Numa tarde como tantas outras que anunciam e antecipam o Verão, a sequência das marés acrescentava o seu contributo.
Concedia a uns poucos banhistas felizardos o privilégio de um deleite imaculado.
A maior parte, concentrava-se numa apanha comunitária de bivalves, disseminados pelas margens lodosas que a baixa-mar quase tinha deixado a descoberto.
Com vista para os viveiros de mexilhões que flutuavam a montante, sobre águas fundas, próximo dos quinze metros que fazem da Albufeira a lagoa mais profunda de Portugal.
Os Meandros Deliciosos da Foz da Lagoa de Albufeira
A uns poucos, interessava sobretudo o lazer anfíbio com que, na sua peculiaridade efémera, a foz os prendava.
A maré descia. Com ela, a água da lagoa fluía, a velocidade razoável, pelos meandros que a separavam do oceano, sulcados numa vastidão de areia aluvial.
Um casal divertia-se a ver como o seu cão de estimação examinava e testava o riacho, ansioso por os reencontrar do lado de lá.
Outro, deixava-se levar pela correnteza, numa deliciosa flutuação para o mar. Bandos de crianças percorriam e atravessavam a foz vezes sem conta, entregues a trabalhos e a missões que a criancice promovia a epopeias sem igual.
Enquanto a lagoa drenava, as vagas do Atlântico, tom de esmeralda desfaziam-se, umas contra o ponto de contacto dos dois corpos de água, outras, contra a base do cordão dunar que torna a praia elevada.
A maior ritmo que as marés, sobrevoavam-nos os aviões em aproximação à foz do Tejo e ao aeroporto de Lisboa.
À medida que explorávamos o litoral dourado da Península de Setúbal, continuámos a acompanhá-los com os olhos. Desvendámos segredos das suas rotas.
Da Lagoa de Albufeira à Aldeia do Meco
Passamos pela Aldeia do Meco. Ainda sob um ténue vestígio de brisa, encontramos as suas praias com uma ondulação quase rasa, como nunca por ali tínhamos testemunhado.
Em dia de semana primaveril, os frequentadores contavam-se pelos dedos de uma mão, entregues a passeatas à beira-mar, acima e abaixo das dunas da Praia do Moinho de Baixo.
Faltavam os banhistas de roupa de banho e os nudistas que, chegado o Estio, a preenchem e que usufruem das Praias Naturistas do Rio da Prata, da das Bicas, da Foz e do Rebenta Bois.
Desta última, para sul, as falésias apoderam-se da costa que sobra, até ao promontório em que a Outra Banda se precipita no Atlântico.
E, logo, a Caminho do Cabo Espichel
Era esse, o solitário Cabo Espichel, o destino que nos esperava.
A longa Av. das Forças Armadas deixa para trás o âmago da Aldeia do Meco e as suas ruas ladeadas de restaurantes e casas de petiscos. Aos poucos, ascende para as terras mais altas da península.
Algures entre Pinheirinhos e a Aldeia Nova, entronca na Av. 25 de Abril apontada a Azoia. Não tarda, entramos no domínio do Parque Natural da Arrábida.
Uma cobra ziguezagueia mais que a estrada. Adiante, uma madre perdiz esforça-se por conduzir uma ninhada de pintos hesitantes.
Por fim, no que restava da distância, vislumbramos o farol que ilumina o cabo. E, logo, a alameda em U desigual, ladeada de Hospedarias do Santuário da Nª Srª do Cabo.
A Guardiã de Há Muito Dª Maria do Carmo
O cruzeiro à entrada deixa poucas dúvidas quanto à esfera do divino que nos acolhe. Quando damos entrada na igreja que fecha o U, depressa compreendemos o quanto de humano tinha aquele divino a cargo.
À conta da persistente pandemia, Dª Maria do Carmo mantinha-se sentada no seu posto, protegida por um acrílico que lhe salvaguardava a vista.
“Olhe que não pode tirar fotografias!” relembrava, com ênfase redobrado, de cada vez que os visitantes faziam de conta que não tinham reparado na proibição afixada na porta.
“É isto, todo o dia, acreditam? desabava, connosco, quando percebe que, apesar de entrarmos com máquinas fotográficas, respeitamos as regras e aguardamos por uma autorização especial já pedida à Diocese.
“Vejam lá que até há uns, que cá vêm e, quando percebem que não podem fotografar, saem logo amuados. Afinal vêm cá para quê?”
Malgrado as entradas e saídas frequentes dos crentes e visitantes, dá-nos a sensação que Dª Maria do Carmo estaria melhor com uma companhia estável e conversadora.
O nosso inesperado interesse pelas coisas da igreja, as credenciais com que chegávamos da edilidade de Sesimbra, geram nela confiança.
Instigam-na a puxar por uma conversa bem-disposta e quase sem cerimónias.
“Isto aqui sempre foi complicado.”, explica-nos a guardiã, em jeito de introdução para uma catadupa de complicações e desventuras, umas que protagonizou. Outras que viu acontecerem e outras que não chegou sequer a ver.
“A seguir ao 25 de Abril, foi uma completa rebaldaria.” conta-nos a senhora, oriunda do norte do país, referindo-se ao longo período em que gentes oportunistas da zona, tomaram o santuário à Igreja e se recusaram a desocupá-lo.
“Eu acho que já foi só lá para o fim dos anos 80 ou até início dos 90 é que as coisas acalmaram e o governo mandou cá vir a GNR correr com esse pessoal.”
Tempos depois, o IPPAR ficou encarregue de recuperar e manter o santuário, mas isto está aqui tão isolado. Não tem sido fácil.”
O isolamento e a falta de protecção do santuário da Nª Srª do Cabo levaram a que fosse possível, por exemplo, o roubo de um dos sinos da igreja.
E, como se não bastasse, quando uma praga de roubo de arte sacra se alastrava por Portugal, o extravio de um Santo António recém-restaurado.
À Descoberta do Santuário da Nossa Senhora do Cabo
Era um dos dois santos anichados de cada lado do altar e da estátua dourada da Virgem Maria, um nível abaixo do Cristo na cruz e do brasão das Quinas que se interpõe entre Mãe e Filho.
Há mais de meio milénio, Maria justificou a homenagem monumental que nos dedicávamos a explorar. Segundo nos afiança Dª Maria do Carmo, crente em Maria e nos milagres, a Virgem não permitiu, por mais que uma ocasião, que roubassem uma imagem sua.
“Numa vez, o carro em que a iam transportar avariou logo aqui à saída. Decidiram trazê-la de volta. Noutra, quando os larápios se preparavam para a levar, a Santa virou-lhes as costas. Na pressa e aflição em que cometiam o delito, não conseguiram reconhecer onde estava e desistiram.”
Conta a lenda que a aparição da Santa se tenha dado em 1410.
Nessa data, foi achada uma sua imagem nas falésias da Pedra da Mua.
Pedra da Mua, mais tarde, também celebrada pela preservação quase tão milagrosa de pegadas de dinossauros saurópodes que, assim se estima, há mais de 145 milhões de anos, por ali passavam para se banharem no oceano ao largo.
O reconhecimento real da aparição oficializou a importância da imagem encontrada e da Pedra da Mua.
Ainda no século XIV, foi erguida uma ermida com a função de guardar a imagem, permitindo que os crentes a louvassem.
Na zona da actual Sesimbra, por Lisboa e arredores e a oeste da capital, o número de fiéis e de peregrinos aumentou sobremaneira. A zona saloia fundou a sua própria comunidade crente, o Círio Saloio.
De início, construíram-se várias casas à volta da ermida, destinadas a acolhe-los.
A partir de 1715, até 1757, substituíram essas casas improvisadas, as Casas dos Círios, um conjunto de Hospedarias do lado norte, edificadas com o fim de acolher os mordomos que chegavam encarregues de assegurar o bodo, complementadas por sobrados e estabelecimentos que comerciavam as mercancias mais convenientes.
A determinada altura, a Igreja e a Coroa consideraram que a ermida, hoje conhecida como Ermida da Memória, por si só, estava aquém da imponência religiosa da Aparição.
A Extensão do Santuário a partir da pequena Ermida
De acordo, entre 1701 e 1707, em pleno reinado de D. Pedro II, ditaram a construção da Igreja da Nª Srª do Cabo que a Dª Maria do Carmo está incumbida de guardar.
Com o tempo, enriqueceram e abasteceram o santuário, a Casa da Ópera (hoje em ruínas), a Mãe d’Água e o Aqueduto do Cabo Espichel.
Apesar das seculares dificuldades logísticas, o Culto da Nª Srª do Cabo, continua vivo e de boa saúde.
À parte da fé que suscita, são vários os historiadores e autores que lhe dedicam estudos aturados, publicações explanatórias e outras, romantizadas.
Por estes lados, nem só o Santuário de Nª Srª do Cabo Espichel ilumina a Humanidade.
O Farol Providencial do Cabo Espichel
Chegadas as três horas da tarde, o faroleiro Baptista Pinto recebe-nos à entrada do farol em que reside, trajado a rigor num uniforme em tons de azul.
Acompanhamo-lo num périplo pela base do farol, de olho em maquinaria curiosa, incluindo um velho frigorífico de mármore que pesava toneladas.
Subimos 135 degraus de pedra e 15 de ferro, para o cimo da torre de 32 metros.
Ali, o faroleiro Pinto mostra-nos o funcionamento engenhoso, mas simples do sistema de iluminação, de manutenção regular, mas pouco problemática.
Explica-nos como o farol era providencial para as embarcações que navegam ao largo, mas não só. Até aos derradeiros anos do séc. XVIII, a costa portuguesa carecia de tal maneira de faróis que os navios estrangeiros a tratavam por “costa negra”.
A partir de então, o Marquês de Pombal ditou a edificação de uma rede nacional que integra o farol do Cabo Espichel, finalizado em 1790, um dos mais antigos de Portugal.
Enquanto exploramos o promontório em redor, voltamos a aperceber-nos da passagem dos aviões e de como, era ali mesmo por cima, que flectiam para a bacia do Tejo e se faziam ao aeroporto de Lisboa. Comentamos esse facto com Baptista Pinto.
Entusiasmado pelo nosso interesse, o faroleiro confirma que a luz do farol se propagava não só sobre o oceano Atlântico mas para o céu.
Ajudava os pilotos a seguirem as rotas mais seguras para antiga Portela e para outros destinos.
Tal como o Santuário do Cabo Espichel há séculos conduz os crentes a seguirem os caminhos do Divino.
ONDE FICAR EM SESIMBRA:
Four Points By Sheraton Sesimbra
Tel.: +351 21 051 8370