Era o segundo Natal que passávamos na Austrália. Dois anos antes, andávamos entre a cidade costeira de Cairns e o ilhéu de areia de Michaelmas Cay.
“Cleaning Service, mates!! Cleaning service!!” São apenas dez da manhã.
Como é hábito nestas paragens anglófonas do outro lado do Mundo, os empregados de limpeza aparecem determinados a expulsar-nos do quarto, indiferentes ao espírito de Natal, à mais que provável necessidade de dormir dos hóspedes, aos preços inflacionados de qualquer quarto de Cairns e ao facto de que, na maior parte do resto do Mundo, os check-outs se fazem pelo meio-dia.
Já andávamos fartos de nos revoltarmos com tal injustiça. Em vez, apressamo-nos a arrumar o que ainda tínhamos para arrumar, entregamos as chaves. Entramos na velha carrinha que, à falta de campervans (esgotadas), tínhamos alugado para vaguearmos pelo norte selvagem de Queensland.
Deixamos Cairns.
Ligamos o motor rabugento e o rádio de museu pré-sintonizado na estação Triple J, sempre animada por apresentadores jovens e irreverentes, às vezes até malcriados, assim ouvimos queixarem-se alguns dos seus compatriotas bota-de-elástico.
Viagem de Carripana ao Desconhecido das Atherton Tableland de Queensland
Que viessem os impropérios. O dia tinha amanhecido glorioso. Estávamos pouco dispostos a abdicar do melhor pop/rock que alguma vez poderíamos encontrar nos quase nenhures australianos que íamos começar a explorar.
A carripana arrasta-se por uma sequência de ladeiras da Gillies highway.
Eleva-nos das terras lisas e cobertas de cana-de-açúcar plantadas à beira do Mar de Coral para o reduto superior do planalto de Atherton.
Contornamos, em câmara lenta, o monte de Walshs Pyramid quando a Triple J recupera o mega-sucesso aussie “We are the People” do duo feito excêntrico Empire of the Sun.
A energia e o imaginário contagiante da canção remetem-nos para as mais fascinantes paragens da Oceânia.
Yungaburra: uma Austrália Pitoresca mas Quase Deserta
Alguns quilómetros depois, ainda embalados pelo inesperado catalisador musical e com a inevitável euforia de quem manda no Mundo, damos entrada em Yungaburra. Percebemos, num ápice, que por aqueles lados, quase não encontraríamos súbditos.
A área em redor de Yungaburra era habitada por dezasseis povos aborígenes quando os mineiros que viajavam da costa pelo interior selvagem do Outback ali começaram a pernoitar e, anos mais tarde, a instalar-se.
Em 1910, o caminho-de-ferro também chegou. Trouxe o desenvolvimento da povoação e a morte de mais de 80% dos indígenas, devido à introdução de doenças e a conflitos com os colonos.
À medida que percorremos as ruelas de postal perfeito de Yungaburra, entre edifícios de Faroeste australiano do século XIX, contagia-nos a impressão de que ninguém – nem nativos nem invasores – havia sobrevivido.
Na actualidade, Yungaburra até era num dos refúgios de fim de semana predilectos dos escravos do dinheiro de Cairns mas, no dia de Natal, os donos dos pequenos negócios turísticos ou estavam reféns no interior dos lares ou tinham oferecido às famílias férias noutros lugares.
Entre os potenciais visitantes, só nós desconhecíamos o porquê daquele abandono de 5ª Dimensão a que fora votada a terriola.
Já de saída, passamos em frente a um pitoresco Whistle Stop Cafe.
Vemos, aí, a primeira das excepções, uma residente de telemóvel colado à orelha, enterrada num sofá à sombra de um alpendre ajardinado.
Confrontados com a sua imobilidade, questionamo-nos se não se trataria de um qualquer humanóide decorativo.
À Deriva pelo Atherton Tableland em Redor de Yungaburra
Prosseguimos para fora povoação.
Ditava o bom-senso que devíamos reabastecer o tanque da carripana. Na estação de serviço Frogs & Fuel, insinuava-se apenas um boneco gigante de sapo que os proprietários, ausentes, mantinham a espreitar do cimo da cobertura garrida da bomba.
Na capela da vila, no seu hotel Eachman e pelos arredores desafogados, mais uma vez, nem sinal de gente, nem da quadra religiosa por que meio mundo e – até então, pensávamos nós – toda a Austrália passava.
Estamos já nos arrabaldes verdejantes de Yungaburra quando nos assalta outra miragem perdida entre a familiaridade terráquea e a excentricidade de um qualquer parque temático dedicado a Sir Arthur C. Clarke.
Em Busca de uns Ornitorrincos Fugidios
A uns meros vinte metros da beira da estrada, sem mais vivalma por perto, apercebemo-nos de três figuras, para não variar imóveis. Estão instaladas sobre um tronco deitado, com as cab
eças enfiadas em igual número de aberturas rectangulares de um tapume feito de ripas de madeira.
Resolvemos deslindar a mais recente extravagância do planalto de Atherton.
A taipa tinha escarrapachado a vermelho vivo o seu estatuto de “Platipus Viewing Platform” e é já como parte de um quinteto disforme, quedo e quase mudo que nos dedicamos a avistar ornitorrincos no braço de rio abaixo.
Dos cinco observadores, só o mais australiano – chamemos-lhe assim porque usava o clássico chapéu aussie akubra – está munido de binóculos.
Diverte-se a observar e a segredar aos vizinhos o que alegadamente avista. Forasteiros e estranhos que somos, não recebemos a mesma atenção. Retínhamos que os bichos eram uma espécie mamífera e ovípara com aspecto de castor cruzado com pato.
Após vinte minutos sem vestígio das criaturas reais, abandonamos a plataforma amuados com a pobreza da memória visual.
A Figueira das Índias Estranguladora Curtain Fig Tree
Voltamos à estrada determinados em compensar essa frustração e ainda a ausência absoluta de árvores de Natal no planalto com a apreciação cuidada de uma das figueiras-das-índias mais impressionantes do hemisfério sul.
Com 500 anos de idade e abundantes tentáculos estranguladores de mais de quinze metros, próprios de uma das criaturas horripilantes da saga “Aliens”, a Curtain Fig Tree foi assim chamada precisamente devido à longa cortina que teceu.
Ao longo dos tempos, apoderou-se e fez tombar a sua árvore hospedeira sobre outra ao lado. Depois, estrafegou também a segunda. Desta forma inclemente, causou o apodrecimento de ambas em função da sua própria estrutura e supremacia vegetal.
Hoje, provoca em quem quer que a contorne e examine um deslumbramento à altura.
E o Suspeito Lago Eachman
Estávamos a chegar a meio da tarde e, apesar dos quase mil metros de altitude da zona, o calor estival tinha-se intensificado pelo que decidimos refrescarmo-nos nas águas frescas do lago Eachman, um dos vários que salpicam a paisagem sempre ervada da região.
Quando nos aproximamos da margem, partilhamo-lo apenas com pequenas tartarugas. Parece-nos perfeito para uma boa natação, até porque, nem o guia-livro com que nos orientamos nem uma qualquer placa menciona a presença de crocodilos.
Mesmo assim, enquanto alternamos de estilos e convivemos no longo percurso até à margem oposta e de volta, arrepia-nos a ínfima possibilidade de estarmos a cruzar território daqueles repteis.
Livramo-nos temporariamente desse receio quando, já na segunda metade do regresso, vemos um grupo de piqueniqueiros ozzies, a chapinharem e a divertirem-se sobre colchões insufláveis.
À noite, já na Internet, descobrimos vários relatos e avisos de que, afinal, lá eram avistados com frequência espécimes de crocs de água doce.
Celebramos com sorrisos amarelos o facto de não os termos nutrido.
Derradeiros Quilómetros Diurnos num Estranho Espírito de Natal
Seguimos para outro lago, o Barrine, em que detectamos de imediato uma fauna e flora mais indicadas a documentários de vida animal do que a novas natações. Junto à orla, avistamos mais tartarugas e dragões d’água.
Para dentro da grande lagoa, grandes bandos de pelicanos e de outras aves.
Atrai-nos ainda o acolhimento de uma casa de chá ancorada mais à frente mas, como já receávamos, o estabelecimento está fechado.
Ladeamos a estrutura e, na margem por detrás, damos com uma família aborígene em pleno êxtase balnear e afectivo. “Melhor Natal que esse é impossível!” atiramos para nos metermos com eles.
Ao que a matriarca volumosa e semi-vestida responde com boa disposição: “Bom, a criançada não podia estar mais feliz, isso é certo. Muito melhor isto do que nos estarem a chatear com prendas!”
Fizemos fé na sua alegria e tranquilidade.
Aproveitámos a derradeira luz solar da quadra em novos e deliciosos banhos lacustres.