A caminhada prova-se bem mais curta do que esperávamos.
Favorecido pela magreza e pelo treino de inúmeras subidas, Negão chega ao topo sem arfar, instala-se sobre uma pedra arredondada e deixa-nos à vontade para explorarmos os recantos repletos de cactos da meseta.
Tivemos, dali, a primeira de várias panorâmicas a 360º da Chapada Diamantina e a noção inaugural da sua inesperada imponência. Um desfiladeiro coberto de prado prolonga-se a perder de vista, bem marcado pelas encostas dos pequenos planaltos opostos.
Outros canyons elevados do vasto Sertão anunciam-se à distância numa sequência que aparenta não ter fim. Cenários deste tipo são quase sempre esculpidos por erosões de grande intensidade.
A Chapada não fugiu à regra.
A Génese Geológica e Diamantífera da Chapada Diamantina
Há mais de 600 milhões de anos, muito antes da fragmentação do supercontinente Pangeia, esta região era adjacente à zona da actual Namíbia, ainda hoje uma das mais importantes reservas diamantíferas do Mundo.
Os diamantes locais foram cristalizados naquela área, misturados com seixos e arrastados para a profundeza do mar que cobria aquilo que é agora o interior do Brasil. Com o passar do tempo, o mar recuou.
O seu leito transformou-se numa camada de pedra conglomerada que aprisionou as gemas. Mais tarde, essa camada foi elevada pelas movimentações tectónicas e exposta a um intenso desgaste que depositou os diamantes no leito dos rios, à espera dos pioneiros felizardos.
Um pouco mais seca – talvez numa época de chuva rara – o cenário que temos perante os olhos poderia ter-se revelado perfeito para acolher cenas de “Westerns Spaghetti”. A região da Chapada Diamantina manteve-se um verdadeiro “faroeste” durante séculos a fio.
Nesse período, foi povoada pelos índios Maracás.
Estes, atacavam os aventureiros e colonos que chegavam atraídos por notícias da primeira das riquezas achada, o ouro.
Mais tarde, com a descoberta de diamantes, não demorou muito até que milhares de bandeirantes e prospectores, comerciantes e colonos, jesuítas, contrabandistas e prostitutas das mais variadas origens ali acorressem.
Surgiram povoações sem rei nem lei com dimensões e uma concentração de habitantes crescentes.
As balas resolviam qualquer conflito que emergisse.
De acordo, os coronéis com mais influência e jagunços ao seu serviço concentravam o poder e impunham a sua vontade à força da violência e da tortura.
A Estória Contada Vezes Conta do Escravo Pai Inácio
O episódio que Negão conta aos visitantes do seu monte alisado chega-nos como uma prova teatralizada da rudeza daquela era. O tom das suas frases é quente. O sotaque, do interior sertanense da Bahia: “Oi pessoal, junta aí próximo da falésia p’rá ouvir que a história é boa!”.
Composta a plateia, o narrador conta que em tempos idos, vivia na Chapada um escravo a quem tratavam por Pai Inácio. Pai Inácio namorava, às escondidas, a filha do seu senhor.
Mas este, não tardou a inteirar-se do caso. Enviou vários capangas em perseguição do infractor que teve que se refugiar naquele mesmo morro em que estávamos.
Só que alguém informou os capangas do esconderijo. Quando menos esperava, o escravo deu por si entre os perseguidores e o abismo. A situação pedia uma saída drástica, de preferência genial. Pai Inácio esteve à altura das exigências.
Sob a pressão das espingardas e pistolas, gritou que preferia morrer em liberdade a ser chacinado às mãos do senhor.
Abriu o seu guarda-chuva, saltou do morro e continuou a fuga, incólume, para nunca mais ser visto.
Negão sempre levou o seu trabalho a peito e a determinada altura, a narrativa já pedia algo que a ilustrasse. O guia encontrou um artifício à altura do desfecho da novela.
Quando chega ao clímax da acção, Negão atira-se para baixo e deixa a audiência boquiaberta.
Momentos depois, alguns dos visitantes abeiram-se do precipício e desvendam que o salto (repetido várias vezes por dia) terminava numa saliência um ou dois metros abaixo que o grupo não conseguia ver.
Segundo a lenda, o escravo foi-se de vez.
Deixou a Chapada entregue à sua prospecção cada vez mais desalmada.
Os Diamante e Prospectores que Subsistem na Chapada
Nos leitos dos rios, acastanhados pelo ferro, mineiros gananciosos encontravam gemas em quantidades surpreendentes.
Abriam novos trilhos para zonas antes inacessíveis em redor das povoações que cresciam a olhos vistos: Lençóis (da Bahia), Mucugê, Palmeiras e Andaraí, entre outras de igual elegância colonial mas menor dimensão e importância.
Descemos do morro e seguimos em direcção ao vale estreito do Mucugêzinho. Ali, temos o primeiro contacto com os leitos ainda filtrados pelos prospectores mais persistentes da região.
No Poço do Diabo, a água revela gradações ferrosas de laranja. Nesse e noutros caudais apertados, passamos por mineiros.
Trabalham debruçados sobre as margens, a agitar cascalho sobre as suas peneiras, como almas semi-retiradas do mundo, movidas tanto pelo desenquadramento social como pela esperança de enriquecer a contradizer o passado.
São raros os casos de sucesso. A maior parte dos moradores da Chapada preferem apostas com maiores probabilidades de êxito. No momento, o turismo prova-se a mais garantida.
Em 1995, sob a pressão dos mesmos grupos ambientais que conseguiram a criação do parque nacional e travaram uma já longa destruição do ecossistema local, o governo proibiu a extracção diamantífera não tradicional.
Apesar de nem tudo ser ainda perfeito, a natureza passou a ser tratada como o bem mais precioso da zona.
E os visitantes e viajantes brasileiros e estrangeiros afluíram à Chapada Diamantina em grande número.
Os Novos Caminhos Turísticos da Chapada Diamantina
Depois da longa época de estagnação, migração e pobreza que se seguiu ao fim da mineração, a população local vê com bom olhos esta nova invasão, concorrente com a de outras paragens da costa da Bahia como o Morro de São Paulo.
Também deseja lucrar com a revelação da sua abençoada terra natal.
Nos dias que lhe dedicamos, caminhamos dezenas de quilómetros por dia.
Chegamos aos lugares mais emblemáticos da Chapada: o Ribeirão do Meio, o rio Lençóis e a cachoeira da Primavera, o Salão de Areias, a cachoeira do Sossego, a gruta do Lapão e o pântano de Marimbus e o seu quilombo Remanso.
Outros aventureiros empenham-se ainda mais.
Cumprem itinerários guiados desgastantes mas recompensadores como o que conduz à cachoeira da Fumaça, a mais longa do Brasil, com 420m de altura, a que chegam três dias depois da partida.
Ou entregam-se ao Grande Circuito que perfaz 100km, cumpridos em cinco dias, oito, caso se queira investigar a velha aldeia diamantífera de Xique-Xique Igatu.
Certos nativos não precisam de se dar a este trabalho.
Os cientistas chegaram à conclusão que parte da água da bacia do Amazonas, colocada sob pressão contra o oceano Atlântico, acaba por encontrar e escavar caminhos alternativos.
Alimenta aquíferos que alcançam o Nordeste brasileiro. Esta água liberta-se.
Irriga mais a Chapada do que a área em redor porque a rocha ali característica é quase impermeável mas propícia à formação de brechas “estruturais”.
Incursão ao SubMundo das Grutas da Lapa Doce e da Torrinha
Por uma questão de probabilidade, as entradas de algumas destas brechas encontram-se nos “sítios” de moradores felizardos. Acabamos por seguir dois destes proprietários promotores às profundezas das da Lapa Doce e da Torrinha.
Conduzem-nos por estas galerias gigantescas, à luz de um robusto candeeiro estilo Petromax que mudam de um ombro para o outro.
Em simultâneo, tímidos e algo pressionados pelo peso nova profissão, passam-nos informação enciclopédica recém-memorizada e o nome de cada secção subterrânea: “aqui, os senhores podem ver o Pão de Açúcar.
Essa daí é a “Cortina” e agora temos a “Água Viva”.
Quando voltamos à superfície, um pôr-do-sol resplandecente ridiculariza a luz ténue que nos tinha revelado aquele pedaço de inframundo.
Avermelha a paisagem e escurece as silhuetas da floresta de cactos “mandacarus” do grande Sertão, formas vegetais características da Chapada Diamantina.