Despedimo-nos dos guias Hector e Saturnino e do Centro de Interpretação que serve de portal ao domínio Biosfera da UNESCO de Jaragua e que tínhamos explorado horas a fio. Voltamos a deter-nos no Colmado Alba.
Lá nos reabastecemos de bebidas para o trajecto ainda longo e árido na direcção da fronteira com o Haiti que íamos completar.
A estrada 44 leva-nos da margem norte da Laguna de Oviedo para o interior de Pedernales, pelo limite superior do Parque Nacional Jaragua, a maior área protegida da República Dominicana.
São quase 1400 km2 sobretudo de floresta árida, que se estende até ao extremo sul da ilha de Hispaniola, com prolongamento marinho em duas ilhas menores ao largo, a Beata e a ilha de Alto Velo.
Sucedem-se pequenas povoações perdidas na vastidão ressequida pelo sol tropical, casos de Tres Charcos e de Manuel Goya.
À medida que nos aproximamos da cidade fronteiriça de Pedernales, o relevo torna-se caprichoso. Serpenteamos entre cactos, arbustos espinhosos e, aqui e ali, entre grandes rochas de calcário pejadas de arestas cortantes.
Carlos, o guia e motorista explica-nos que, a hostilidade do clima, da flora e do terreno, a muralha divisória de 190km e as patrulhas regulares das autoridades dominicanas têm evitado a passagem de migrantes haitianos para a parte oriental de Hispaniola.
Nem de propósito, momentos depois, cruzamo-nos com um camião carregado com uma quase pirâmide multicolor, feita de grandes sacas sabe-se lá de quê.
Uma rede densa de cordas apertadas mantinha a carga empilhada e estável. O suficiente para, no seu topo, seguirem ainda três passageiros refastelados.
A Complexa Cisão Histórica e Territorial da Ilha de Hispaniola
Estão a vê-los, lá no cimo? São haitianos. Estes, passaram pela aduana de Pedernales. Estão em trabalho e devem voltar ao fim do dia. Mas, como eles, muitos outros entram a pé por trilhos estreitos que só eles conhecem.
Por muito mal que lhes corra a travessia, nunca será pior que a vida que os haitianos têm do lado de lá.”
Esta realidade actual e a evolução das nações vizinhas de Hispaniola após a cisão ditada pelo triunfo dominicano na Guerra de Independência da República Dominicana (1844-56) formavam um tema que nos intrigava.
Por altura da cisão de 1844, o território dominicano integrava o grande Haiti, aumentado, quando 22 anos antes, o Haiti francófono invadiu a República do Haiti Espanhol.
Até 1790, o Haiti foi a colónia francesa mais rica das Américas, muito graças aos lucros astronómicos gerados pela exportação de açúcar e de índigo produzidos por centenas de milhares de escravos raptados em África.
Os ventos sopravam de feição para os colonos sem escrúpulos quando os ideais da Revolução Francesa de 1789 chegaram às Américas.
Haiti: o Primeiro País do Mundo a Resultar duma Revolta de Escravos
Decorridos apenas quatro anos, deflagrou, no Haiti, uma primeira revolta dos escravos que conseguiu a abolição da escravatura. Nesse contexto, os colonos debandaram. Fugiram em grande número para o território da Luisiana norte-americana a norte.
Instigado pelo apoio (também financeiro) destes colonos frustrados, Napoleão Bonaparte ainda tentou dominar as forças revoltosas.
Os seus homens resistiram pouco tempo à febre amarela e às emboscadas das forças insurrectas de Jean-Jacques Salines, victoriosas ao ponto de, em 1804, terem proclamado o Haiti independente, o primeiro país do mundo, resultante de uma revolta de escravos.
A auto-determinação e a liberdade que se seguiram não geraram prosperidade à altura. Longe disso. Daí em diante, sem a linha condutora económica esclarecida mas opressora dos colonos, o Haiti só se degradou.
Povos que tinham tudo para ser um mesmo, separaram-se para sempre.
Se, em 1790, era considerada a colónia francesa mais abastada das Américas, por altura do nosso périplo pela República Dominicana, permanecia, só e abandonado, na posição de país mais pobre do Hemisfério Ocidental.
Sem o esperarmos, também nos vimos vítimas da vulnerabilidade e instabilidade em que há muito vivia.
Incursão ao Haiti Falhada, Mais Tempo no Sudoeste da República Dominicana
Ao passarmos por uma pequena feira turística a ter lugar em Puerto Plata, visitamos os stands de duas empresas haitianas que organizavam tours a lugares imperdíveis da Pérola das Antilhas.
Pré-acordamos que, daí a uns dias, nos iriam guiar num dos seus itinerários. Mantemo-nos em contacto.
Quantos mais dias passavam, mais se agravava uma vaga de manifestações, de motins e de violência provocada, primeiro, pelo aumento dos preços dos combustíveis.
Logo, pela sua dramática indisponibilidade que levou a que o povo haitiano, conduzido pela oposição, exigisse a resignação do presidente Jovenel Moise, de maneira a terminar com a corrupção generalizada e a dar lugar a políticos que viabilizassem a instauração de programas com genuínas preocupações sociais.
Até deixarmos a República Dominicana para uma longa viagem rumo ao fundo da alpondra das Pequenas Antilhas, nada se havia resolvido. Os anfitriões reconheceram que correríamos demasiados riscos.
Com o projecto Haiti adiado para uma próxima oportunidade, dedicamos algum tempo adicional ao sudoeste alternativo das regiões de Barahona e Pedernales. Por onde Carlos, dominicano de gema, nos continuava a conduzir.
Cabo Rojo: Recanto Semi-Perdido e Braseiro da República Dominicana
Centenas de meandros se seguiram, ainda e sempre, pelo meio da paisagem verdejante mas espinhosa e áspera de Jaragua. Deixamos para trás Monte Llano e os Pozos Ecológicos Las Abejas e de Romeo Francés, nascentes cristalinas que brotam das profundezas calcárias da zona.
Uns poucos quilómetros depois, a carretera 44 funde-se com a perpendicular de Cabo Rojo. No mapa, só esse promontório arredado e ocre nos separava do destino final.
Já por um domínio rodoviário de terra mais arenosa que batida, roçamos o extremo oeste do aeroporto doméstico local, uma obra faraónica, se tivermos em conta o fluxo aéreo quase nulo que sustenta.
Na continuação, ainda num cenário de surreal e desolado remanso caribenho, deparamo-nos com o tão ou mais inactivo Porto de Cabo Rojo.
O sol andava pelo seu zénite. Quando deixamos a carrinha, o calor seco oprime-nos bem mais do que estávamos a contar. Além de iminente, o ondular do Mar das Caraíbas soava-nos a urgente.
A Tragédia Encalhada do Cargueiro “Fayal”
Sonhávamos já com um delicioso mergulho quando Carlos nos indica a razão porque ali tínhamos parado. “Estão a ver aquele monstro? Tão cedo ninguém o vai tirar dali.”
Referia-se ao “Fayal” um cargueiro da Cementos Andinos Dominicano que, à data da tragédia que o encalhou, se encontrava fundeado havia mais de um ano por determinação judicial.
Pois, em Agosto de 2017, sem que então acolhesse tripulantes, deflagrou a bordo um incêndio furioso que o Ministério do Meio Ambiente e a Armada da República Dominicana se viram aflitos para controlar.
Nessa altura, o porto de Cabo Rojo encontrava-se inoperacional devido a danos provocados por alguns dos ciclones que, de quando em quando, assolam Hispaniola.
Contemplamos o cargueiro preso pelo fundo do mar pouco profundo e esverdeado, o seu cadáver envelhecido e enferrujado a contrastar com a alvura coralífera do areal e com a pintura festiva de um barquinho em doca seca, o “La Chucha”.
Prosseguimos pela carretera Cueva Los Pescadores, até à longa Praia La Cueva.
Praia La Cueva de Los Pescadores, um Curto Preâmbulo do Destino Final
Carlos estaciona num povoado que agrupava alguns restaurantes, pousadas e sedes operacionais de empresas que proporcionavam, aos visitantes, incursões ao litoral cimeiro do Parque Nacional Jaragua.
O condutor deixa-nos nas mãos de Wilson, guia local e timoneiro da lancha em que nos apressamos a embarcar.
“É bonito demais, vamos depressa que estão umas nuvens pesadas a vir do horizonte para cá.” justifica-nos com a razão da sua experiência.
Zarpamos. Deixamos para trás o Poblado de la Cueva de los Pescadores, assim chamado porque, em tempos anteriores ao turismo, uma comunidade piscatória habitava grutas ali escavadas pela erosão.
Num ápice, o areal some-se.
Navegamos junto ao sopé dessas falésias recortadas de que despontam mais cactos e arbustos espinhosos. Contornamos um derradeiro rochedo coroado por uma pequena árvore equilibrista.
Bahia de Las Águilas: 8km de Praia Caribenha e Natureza Pura
Do outro lado, damos entrada no Parque Nacional Jaragua e num reduto balnear a perder de vista, sem sinal de civilização.
Wilson faz-nos desembarcar a meio da enseada, conhecida como Bahia de Las Águilas.
Não porque lá abundem essas aves, mais pela forma que aquele litoral abençoado ostenta, quando visto do ar.
“Divirtam-se amigos! Quando quiserem que vos venha buscar, liguem para o Carlos.”, despede-se Wilson e assim nos deixa como usufrutuários únicos daquela beira-mar irrepreensível.
Detectamos uma torre de madeira dissimulada no fundo do areal. Subimos ao seu piso superior.
Dali, contemplamos o contraste extremo do Caribe. A imensidão verde-espinhosa de Jaragua, delimitada pela linha recuadas das falésias.
E a rival, a do Mar das Caraíbas esmeralda-turquesa que há muito as desterrou. Estávamos conscientes do quanto, desde a década de 70, o maremoto do turismo tinha adulterado os cenários naturais e tropicais da República Dominicana.
Até ao ocaso nos obrigar a regressar, desfrutámos daquela paisagem como se fosse a única na velha Hispaniola.