada de janelos e portas ogivais ou redondas distribuídas pela circunferência. Ouvimos gritos abafados provenientes ora de umas ora de outras.
Nada que se equipare ao som do sabre de laser do protagonista de Guerra das Estrelas ou das armas futuristas com que os seus inimigos e aliados se confrontavam.
A Realidade Agora Apenas Restaurante de Sidi Driss
Em vez, empregados de mesa lutam contra o tempo e os patrões. Atravessam o pátio terroso atrasados e apressados, com tabuleiros cheios de comida e bebidas. Ou, no sentido inverso, das louças que os acomodavam.
A ausência de referências da saga está, todavia, longe se ser total. Um respiradouro branco conserva um disco dourado com design espacial. Várias molduras de portas preservam estranhas ranhuras modulares. Ambos os itens foram herdados das filmagens.
Após o primeiro filme “Uma Nova Esperança”, o décor foi todo removido. Em 2000, a sequela “Ataque dos Clones” obrigou à reconstrução de grande parte.
Hoje, sejam ou não fãs, os hóspedes ou visitantes do hotel almoçam ou jantam com uma sensação nem que seja ligeira de que fazem parte da saga. Como vemos acontecer vezes sem conta, fotografam-se a emular as cenas mais emblemáticas da epopeia sideral.
O Culto Obsessivo dos Fãs da Guerra das Estrelas
Segundo nos conta Raisha, uma guia local, alguns dos seus adictos não se contentam com tão pouco: “Há uns tempos, soubemos por cá que um grupo criou um fundo para recuperar o exterior da fazenda dos Lars! Reuniram quase 15 mil dólares!“ informa-nos ainda, incrédula pelo valor exorbitante que mereceu aquele iglô perdido num nenhures desértico de Chott El Jerid.
O iglô foi destruído após a filmagem da primeira trilogia, reconstruído para o “Ataque dos Clones” e “A Vingança de Sith” e, logo, abandonado à erosão.
“Não só angariaram o dinheiro como vieram cá uns cinco ou seis amigos salvadores em excursão. Só voltaram depois de o reconstruir.
Mais tarde, apresentaram o projecto, todos contentes, na Alemanha, parte de uma efeméride qualquer da “Guerra das Estrelas” e ainda lançaram um livro a descrever tudo.”
De Matmata a Tataouine. E de Tataouine à Tatouine da Guerra das Estrelas
Aproveitamos a relativa proximidade. No dia seguinte, vamos até Tataouine onde já começara um festival étnico e cultural emblemático da Tunisia, o dos Ksour. Quando chegamos, a zona estava sob uma tempestade de areia. Mantinha-se envolta de uma atmosfera algo marciana, ocre, poeirenta, bem mais húmida do que é suposto num deserto.
George Lucas e os seus colaboradores poderão não ter tido a mesma sorte – ou azar, consoante o ponto de vista – fosse como fosse, os cenários extraterrestres de Tataouine inspiraram de tal forma o realizador que este tomou o seu nome de empréstimo para a saga.
O nome e não só.
Numa visita aos arredores da cidade, a visão inesperada dos ksour, celeiros fortificados de areia compacta. Admiramo-los projectados do solo, divididos em diversas ghorfas (células armazenadoras) revelaram-se modelos perfeitos para a ala dos escravos do porto espacial de Mos Espa, lar de Anakin e de Shmi Skywalker, em grande destaque no primeiro episódio, “A Ameaça Fantasma”.
Um marco histórico escrito em rodês (um dos vários dialectos a fingir dos povos em conflito) proclamava à entrada deste lugar modular e obscuro: “Forjámos esta cidade sob o calor de sóis gémeos, em memória dos nossos antepassados, em honra dos nossos clãs vivos e pela esperança das nossas crianças por nascer.”
A Atmosfera Berber e Desértica que Inspirou os Cenários da Guerra das Estrelas
Os berberes de Tataouine são pouco dados a publicitar escritos assim pomposos. Quando entramos no ksar Ouled Soultane decorre a visita de um político de Tunes e os anciãos de diversas tribos participam num convívio banqueteado.
Numa dimensão real, terrestre e fortemente fotogénica, a sua mera presença reveste-se de um simbolismo análogo ao do marco de Mos Espa.
Observamos a beleza secular e exótica das suas jilabas brancas, amareladas pelo tempo. Indagamo-nos se, com certa influência nipónica (dos quimonos) à mistura, não teriam iluminado a criação de várias das vestes sui generis da Guerra das Estrelas.
Nos últimos dias deste périplo, mudamo-nos para a ilha mediterrânica de Djerba, a maior ao largo do norte de África, em que se diz que Ulisses e os seus companheiros da Odisseia desembarcaram. E de que os últimos não queriam mais partir, deliciados com aquela espécie de oásis flutuante e com as suas infindáveis frutas suculentas.
Em Djerba, deixamo-nos perder nas ruelas e no mercado agitado da capital Houmt Souk. Em redor, passamos por povoações campestres embelezadas por inúmeros menzeles, casas tradicionais em parte abobadadas, cercadas de oliveiras e palmeiras, em jeito de monte alentejano berbere.
Ao investigar este outro reduto da Tunísia, George Lucas e a sua equipa repararam – como também nós reparámos – na abundância de burros que os camponeses e pescadores carregavam com de tudo um pouco.
Ora, não terá sido coincidência que o animal de carga de eleição de Tatooine se chamasse jerba. Tão excêntricas quanto úteis, estas criaturas tinham um pelo longo e desgrenhado. Forneciam leite, couro e o seu pelo. Eram criadas pelos bem mais esdrúxulos Pacithhips. E por Swilla Corey, uma humana loura nascida escrava, carteirista em part-time.
Em Djerba, ainda espreitamos o edifício que deu origem à cabana de retiro de Obi-Wan Kenobi e outros usados em cenas passadas em Mos Eisley, um segundo porto espacial que mereceu que Obi-Wan Kenobi alertasse Luke Skywalker de que “nunca encontraria um antro mais desprezível de escumalha e de vilãos”.
A Djerba real deixa-nos nas mentes uma imagem contrária, de honestidade, tranquilidade e de harmonia.
Fãs contidos como sempre fomos, por essa altura, apreciávamos melhor que nunca a riqueza perversa da imaginação de George Lucas.
Tínhamos bem presente que a Terra era uma coisa, Tatooine era outra.