Em plena época seca e o calor a apertar, as chuvas tinham migrado para outras partes.
Diversas queimadas rurais alastravam à distância e os incêndios propagavam-se em áreas de que não deviam sequer aproximar-se.
Percorremos o trilho que conduz à cachoeira Véu de Noiva. Cruzamo-nos com bombeiros, uns, derreados, a regressarem da frente de chamas. Outros, enfiados no uniforme amarelo-algo-espacial em que combatem os soldados da paz brasileiros, a saudarem os colegas e a deles pedirem orientações para melhor lidarem com o inferno que os esperava.
Em boa parte do vasto Cerrado, os incêndios acontecem apenas e só porque sim. Ardem até Deus lhes por cobro, por exaustão ou uma chuva extemporânea.
Por estes lados que explorávamos, o Cerrado não podia ser deixado ao Deus-dará.
A cachoeira Véu de Noiva local é a vedeta paisagística de um domínio de tal maneira especial que as autoridades o decretaram parque nacional, com a responsabilidade de preservação que tal título acarreta.
Quando, após passarmos por vários bombeiros mais, chegamos por fim ao miradouro, deslumbramo-nos com a vista por diante.
Percebemos, de imediato, a reverência que conquistou.
A Visão Descomunal da Cachoeira Véu da Noiva
Do nada, o Cerrado surge encurralado num beco sem saída geológico, em forma de U aberto, feito de pedra rosada. Dali, o cenário torna-se tridimensional. Vemos o verdejante e frondoso no fundo do inesperado desfiladeiro.
Acima, entre o céu e o tecto rochoso, uma floresta mais rarefeita e ressequida que se estende até a névoa a engolir.
E a unir os dois níveis, uma torrente em queda de 86 metros, devido ao estio, com caudal reduzido, mas que o vento tornava ondulante.
Elias Silva, o guia anfitrião, faz-nos notar como o fumo se dispersava e sufocava a imensidão em redor.
“Num tempo normal, até poderíamos ir explorar a Cidade da Pedra que está lá longe. Assim, vamos antes caminhar pelo trilho das cachoeiras.“
Dito e feito. Mas insatisfeitos. Por comparação com o salto de água inicial, as quedas d’água e cascatas que se seguiram revelaram-se amostras de banalidade.
Aceleramos o passo. Deixamos o parque mais cedo que o previsto.
Rumo à cidade de Chapada de Guimarães que serve de polo urbano ao parque homónimo.
Ali, damos entrada numa pousada.
A Cidade de Chapada dos Guimarães, ex- Serra Acima
Voltamos a sair à descoberta da pequena povoação, que, tal como esperado, encontramos organizada em redor de uma praça frondosa e da igreja colonial azul e branca de Nª Srª de Santana do Sacramento, erguida, em 1726, agora, ladeada de um jacarandá frondoso.
Apreciamos o casario térreo multicolor, ocupado por lojinhas de artesanato e recordações, lanchonetes e estabelecimentos afins.
E uma série de “orelhões” em forma dos animais emblemáticos do cerrado, a arara, a onça e outros.
Nos seus primórdios coloniais, o esboço desta povoação existiu conhecido por “Serra Acima”, um acampamento de indígenas Chiquitos, situado a 800m de altitude.
O Passado Mineiro da Serra Acima Aprimorada
Fundou-o o primeiro conde da Azambuja e 10º vice-rei do Brasil, António Rolim Tavares. E administrou-o o jesuíta Estevão de Castro, apenas até que a expulsão dos Jesuítas dos territórios portugueses ditada pelo Marquês de Pombal, o forçou a debandar.
Serra Acima evoluiu. Em 1769, recebeu o nome bem mais pomposo de Santa Anna da Chapada dos Guimarães Miramar, em parte, como homenagem à família portuguesa que mais a ela se dedicou.
O povoado cresceu. Enriqueceu a olhos vistos. Fruto do lucro gerado pela prospecção de ouro, primeiro, levada a cabo pelos bandeirantes, logo, por garimpeiros determinados.
Aumentaram ainda os seus proveitos, a produção agrícola e pecuária e os vinte engenhos de aguardente, entretanto estabelecidos.
Em conjunto, a febre do ouro, a abundância de aguardente e a opressão sobre escravos negros e indígenas geraram uma comunidade instável e problemática que, recém-dotados do templo cristão de Santana do Sacramento, os religiosos se esforçavam por domar.
A situação assim se mantinha quando, a partir de 1867, um surto de varíola parido pela Guerra do Paraguai, o intensificar dos ataques dos índios Coroados e, mais tarde, a Abolição da Escravatura, condenaram a Chapada dos Guimarães a um remanso.
A cidade recuperou. Chegou a ser o maior município à face da Terra, com um território de 270 mil km2, entretanto, retalhados entre vários municípios emergentes.
Chapada dos Guimarães, Cidade ainda com Muito de Portuguesa
Hoje, abriga quase vinte mil chapadenses. Até 2015, dois deles eram Vera Lúcia Ramalho (com pais leirienses) e Vinício Correia de Lima, filho de açorianos de Ponta Delgada.
Conheceram-se no Rio de Janeiro. Mais tarde, mudaram-se para a Chapada. Lá fundaram o actual “Estilo Bacalhau e Vinho”, restaurante em que só serviam pratos e especialidades à base do fiel amigo.
Em 2015, Vinício de Lima faleceu. De acordo, já só nos recebeu a sua viúva, contente por ter visitantes da “santa terrinha”, de tal maneira que nos mostra a cozinha e apresenta às empregadas que lá laboravam.
Deliciamo-nos com entradas de bolinhos de bacalhau. E com prato de bacalhau do mais tenro e suculento que alguma vez provámos.
Com o programa do dia seguinte a prever um despertar às sete, cumprida a despedida, regressámos directos à pousada.
O Grande Circuito das Águas
Amanhece enevoado. Não obstante, o guia incumbido de nos abrir caminho e a Elias, Felipe Desidério, pouco se deixa intimidar. Conhecedor da zona, liga os quatro piscas do carro e acelera chapada acima e abaixo.
Em menos de duas horas sinuosas, chegamos a uma tal de Fazenda Buriti, perdida numa zona em tempos de Cerrado denso que, aos poucos, os pastos da boiada, as plantações de soja, de algodão e outras arrasaram.
Ficou a excepção refrescante da mata ciliar, adjacente a cursos e corpos d’água, protegida por lei da ganância e da devastação rural.
À chegada à fazenda, entre perus, galinhas-de-Angola, araras, cães e gatos, os guias apresentam-nos e a Regiani – uma cliente de Felipe – a Dª Márcia e a Paulo, ambos de apelido Santos, e aos seus filhos de quatro e cinco anos.
Tagarelamos um pouco. A família caipira fica encarregue de preparar um almoço churrasco.
Nós, saímos para o Circuito Águas do Cerrado, em redor do seu sítio, ao longo dos cursos de água e da floresta tropical que os fazendeiros se viram obrigados a poupar. As cascatas pouco nos entusiasmam.
Recompensa-nos o banho tonificante num poço de rio cristalino, em forma de coração e, como tal, conhecido por Pocinho do Amor.
Regressamos, esfomeados, quando Márcia e Paulo aprimoravam o churrasco. Durante uma hora, deliciamo-nos com os seus petiscos.
E, em seguida, o Circuito das Cavernas
Em seguida, saímos para novo circuito, desta feita, delineado em função de várias cavernas hiperbólicas ou excêntricas da Chapada.
Um pequeno autocarro conduz-nos e a outros caminhantes ao início do trilho, arenoso e, a espaços, entregue a uma floresta prodigiosa.
A primeira gruta que encontramos denomina-se Aroe Jari.
Tornou-se a imagem de marca do circuito devido a uma faixa serpenteante de musgo humedecido que, devido à luz que penetra, dá a ideia de um rio superficial.
Por volta das 4h30 da tarde, os raios solares incidem na entrada da gruta seguinte. Fazem resplandecer o tom turquesa da sua água e justificam o baptismo de Lagoa Azul.
A derradeira caverna, Kiogo Brado, revela-se massiva.
Esconde o seu próprio trilho interno de 764 metros que, percorremos, munidos de frontais, deslumbrados com o grande corredor de saída, apertado entre paredões que a erosão legou com distintos estratos musgosos.
Regressamos ao ponto de partida com o arrebol a colorir o céu do Cerrado e, já de noite, à base logística de Chapada dos Guimarães.
Nos seus tempos áureos, as terras férteis em redor da Chapada dos Guimarães abasteciam outras cidades do vale do Mato Grosso, sobretudo, Cuiabá.
Nas imediações da Chapada, há um miradouro instalado sobre o lugar equidistante exacto entre os oceanos Atlântico e Pacífico.
Cuiabá e o Centro Geodésico da América do Sul
Em Cuiabá, no entanto, situa-se um ponto com uma importância geográfica superior. Também por lá passamos.
Uma agulha ladrilhada no âmago da Praça Pascoal Moreira Cabral aponta ao firmamento.
Marca o centro geodésico da América do Sul, tal como o determinou, em 1909, o Marechal brasileiro Cândido Rondon.
Rondon tornou-se uma figura de tal forma conceituada no Brasil que Rondônia, o estado a noroeste de Mato Grosso e abaixo do imenso Amazonas, foi baptizado em sua honra.
Em tempos, a Praça Pascoal Moreira Cabral foi conhecida como Campo d’Ourique. Lá eram chicoteados os escravos e lá tinham lugar as cavalhadas e touradas.
Muito mais tarde, acolheu a Câmara Municipal de Cuiabá e a Assembleia Legislativa de Mato Grosso.
O obelisco que examinávamos, surge tanto na bandeira de Cuiabá como no emblema do Cuiabá Esporte Clube.
Apenas uns meses antes da criação deste texto, António Oliveira foi contratado para treinador desse mesmo time. À data, tornou-se o quinto treinador português na época de 2021-2022 a disputar o campeonato principal do Brasil.
Assumiu, assim, o seu próprio papel de destaque no Brasileirão e no tão ou mais escaldante cerne sul-americano.