Ditou a sequência da viagem que aportássemos em Bergen tal e qual o faziam os pescadores e mercadores que, ao longo de meio milénio, contribuíram para a sua riqueza e opulência.
Partimos da longínqua Balestrand às cinco da tarde. Durante quatro longas horas, navegamos pelo Sognefjord e por fiordes que dele derivavam para sul, até ao braço aberto do Mar do Norte em que se havia instalado a grande urbe de Vestland.
Por volta das nove de uma noite sub-árctica que estava longe de o ser, cercou-nos um casario costeiro mais denso e moderno que os de até então.
O ferry flectiu para sudeste. Momentos depois, o casario quase de lego de Bryggen insinuou-se e exibiu-se, destacado, na margem leste do porto de Vagen, o mais movimentado da Noruega.
O Desembarque Pseudo-Nocturno em Bryggen
Nesse fim de dia, fizemos o mesmo que os pescadores e mercadores sempre fizeram após as suas viagens pelo Mar do Norte: procurámos o abrigo que merecíamos na cidade e recuperámos energias.
O raiar da aurora revelou um dia idêntico ao do tempo que viríamos a passar em Bergen: nebulado, acinzentado, frígido e húmido de um modo penetrante que, apesar dos agasalhos em que nos enfiávamos, parecia chegar-nos aos ossos.
Frescura à margem, situada à beira do Mar do Norte, Bergen é um dos lugares mais pluviosos da Europa, com chuva substancial numa média de 231 dias por ano. Até então, não nos podíamos queixar.
Dormimos a umas meras centenas de metros de Bryggen. Conscientes do encanto e peculiaridade daquele bairro secular, saímos para lá disparados.
À imagem de tantas outras paragens da Noruega, Bergen recebe cruzeiros atrás de cruzeiros, cerca de 300 por ano, que despejam um total de meio milhão de forasteiros.
Era suposto o esforço madrugador nos recompensar com evitarmos a inundação de visitantes do início da manhã. Não tardámos a perceber o quanto fora em vão.
Percorremos a rua marginal em suspenso na névoa e na formosura anacrónica dos cenários em redor. Quando nos vemos com a irmandade de edifícios coloridos e bicudos pela frente, metemo-nos por uma das ruelas entre eles encaixadas, ávidos por aprofundarmos a descoberta de Bryggen, ou Tyskebryggen, como é também chamada, traduzível do norueguês como a Doca Alemã.
O Velho Bairro Hanseático de Bryggen
Por ali nos entregamos a uma deambulação intrigada entre as traves, tábuas, travessas, degraus, telhas e demais, quase sempre pintados em tons base e mate: amarelos, vermelhos, laranjas, cinzentos, a formar ruas e ruelas de fábula que os séculos e as oscilações de temperatura e do terreno ribeirinho desnivelaram e entortaram.
Nos dias que correm, ocupam-nas negócios lucrativos. Lojas de roupa tradicional norueguesa, de recordações e bugigangas criativas e dispendiosas, também museus, galerias de arte e restaurantes com preços escandalosos até para os habituais padrões escandinavos.
A ligar os três ou quatro andares de cada edifício e conectá-los uns aos outros, cada ruela está dotada de uma ou duas escadarias interiores e uma escadaria-passadiço exterior que a cruza.
Na origem, os edifícios foram erguidos ainda pelos mercadores noruegueses mais abastados. Por essa altura, assente nos lucros e poderio dos seus comerciantes, uma série de cidades hoje alemãs, declararam-se livres e obtiveram validação do Imperador do Sacro Império Romano-Germânico a quem juraram fidelidade e aliança.
A Ascensão e Monopólio da Liga Hanseática em Bergen
Parte de uma corrente de assimilações, em Bergen, estas cidades apoderaram-se do negócio de compra e exportação do peixe salgado proveniente do norte da Noruega e dos cereais trazidos de distintas paragens da Europa.
Em 1350, o primeiro entreposto da Liga Hanseática (kontor) surgiu como sede da sua actividade avassaladora na Noruega. Consequência da intensificação desse comércio, as docas foram aumentadas e melhoradas. Com elas, também os armazéns usados para guardar os produtos, os mesmos por que cirandávamos à descoberta.
Damos com o Museu Hanseático e Schotstuene. Lá encontramos os aposentos e salões de assembleia em que, durante 400 anos, os comerciantes alemães viveram e conviveram a beber cerveja e em que se reuniram para todos os fins e propósitos, do simples passar do tempo à tomada de decisões cruciais.
A Inevitável Sina da Combustão de Bryggen
Tendo em conta a predominância da madeira em Bryggen e na Bergen em redor, seriam de esperar problemas com a fácil combustão. Os responsáveis estavam conscientes do risco. De tal maneira que o uso do fogo foi proibido em Bryggen, excepção feita para o edifício de Schotstuene onde toda a comida era confeccionada.
Mesmo assim, os incêndios ocorreram, repetiram-se e ficaram para a história da cidade. Narram os registos que, em 1702, um grande fogo se disseminou e destruiu armazéns, aposentos e escritórios. Hoje, só um quarto dos edifícios hanseáticos remonta a esse ano.
Os incêndios extinguiram-se e os edifícios foram ou demolidos ou reerguidos e ditou o contexto pós-calamidade que, volvido meio século, tenham passado todos para a posse de noruegueses. Nesse mesmo lapso, a presença da Liga Hanseática em Bergen tornou-se insípida. O Kontor local foi encerrado.
A história de Bryggen resistiu ao fogo. Como a da cidade de Bergen que continuou a expandir-se pela planura em redor do braço de mar que acolheu Vagen e pelas encostas envolventes acima. Hoje, o seu casario forma um dos conjuntos habitacionais mais harmoniosos do norte da Europa.
Passamos para as traseiras de Bryggen da Rosenkrantzgaten.
Num trecho desta rua preenchido por um jardim, por entre as árvores, deliciamo-nos com a visão da comunidade de cimos bicudos e telhados que coroam o velho bairro.
A Vista Panorâmica mas Enregelante do Cimo de Floyen
Contemplá-lo projectado sobre o Mar do Norte e a flutuar nas suas águas gélidas é algo que nenhum forasteiro se atreve a perder. O ponto de partida para as alturas panorâmicas de Floyen ficava a uns poucos minutos a pé do limiar de Bryggen pelo que para lá nos dirigimos com passos apressados e entusiasmados que nos mantinham quentes.
Subimos a rua Vetrlidsallmenningen a partir do limiar do Mercado do Peixe até à entrada do teleférico Floibanen. A essa hora, já a multidão desembarcada dos cruzeiros marcava presença.
À boa maneira norueguesa, a fila flui de forma rápida e ordeira. Num ápice, damos connosco a atravessar o túnel na base da linha do teleférico e vemos a cidade desenrolar-se perante os nossos olhos, até às pontas do U estreito e profundo na extensão de Tyskebryggen, ponto de ancoragem de dois grandes cruzeiros de que procedia a maioria dos passageiros do teleférico.
Saímos para uma espécie de anfiteatro amplo e expomo-nos a uma brisa marinha enregelante. Ajustamos os agasalhos e aproximamo-nos do varandim.
Dali, apreciamos o cenário esplendoroso por diante: Bergen, a segunda urbe da Noruega, lar de quase 300.000 habitantes, ainda assim, menos de metade dos da capital Oslo.
Fazemos as nossas fotos, contemplamos um pouco mais. Castigados pela inesperada frigidez, abreviamos o retorno à planura do centro histórico da cidade. Voltamos a percorrer a Vetrlidsallmenningen.
O Frenesim Comercial e Gastronómico dos Mercados de Peixe de Bergen
Quando a descemos, reparamos num mural que ocupa toda uma parede lateral de um prédio histórico abaixo. Retrata uma mulher, peixeira ou cliente, que segura um enorme peixe. A obra serviu-nos de preâmbulo artístico ao que se seguiria.
A Vetrlidsallmenningen entrega-nos ao fundo rectangular e apertado do porto de Vagen. Ocupam-no veleiros e outras pequenas embarcações.
No prolongamento deste fundo, reencontramos a extensão de tendas do Mercado de Peixe e Flores de Bergen, um pouco aquém do Mercado de Peixe oficial, o fechado, climatizado e bem mais requintado abaixo do quase tão vasto Turismo de Bergen.
Encontramo-lo num frenesim de ofertas de provas, de vendas e compras e de serviço de refeições fumegantes que deliciavam e reconfortavam convivas um pouco de todo o mundo.
Lá vemos exposto o melhor salmão norueguês, enormes lagostas, caranguejos-reais e ouriços, caviar, fatias longas e frescas de torsk, o bacalhau do Atlântico do Norte.
Espreitamos mais duas ou três tendas. Como esperado, detectamos o torsk também no modo de placa salgada de que Portugal se tornou o maior cliente da Noruega e cuja a importação fez a riqueza de inúmeros pescadores e distribuidores destas partes da Europa.
O Encontro Confortante com um Compatriota Atarefado
Mas não é tudo. Numa outra banca mais próxima do lado de lá de Vagen, chama-nos a atenção um cozinheiro atarefado com os grelhados de peixe e marisco servidos, doses atrás de doses a convivas ansiosos.
Reparamos nos seus longos e peculiares bigodes, bem combinados com a boina verde volumosa que usava. Já tínhamos constatado que quase todos os empregados naquele mercado eram estrangeiros, vários deles dedicados a acolher e satisfazer os magotes de clientes chegados dos seus países.
Apuramos que se tratava de um compatriota. Sem surpresa, estabelecemos e alimentamos uma conversa demasiado envolvente e extensa para o apuro culinário em que – assim se chamava – se via. “Isto aqui não é mau” afiança-nos, “…se descontarem a falta do sol, do bom tempo a que estamos habituados, claro. Eu vivo cá com a minha mulher já há uns anos. Sou artista mas o que me tem dado dinheiro são este tipo de trabalhos.”
Um Périplo Náutico por Vagen, o Porto de Bergen
Já que por ali andávamos, subimos a bordo de um barco pitoresco que assegurava um itinerário por lugares-chave no prolongamento de Vagen: o Museu Norueguês das Pescas.
E, envolto de um jardim frondoso, o Museu da Velha Bergen, animado por um elenco de figurantes que, no cenário fidedigno de Gamle Bergen, re-encenavam aspectos da vida da cidade nos séculos XIX e XX, incluindo voltas aventureiras numa bicicleta antiga de roda gigante difícil de domar.
Confrontados com a hora de fecho e com a ansiedade dos figurantes em se livrarem dos fatos e papéis históricos, também nós regressamos à Bergen contemporânea, uma vez que tínhamos rejeitado a volta do barco ao seu ancoradouro, a bordo de um autocarro sofisticado.
A Derradeira Volta por Bergen
De novo a pé, vagueamos pelas ruelas seculares entre o fundo de Vagen e o bairro já interior de Vagsbunnen, em redor da igreja imponente de Korsk, leia-se da Cruz Sagrada.
Prosseguimos para o sul da cidade até darmos com o desafogo da praça de Torgallmenningen, em que se destacava o Monumento de Bergen ao Marinheiro que servia de assento a transeuntes fatigados e a músicos imigrados do leste europeu.
A pouca distância, entramos do domínio ervado e florestado do Byparken, lugar escolhido pela cidade para homenagear a personagem e obra eterna de Edvard Grieg, o mais conceituado pianista e compositor norueguês, conhecido à escala mundial – mesmo que de forma inconsciente – pela melodia contagiosa de “Na Gruta do Rei da Montanha”.
Bergen tinha ainda muito do seu rico e complexo reduto escandinavo por desvendar mas, por essa altura, esperava-nos já outro porto emblemático da Noruega: Stavanger.