São quase oito da manhã. Há muito que o sol sobe, disparado, para o céu azulão.
O navio atracara durante a noite. Quando despertamos, 110 km a sul de Luxor, temos como vista a zona ribeirinha de Edfu e a estação de charretes que a servem. Instalamo-nos numa delas. Eid, o guia, dá ordem de partida.
Ao ritmo do seu espanhol arabizado e do trote da parelha equina, percorremos as ruelas da cidade.
Polui-a um sortido incaracterístico de faixas e outros formatos eleitorais, de dezenas de rivais esperançosos. Em tempos de ansiedade democrática e do afluxo diminuído de turistas, Edfu protegia-se com medidas especiais.
Passamos por dois grandes camiões-cela, separados por elementos de uma qualquer força de segurança.
Distinguia-os um uniforme coroado de boné, negro dos pés à cabeça, escuro como os niqabs das mulheres islâmicas tradicionalistas que por ali passavam, junto à base de prédios com fachadas gastas, repletos de letreiros de negócios.
Vendedores de citrinos promoviam a sua fruta, essa, de tons naturais bem vivos, junto a uma loja de jilabas, vestidos e restante vestuário, exposto numa montra elevada acima da entrada.
Edfu entrava, em pleno, na sua azáfama contemporânea quando, umas centenas de metros para poente, o labirinto de ruelas se abre para o reduto milenar e arenoso local da era egípcia Ptolomaica.
Templo de Edfu: a Porta de Entrada Majestosa para a Dinastia Ptolomaica
Mesmo àquela hora, encontramos o Templo de Edfu quase deserto, condizente com o Saara em redor. Intacto, como poucos outros edifícios erguidos no Antigo Egipto e monumental à altura.
Trinta e seis metros, para sermos mais exactos, a medida impressionante da fachada de adobe que nos deixa embasbacados, com as suas linhas caídas e quebradas, reflexo de uma criatividade e riqueza arquitectónica a que só líderes poderosos podiam almejar.
Neste caso, todos eles tiveram origem macedónia. Do primeiro ao oitavo rei da Dinastia, todos eles se intitulavam Ptolomeu.
Admiramos o edifício a partir do início da alameda, algo incrédulos.
Mesmo a essa distância, conseguimos distinguir as figuras inscritas na fachada, perceber a diversidade de personagens e suas acções, adicionadas de ambos os lados do pórtico conhecido como pilão.
A Longa e Profícua Dinastia Ptolomaica do Egipto
O templo de Edfu começou a ser erguido no século 237 a.C., em pleno Reino Ptolomaico do Egipto, fundado por Ptolomeu I Sóter na sequência da morte intrigante de Alexandre o Grande.
Com apenas 32 anos, Alexandre pereceu no palácio do rei Nabucodonosor da Babilónia, de malária, febre tifoide, de intoxicação alcoólica ou de envenenamento, continua por apurar um motivo indisputado.
Contra a gradual desintegração do império legado por Alexandre, um dos mais vastos da História, Ptolomeu I Sóter apoderou-se do Egipto, declarou-se o Faraó sucessor e fez expandir os territórios dominados pela sua Dinastia até à longínqua Núbia, a sul de Assuão. A capital do Reino Ptolomaico recaiu em Alexandria.
Com o passar dos anos, os macedónios assimilaram boa parte da etnicidade, da cultura e dos modos egípcios. Passaram a louvar os deuses egípcios de sempre.
O templo de Edfu foi só um dos vários que lhes dedicaram de forma incondicional e persistente, como o prova o facto de a sua construção se ter arrastado até 57 a.C.
Templo de Edfu. o Grande Santuário Egípcio do deus Hórus
Aproximamo-nos da entrada. Guardam-na duas estátuas de falcões coroados, uma de cada lado, abaixo de outras imagens que exibem versões humanizadas da ave. Em qualquer caso, representam Horus, deus egípcio do céu e da realeza, filho de Osíris e de Isis.
Edfu, ou a cidade antiga de Nekhen que por ali existiu, sempre foi o principal centro de culto de Horus. Coincidência ou não, o templo de Edfu é um dos mais bem conservados de todo o Egipto.
Entramos. A primeira visão que temos é a de um guardião do templo, vestido de jilaba, com um turbante enrolado em volta da cabeça. Encontramo-lo sentado na base de uma coluna, a absorver os raios solares que o destacavam da penumbra.
O vigia dá-nos as boas-vindas. Logo, concede-nos uma fotografia. Por cinco libras egípcias, claro está, já nem esperávamos que fosse de outra maneira.
Progredimos para o interior do santuário, pelas capelas que o envolvem, por corredores com iluminação eléctrica e por outros expostos à luz solar, repletos de jogos de sombras, com os hieróglifos que preenchiam as paredes e as grandes colunas com mais ou menos relevo e definição, consoante o ângulo em que a luz neles incidia.
Preservadas como se mantêm, estas inscrições prendaram os egiptólogos com pistas e dados cruciais ao conhecimento da civilização egípcia, da linguagem, da religião e mitologia em que assentava, incluindo o Drama Sagrado, o conflito divino entre Horus e Seth, este, o deus do caos, da guerra e da seca.
As inscrições e gravuras também contam episódios relevantes da própria edificação do templo. Prosseguimos à sua descoberta.
Não tarda, numa secção anexa e aberta, dividida por muros e colunas incompletas que não resistiram ao peso da história e à aridez do deserto.
A Navegação Entre Edfu e Kom Ombo
Após o meio-dia, com o sol a pique e inclemente, voltamos a cruzar Edfu, rumo ao Nilo. Reembarcamos.
Pouco depois, retomamos a navegação pela artéria aorta da civilização egípcia, para seu montante.
Longe dos tempos das desejadas e profícuas inundações, o caudal do grande rio africano também flui a salvo das sequias geradas por Seth que os camponeses sempre temeram.
Revela-se suficientemente amplo para admitir três ou quatro barcos lado a lado.
Três deles navegam dessa maneira. Sulcam o azul intenso do Nilo, entre florestas de palmeiras, margens e ilhas de papiro, de erva e outros tipos de juncos e de vegetação pastadas por sucessivas manadas de vacas.
Passamos por falucas tradicionais, de convés raso, dois mastros e o mesmo número de velas, brancas.
E por barcos menores, a remos. Num deles, um adolescente toca pífaro, sentado contra um molho de erva recém-cortada, embalado pela ondulação provocada pelos ferries.
Bandos de corvos-marinhos negros, de bico amarelo, sobrevoam-nos, indiferentes ao trânsito fluvial e ao deleite granfino dos passageiros refastelados em volta das piscinas.
Kom Ombo e o Templo de Hórus e do deus Crocodilo Sobek
Sobre as quatro da tarde, atracamos numa doca escadeada e pejada de lojas, num meandro do Nilo acentuado pela ilha de Nagaa Al Jami.
O Templo de Kom Ombo insinuava-se, sobranceiro, com o seu conjunto de colunas destacado acima das árvores ribeirinhas.
Ao desembarque segue-se, de imediato, o trajecto pedestre para o monumento. O grande astro Rá estava prestes a sumir-se para baixo do horizonte.
Sob a luz derradeira do dia, Kom Ombo ostentava um encanto redobrado que desejávamos viver tanto quanto possível.
Mesmo se, decorridos dois milénios desde a sua construção durante o reinado de Ptolomeu IV, se havia degradado mais que o de Edfu, danificado pelas enchentes do Nilo, diz-se que também por terramotos e pela imposição dos cristãos Coptas que, em tempos, o adaptaram a igreja e danificaram vários dos seus hieróglifos.
O que se sabe, hoje, é que o templo de Kom Ombo só foi finalizado nos últimos anos da Dinastia Ptolomaica, alguns acrescentos e aperfeiçoamentos levados a cabo já os Romanos eram donos e senhores destas partes do Egipto.
Subsistem, agora, difusos, os seus salões, os dos tribunais, os santuários, os átrios e as câmaras, neste caso, erguidas na sequência de uma entrada dupla, em lados opostos, dispostos em louvor de um duo divino improvável, o formado por Horus e pelo deus crocodilo da fertilidade e da criação, Sobek.
Deambulamos entre as colunas, decididos a decifrarmos, por nossa conta, pelo menos uma ou duas das ilustrações intrincadas.
O Deus Sol Rá e o Ocaso Exuberante sobre o Alto Egipto
Andamos nestes trabalhos quando percebemos que Rá se dissolvia num drama de cor, para trás do Nilo, do palmeiral e do deserto do Saara infindável a oeste.
Visitantes de todas as partes, entre os quais, várias famílias egípcias, pressentem a transição mágica do dia para a noite.
Posicionam-se para a apreciar, dos laicos aos muçulmanos quase salafitas, cada qual nos seus modos e preparos, num vaivém frenético que capturarmos como curiosos arrastos fotográficos.
Momentos depois, Rá dá entrada no submundo Duat, a bordo da dupla barca solar Mesektet.
Ainda segundo a mitologia egípcia, já com cabeça de carneiro, na companhia de outras divindades, Sia, Hu e Heka e a salvo dos monstros da penumbra por Enéade e pelo inusitado e rebuscado Seth.
Kom Ombo assumiu um curto turno crepuscular, com o céu a desistir do seu azul. Quando a escuridão raptou, por fim, o Egipto, regressamos à barca terrena em que seguíamos.
Lá recarregamos energias, à espera do transbordo de Rá para a sua embarcação matinal e do renovar da sua aurora divinal.