Já quase a chegarmos aos domínios húmidos e luxuriantes da velha Roça Saudade, distrai-nos uma estranha visão.
Ambos os lados da ladeira empedrada surgiam, ali, como leitos vegetais, feitos de uma espécie de tufos de algodão e de folhas amarelas, outras, mais velhas, de um laranja gasto, todas elas vítimas de um Outono que a equatorial São Tomé desconhece.
Abrimos as portas do Jimny para obtermos uma sensação de tacto. Estamos nessa experiência quando dois santomenses aparecem do fundo da ladeira, a caminharem sobre o dito tapete.
Um deles, o mais novo, vem de galochas, calções vermelhos e polo desportivo azul, um pretenso uniforme da equipa de futebol australiano de Camp David.
Por si só, o quadro já se provava inusitado. Como se não bastasse, o rapaz leva pendurado ao pescoço um rádio leitor de MP3, portátil e peculiar, de marca Somitec, Made in China, nem esperávamos outra coisa.
Detectamos algum surrealismo na cena. Esforçamo-nos por a retratar. O rapaz segura a telefonia com as duas mãos. Concede-nos um prenúncio de sorriso que vai bem com a frondosidade verde do fundo.
Ele e o adulto seguem pelo caminho aveludado. Nós, ficamos mais uns instantes a examiná-lo.
Quando retomamos a viagem, assalta-nos a mente o que resultaria se, em vez de nós, tivesse sido o multifacetado e irrequieto Almada Negreiros a cruzar-se com um quadro daqueles, para mais, na sua terra.
Enquanto o cogitávamos, rendemo-nos à evidência de que, mesmo no curto período em que viveu no coração da ilha, excentricidades equatoriais não lhe terão faltado.
Estava São Tomé em questão.
Poucas ilhas ocultam o exotismo selvagem e de fim do Mundo no meio do Mundo que São Tomé e que Príncipe preservam.
Chegada a Saudade e à Casa-Museu Almada Negreiros
Completamos a rampa. Pouco depois, damos com o espaço da Roça Saudade.
Delimitavam-no três ou quatro canas de bambu.
Opostas a um vulto recortado e negro de Almada destacado num jardim bem cuidado, de frente ou de costas – a posição da figura parecia-nos ambivalente – para o edifício renovado da propriedade.
Passamos para o lado de lá da fachada. Uma escada em L conduz-nos à base de alvenaria secular do edifício, agora recuperada.
Desvendamos o muro que abrigava os degraus, ilustrado com o famoso início “Basta pum Basta!” do Manifesto Anti-Dantas, complementado com as citações de Negreiros:
“As pessoas que mais admiro são aquelas que nunca acabam”. A civilização é um fenómeno colectivo. A cultura é um fenómeno individual.” esta última, de “Cultura e Civilização” que o também poeta inaugurou com “Uma mesa cheia de feijões”.
Joaquim Victor. Filho de Saudade, Mentor da Casa-Museu Almada Negreiros
Do lado de lá do mural, espera-nos nova escadaria, esta, de madeira. E, no cimo, o jovem empreendedor Joaquim Victor, também ele, filho de Saudade.
Foi Joaquim o responsável pela recuperação do lugar de nascimento de Almada Negreiros, mesmo que, de início, não soubesse – como não sabia quase ninguém, em São Tomé e Príncipe – que o artista era natural da Roça Saudade.
Joaquim Victor, pressente, pelas horas que eram e pelo nosso ar desvigorado, que precisávamos de recuperar energias. Senta-nos a uma mesa da esplanada alpendrada, com vista para a selva coberta de névoa que dali se prolonga na direcção do Atlântico.
Joaquim Victor explica-nos que o único documento que descreve a velha Roça Saudade é o livro “Almada Negreiros Africano” da autoria do Padre António Ambrósio, missionário em São Tomé, escritor dedicado a registar os modos e costumes da ilha, e que assim a descreveu:
“A casa onde Almada nasceu, na sede da Roça Saudade, estava suspensa sobre uma profunda grota e aberta à nascente por uma varanda corrida ao estilo tropical, para um mar de verdura que, depois da primeira quebra, se espraiava numa ondulação aparentemente suave por vários quilómetros de extensão, em forma de leque rendilhado, até ao mar oceano.”
À mesa, em vez de feijões, Kim, como é também conhecido, serve-nos um peixe-agulha, acompanhado de batata-doce, beringela e maracujá. Saboreamos o interior de São Tomé num deleite com que concorre a beleza da paisagem na iminência do enigmático Parque Natural Ôbo.
Roça Saudade, o Berço Equatorial de Almada Negreiros
É desconhecido da maior parte dos portugueses e até dos apreciadores de Almada Negreiros que o artista por ali nasceu. E que viveu os primeiros anos da sua vida nestes confins clorofilinos do Equador.
Joaquim Victor elucida-nos, aliás, que, Almada Negreiros começou a ser descoberto, em São Tomé e Príncipe, apenas partir de 2014, devido à sua intervenção na Roça Saudade.
Daí, para cá, tornou-se uma espécie de moda histórica que ele tem feito por fomentar.
Em jeito de testemunho da sua criancice santomense, o muro que envolve a escadaria exibe ainda parte de um dos poemas em que Almada celebrou a infância e o afecto maternal.
“Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois, venho sentar-me ao teu lado…”
“Mãe! Passa a tua mão na minha cabeça! Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade…”
A mãe mencionada, Elvira Sobra de Almada Negreiros, era uma mestiça santomense abastada. O marido, pai de Almada, era António Lobo de Almada Negreiros, natural de Aljustrel, tenente da Cavalaria, jornalista, escritor, ensaísta e maçon. Mais tarde, nomeado administrador do concelho de São Tomé.
A Presença do Padre António Ambrósio na Vida da Família Negreiros
O Padre António Ambrósio que já antes mencionámos, além de uma espécie de cronista de São Tomé, era responsável pelos sacramentos no interior da ilha.
Levou a cabo o baptismo do recém-nascido Almada, na Igreja da Trindade, hoje, capital do distrito de Mé-Zóchi. E narrou-o assim no seu livro “Almada Negreiros Africano”:
«Aos vinte e quatro dias do mez de Junho do anno mil oitocentos e noventa e três, nesta Egreja Parochial da Santíssima Trindade, Concelho de S. Thomé, Diocese de S. Thomé e Príncipe, baptizei solemnemente um indivíduo do sexo masculino, a quem dei o nome de – JOSÉ- e que nasceu nesta freguesia, na Fazenda Saudade, às tres horas da manhã do dia sete do mcz d’ Abril do anno de mil oitocentos e noventa e tres, filho illegítimo de digo legitimo de António Lobo d’ Almada Negreiros, casado, natural de Portugal, proprietário, agricultor e de Dona Elvira Sobral de Almada Negreiros, casada, natural desta freguesia, proprietária, parochianos desta freguesia, moradores na mencionada Fazenda, neto paterno de Pedro d’ Almada Pereira e de Margarida Francisca de Almada Lobo Branco de Negreiros. Foi padrinho José António Freire Sobral, casado, proprietário e agricultor e madrinha Dona Marianna Emília de Souza Sobral, casada, proprietária e agricultora, os quaes todos sei serem os próprios. E para constar lavrei em duplicado este assento que depois de ser lido e conferido perante os padrinhos comigo o assignaram.”
Já o pai António Lobo, também ele autor conceituado, fez questão de dedicar um poema da sua obra “Equatoriaes” ao rebento, à data de 7 de Abril de 1894, com um ano de idade.
Um anno! Um beijo de luz
Na tua fáce, criança!
Suavíssima esperança
Que desabrócha e seduz!
Nunca se acábe a bonança
Que a tua frônte tradúz,
Como um beijo de Jesus
Da Mãe na virginea trança
A Tragédia e o Retorno dos Almada Negreiros à Metropole
Em 1895, apenas dois anos após ter dado à luz José Sobral de Almada Negreiros, Elvira Negreiros faleceu. A morte da esposa feriu a “Suavíssima esperança” de António Lobo e o alento de continuar em São Tomé.
Desamparado, o administrador decidiu regressar à Metrópole.
Viveu, nos primeiros tempos, em Lisboa. Internou José Sobral e o irmão António no Colégio Jesuíta de Campolide. Lá permaneceram ambos até 1910, quando a Implantação da República ditou o fecho do estabelecimento.
O ano de viragem para o século XX, ia contar com o evento incontornável da Exposição Universal de Paris. António Lobo foi nomeado responsável pelo Pavilhão das Colónias com que Portugal se vangloriou.
Não voltou a viver em São Tomé.
José Sobral de Almada Negreiros, o predestinado Almada, cresceu, assim, na Roça Saudade apenas até aos dois anos. Seria de todo impossível encontrar, na propriedade, algum seu legado artístico santomense.
Legado Precioso da Roça Saudade
Como nos sublinha Joaquim Victor, a realidade provou-se distinta no que disse respeito à vivência da família na roça até ao final do século XIX.
“Com o tempo, a casa degradou-se muito. Tornou-se um perigo latente para as crianças que habitavam a Saudade e em volta, que se aventuravam a explorá-la e a brincar nas suas ruínas.”
Os trabalhos de recuperação geridos por Kim tiveram início a partir dos alicerces originais da casa alpendrada. Foram realizados à mão, com muita paciência e com a descoberta recompensadora de centenas de cacos dos tempos dos pais e dos avós de Almada.
Parte deles, provinham de fábricas portuguesas de loiça conceituadas como o foram a Sacavém e a Alcântara.
Joaquim, fez questão de os guardar, com a intenção de, mais tarde, os expor.
Desviamo-nos, por momentos, da Casa Museu Almada Negreiros, com a ideia de espreitarmos a cascata de São Nicolau, dela próxima.
Quando regressamos, dá entrada na ex-Roça Saudade mais um grupo de estudantes, provindos da capital, dos muitos que agora aprendem nas escolas sobre Almada.
E que, orgulhosos do seu berço em São Tomé, viajam ao âmago da ilha para o visitar, em incursões introspectivas à cultura santomense, em explorações semi-ordeiras da civilização equatorial da ilha.