Ditava o percurso que retrocedêssemos os pouco mais de 3km que separavam Manang e Braga (Brakra).
Esta última povoação tinha-nos surpreendido e agradado de tal maneira que a simples perspectiva de a voltarmos a cruzar antes de progredirmos no circuito só soava a recompensa.
Numa manhã solarenga, juntamo-nos a um grupo internacional de companheiros de circuito e pomo-nos a caminho.
Durante uma meia hora, avançamos pela estrada Manang Sadak que acompanhava o rio Marsyangdi. Pouco depois de Braga, atravessamo-lo por uma ponte suspensa de ferro e arame que nos entrega ao solo ressequido e repleto de cascalho do grande vale aluvial.
Como sempre acontece nestas paragens montanhosas do Nepal, depressa nos vemos de frente para uma vertente sem fim, outra de tantas faldas da cordilheira Annapurna que continuávamos a contornar.
Pela Encosta dos Annapurnas Acima
No caso, situada algures no sopé de dois dos picos nepaleses sumptuosos dos Himalaias, o Annapurna III (7.555m), a 42ª maior montanha à face da Terra, e a Gangapurna, apenas cem metros mais baixa.
Daquele quase meio do vale, ainda víamos os seus cumes nevados, destacados acima de uma floresta pinífera polvilhada de branco.
O vale durou o que durou. Num ápice, entregamo-nos a um trilho íngreme que serpenteava encosta acima, aqui e ali, coberto de neve ou enlameado pelo degelo de zonas expostas ao sol.
Ao ascendermos, perdemos o rasto da coroa alva das montanhas, onde se escondia o Ice Lake (Kicho Tal) a que tínhamos recentemente ascendido.
Em simultâneo, o templo budista-tibetano e o casario de Braga e, a maior distância, os de Manang, expunham-se e insinuavam-se à ladeira sua oposta, de onde, até então, não os tínhamos ainda apreciado.
Uma Ascensão Dolorosa
Subimos. Ascendemos ao ritmo a que as coxas em fogo nos permitiam, com os corações a bombear como loucos, os pulmões alagados do mesmo ar frio e pesado, cada vez menos oxigenado, que nos ruborizava as faces.
Era a arfar que progredíamos. E a arfar demos entrada numa clareira que acolhia uma estupa e um circuito de bandeiras budistas multicolores e ondulantes que glorificaram um já ansiado descanso.
Umas dezenas de ziguezagues escorregadios depois, abandonamos a ditadura verde-castanha dos pinheiros para uma crista sobranceira que nos desvendou um novo panorama.
Em frente, Chulu (6419m), a montanha que tinha Braga na sua base. Para sudoeste, o vale do Marsyandgi em toda a sua amplitude, encerrado pelo séquito de montanhas majestosas que, desde a já longínqua Chame, deixávamos para trás.
E acima, uma sequência por comparação despida do trilho, rendido a uma vegetação arbustiva queimada pelo Inverno e pelo vento.
Ascendemos um pouco mais nessa ladeira. Vislumbramos um novo estendal de bandeiras budistas, a determinada altura, alinhadas com uma escadaria rude, feita de lajes de pedra talhadas e encaixadas apenas o suficiente para gerar degraus desafiantes.
Antes de a atingirmos, um letreiro quadrado, com um fundo ocre e um texto exaustivo a amarelo resgata-nos a atenção. “Milerepa Cave, an Interesting Relious Believe!” versava o título.
À margem da impreterível aclimatização, era pelo budismo, pelo significado daquele lugar e seu misticismo, não tanto pela caverna em si, que ali estávamos. De acordo, detivemo-nos a estudar a inesperada sinopse.
Viagem pela Vida de Mila Thö-pa-Ga, mais conhecido como Jetsün Milarepa
Resumia a vida de Milarepa – Jetsün Milarepa, nascido como Mila Thö-pa-Ga -, um tibetano que, malgrado um começo pouco promissório, viveu e se notabilizou no Budismo durante os séculos XI e XII.
Boa parte do pouco que se sabe da sua vida provem de obras pioneiras escritas por Tsangnyon Heruka (nome de autor traduzível como o Louco Heruka de Tsang), já no século XV.
Entre a realidade e lenda, Tsangnyon Heruka compilou o que há muito se contava de geração para geração sobre Milarepa, em dois títulos agora clássicos da literatura tibetana: “Life of Milarepa” e “The Collections of Songs of Milarepa”.
Se não contarmos com os escritos e os testemunhos orais, subsistem apenas algumas relíquias que se atribuem a Milarepa, com destaque para um casaco de pele de urso que chegou a usar nos dias mais frígidos.
Milarepa: De Jovem Perturbado a Feiticeiro Descontrolado
Ora, de acordo com a biografia, Milarepa nasceu no seio de uma família abastada. Quando o seu pai faleceu, os tios privaram-no a ele e à sua mãe da riqueza a que tinham direito.
Mas, Milarepa perdeu também vários outros membros da família e amigos, vítimas de facções rivais da sua povoação.
A determinada altura, a pedido da mãe, Milarepa deixou o lar com o fito de aprender feitiçaria e de adquirir poderes sobrenaturais que lhe permitissem vingar-se.
Tornou-se feiticeiro.
Um mago tão assombroso que deixou de conseguir gerir as suas acções e acabou por assassinar várias pessoas.
Anos mais tarde, arrependeu-se. Desesperado por ressurreição, tornou-se aprendiz de Marpa o Tradutor, um sábio budista.
Milarepa entregou-se de corpo e alma ao Budismo e suportou sucessivas provas iniciáticas de humildade e obediência impostas pelo mestre por forma a reverter o karma negativo que carregava.
Milarepa superou-as com abnegação e afinco.
O mestre aceitou continuar a instruí-lo e passou-lhe ensinamentos tântricos preciosos, casos das transmissões de aura tummo e a mahamudra, um grande selo espiritual que ratifica que todos os fenómenos são marcados pelo binómio inseparável do conhecimento e do vazio.
Milarepa, o Aprendiz que Conquistou a Perfeição de Siddha
Milarepa não tardou a atingir uma aptidão física e iluminação espiritual que lhe granjeou o raro estatuto de siddha.
O jovem aprendiz evoluiu para se tornar um dos mais conceituados yogis e poetas do Tibete. E Marpa determinou que deveria viajar e praticar uma meditação eremita, em comunhão fiel com a natureza, em grutas e retiros de montanha.
Foi durante essa sua deambulação que a sua vida entrou pela caverna de Milarepa. Prosseguimos no seu encalço, castigados pela inclemência da gravidade.
Conquistamos a escadaria de lajes. No topo, entre bandeiras agitadas pela ventania que quase nos fazia descolar, desvendamos uma estrutura algures entre um portal e um nicho desafogado que alojava uma grande estátua de Buda.
Certas fontes asseguram que este portal conduz à gruta esquiva que acolheu o asceta. Nesse caso, e à data, o acesso ao interior revelou-se vedado.
Em Busca da Caverna Esquiva de Milarepa, a Nepalesa
Seja como for, narrativas de distintos viajantes testemunhavam que aquela entrada era apenas simbólica, que o verdadeiro abrigo na rocha, por que fluía a nascente perene que deu de beber a Milarepa estaria quinze minutos para cima na montanha.
E que o grande sismo de Abril de 2015 que arrasou Katmandu e afectou boa parte do Nepal, a teria feito desabar.
Mesmo em toda a sua integridade, a caverna de Milarepa que buscávamos era apenas uma de cerca de vinte em que o sábio se refugiou durante a sua vida. Longe de ser a mais famosa.
Essa, conhecida por Namkading Cave, distava centenas de quilómetros para leste, situada numa encosta abaixo da Estrada da Amizade Sino-Nepalesa, em pleno território tibetano que, a partir de 1950, Pequim transformou em chinês.
A caverna agora nepalesa que ali nos havia levado de Manang, pouco mais assegurou ao eremita que uma penosa sobrevivência.
Um Ser Vivo mas Por pouco
Reza a história que, findos os alimentos com que viajara, Milarepa subsistiu de plantas comestíveis que encontrava nas imediações.
A falta de comida, de trajes e de companhia contribuíram para que se mantivesse focado no propósito espiritual superior do seu retiro, ao ponto de ter sucedido em, em vez de expulsar demónios invasores do abrigo, lhes ter imposto os princípios comportamentais budistas do dharma.
O custo físico dessa espiritualidade provou-se atroz. Os poucos peregrinos que, a espaços, visitavam o lugar relataram encontros com um quase esqueleto com uma longa cabeleira e a pele tingida de um esverdeado extraterrestre, devido às grandes doses de clorofila que consumia.
Com o passar dos séculos e o avolumar da reputação religiosa do asceta, o seu retiro Annapurna mereceu mais e mais peregrinações de fieis budistas.
Ao que se aliou a recente notoriedade do Circuito Annapurna entre os montanhistas e amantes das caminhadas, que lá leva, todos os anos, centenas de novos crentes e curiosos.
Gruta de Milarepa: a Peregrinação que Também Serve de Aclimatização
Com frequência, os nativos e os forasteiros partilham o templo que lhe é dedicado na gompa cimeira.
Deambulamos por edifícios elementares que chegaram a servir de aposentos a dezenas de monges ali instalados. Hoje, contam-se, no máximo, dois, ou três, de acordo com a conjuntura ou a ocasião.
Destacado acima, junto ao sopé do grande morro de rocha, encontramos o templo diminuto que abençoava a gompa e os seus visitantes. Deixamos o calçado à porta, na companhia de uma grande roda budista de oração. Uma vez purificados, entramos.
Tentamos integrar-nos no misticismo de luz de velas e do janelo ainda assim colorido do santuário. Instantes depois, surpreende-nos uma família nepalesa recém-chegada.
Conscientes do quão apertado era o espaço, damos-lhes prioridade e aos seus ritos de fé: a oferenda de incenso, o acender de velas aos pés do altar e o sussurrar dos mantras.
Provas de Uma Existência Sobrenatural
Quanto mais nos inteirávamos do martírio a que se submeteu Jetsün Milarepa, mais nos convencíamos da seriedade da sua sacralização, granjeada após as autoridades budistas nele terem constatado a libertação total do mundo material e a Perfeição Budista exigida a um Siddha.
Biografias posteriores chegaram a descrever Milarepa como um Buda Tibetano, mesmo que nunca tenha convivido ou recebido ensinamentos de um mestre indiano ou sequer visitado a Índia.
Fossem fruto da feitiçaria que aprendera na juventude ou de capacidades mais tarde adquiridas, Milarepa comprovou perante uma audiência de estudante budistas, a sua mestria iógica.
Um dos feitos que exibiu foi mover uma mão pelo ar com tal velocidade e força que gerou uma explosão sónica que ecoou pela caverna.
O outro, passou por empurrar a parede da sua caverna com uma mão de forma a fazê-la moldar a rocha como se fosse feita de argila e, deixando nela, o seu molde. Alguns dos estudantes tentaram emular as proezas de Milarepa.
Só conseguiram lesões nas mãos e frustração a condizer.
O Também Santo Regresso a Manang
O cansaço, o frio e o vento começavam a machucar-nos os corpos profanos. Com o sol prestes a cair para trás das montanhas, estava mais que na hora de inaugurarmos o regresso.
Ainda espreitamos a moreia glaciar que, logo ao lado, fluía Annapurnas abaixo. Logo, regressamos aos ziguezagues do pinhal e ao leito do Marsyangdi.
Em vez de o cruzarmos de imediato para a Manang Sadak, decidimos retornar pela vastidão que o encolher do rio deixara transitável. Passamos por cavalos que pastavam uma palha quase rasa.
Já à sombra, nas imediações da ponte contígua a Manang, deixamo-nos ultrapassar por um longo rebanho preto-e-branco de cabras felpudas.
Quando reentramos em Manang, somos prendados com os últimos raios solares do dia a iluminarem o sector norte e pela visão de uma fila de mulheres a girarem as rodas de oração da povoação, amornadas pela benesse do grande astro e pelo conforto comunal da sua fé.