Paramos no meio de um nada sul-americano, determinados em contemplar a imensidão dourada da estepe.
Passam-se cinco minutos. Dos confins desse mesmo nada, surge uma manada de cavalos a galope acompanhada, lado a lado por uma matilha de cães, todos eles determinados ora a controlar a manada ou liderar a corrida.
Na cauda da bizarra cavalgada incita-os um gaúcho de chicote em riste.
Ao ver-nos na beira da estrada, o gaúcho abandona a perseguição. Vem saudar-nos.
Reparamos que uma lebre que os cães haviam caçado lhe ensanguenta a sela e o pelo da montada e avisamo-lo na brincadeira: “Esses cães ainda rebentam com tanta dedicação!”.
“Nã, estão mais que habituados.” responde-nos. “Quando regressarmos, comem muito. Depois, dormem umas boas horas. É lindo isto por aqui, não é? Se quiserem vir numa cavalgada um dia destes, perguntem por mim lá no centro. Toda a gente me conhece. Sou o El Chabón.”
Dialogamos mais um pouco e despedimo-nos. El Chabón, a sua manada de cavalos e os cães retomam a correria. Somem no horizonte. Nós voltamos ao carro e à estrada encharcada.
Mais tarde, viríamos a descobrir que aquela personagem bravia mas cortês, embrulhada em couro e algo sumida num chapéu negro e numa barba tão ou mais escura tinha o nome de Gustavo Holzmann.
Tratava-se de um argentino de ascendência húngara, natural de Buenos Aires que se mudou em 1985 para os arredores de El Calafate, com o plano de criar cavalos.
El Chabón era o termo argentino equivalente ao tio espanhol, ao cara brasileiro e ao gajo português porque ficara conhecido na região.
Com o tempo, Gustavo tornou-se numa espécie de rei local das cavalgadas.
Segundo descrevem as descrições e elogios de que nos fomos inteirando, dedicou-se ao seu negócio com toda a alma, orgulhoso de proporcionar aos clientes momentos de genuína aventura, boa-disposição e confraternização nos cenários descomunais da Patagónia.
Não ficou por aí.
Entregou-se à permacultura e começou a ministrar sessões de hipoterapia. Tão profícua se tornou a sua relação com os equinos que Gustavo se passou a considerar um “caballólogo”.
Retomamos a Ruta Provincial RP15 que parte de El Calafate em direcção aos Andes e aos glaciares a sul.
Devagar e, de quando em quando, aos esses sobre o ripio (areão) escorregadio, avançamos ao longo da enorme arriba que abriga a cidade e da estepe alcatifada de amarelo pelos incontáveis arbustos do frio, os coirones.
Percorremos o espaço sem fim em que vagueiam, ao sabor do pasto, rebanhos de ovelhas e manadas de cavalos. E em que saltitam coelhos, assustados pelas aves de rapina e pelos cães predadores de El Chabón.
A continuação da estrada 15 conduz-nos à entrada de herdades ovelheiras emblemáticas da zona. A El Galpon del Glaciar, a Nibepo Aike, a Anita, entre outras.
Contra uns bons pesos, euros ou dólares, quase todas mimam os forasteiros com um aconchego patagónico tranquilizante e os melhores asados e parrilladas do país. Conscientes da reputação dos asados argentinos, não quisemos ser excepção.
Passamos sob o portal da estáncia Nibepo Aike decididos a submetermo-nos a um desses tratamentos, com vista para elevações polvilhadas de branco. A neve ainda caía nas terras mais altas. A chuva irrigava as terras mais baixas.
À chegada, recebe-nos um trio de gaúchos trajados cada um ao seu estilo, todos dentro dos padrões da tradição gaúcha da província de Santa Cruz.
Guiam-nos numa curta volta pelos edifícios de madeira mais próximos da propriedade. Depois, conduzem-nos a um estábulo desafogado mas lúgubre onde os esperam várias ovelhas.
Em três tempos, dois deles colaboram para capturar e dominar uma ovelha. Atam-lhe as patas e deitam-na sobre o piso. Com o animal enrolado, quase só vemos um focinho branco que se destaca duma grande bola de pelo creme.
As tesouradas que se seguem roubam a maior parte da lã farta da ovelha. Deixam-na com um visual juvenil e inocente, coberta de uma camada ténue de pelo quase branco.
Contra o frio intermédio e o torpor, um outro gaúcho bonacheirão e pitoresco de chapéu de feltro, camisa caqui, colete grená abotoado e avental da cintura para baixo, sorve chá mate.
Bebe-o da bombilla tradicional que segura com afecto enquanto passa os olhos pela parrilla ainda a assar sobre brasas.
Segue-se um longo almoço bem mais merecido por estes cowboys da Patagónia que qualquer um dos visitantes, que se limitam a admirar o seu trabalho, os cenários da estância Nibeko Aike e, vá lá que seja, a inteirarem-se do seu curioso passado.
Segundo nos contam, a herdade teve origem no assentamento e parceria de um grupo de emigrantes croatas, no início do século XX em que Santiago Peso (o nome adaptado à argentina, não o original) e as famílias Trutanic e Stipcic formaram uma sociedade em que Santiago participou com o seu trabalho e os restantes sócios com a compra das ovelhas, outros animais e equipamentos.
Em 1936, Santiago Peso morreu de tuberculose. Seis anos depois, a esposa Maria Martinic – que continuou a explorar a herdade com as três filhas – comprou as partes que pertenciam aos sócios do marido.
Em 1947, decidiu mudar o nome da estáncia de La Jerónima para Nibepo Aike. Nibepo era uma composição das primeiras letras das alcunhas carinhosas das suas descendentes, Nini, Bebe e Poroka, seguido de Aike, um termo indígena tehuelche que significa “lugar de”.
Em 1976, Doña Maria faleceu. Nini comprou a parte da herdade da irmãs. É Adolfo, um dos seus filhos que tem actualmente a cargo a administração.
Os tempos mudaram também um pouco por toda a vasta Patagónia. Já não é a criação ovelheira o meio de sustento das herdades, principalmente em redor de El Calafate em que as visitas e estadias dos muitos turistas que chegam atraídos pela beleza imponente do glaciar Perito Moreno rendem aos proprietários incomparavelmente mais.
De acordo, mesmo se em menor quantidade, alguns gaúchos veem intactos os seus postos de trabalho. Em vez de tomarem conta de rebanhos com milhares de ovelhas, como d’antes, empregam as suas artes a apenas umas dezenas.
Centenas no melhor dos casos. Para compensar, aperfeiçoam os dotes sociais e conversam como nunca, com gente como nós, chegada do outro lado dos oceanos e de todas as partes do mundo.
Cai uma neve fina e esvoaçante. Os gaúchos conhecem a instabilidade traiçoeira da RP-15, ainda pior para os pequenos utilitários alugados em El Calafate em que nos movíamos.
António, um deles, faz questão de nos precaver sobre o que nos esperava com o melhor humor de que se lembrou: “bem amigos, se já escorregava à vinda para cá, preparem-se que agora vai ser bem pior!. Não querem voltar antes num dos nossos cavalos? Molham-se um pouco mas olhem que vão bem mais seguros! “
Rimo-nos a bom rir com a improbabilidade da sugestão e recusamos com uma qualquer piada que não fica a altura.
Metemo-nos no carro já com a cabeça e os ombros cobertos de flocos e fazemo-nos mais uma vez ao rípio.
Como esperado, pelo caminho, patinamos e corrigimos trajectórias de despiste vezes sem conta.
Demoramos uma eternidade, mas lá chegamos a El Calafate sãos, salvos e deslumbrados com os caprichos daquela Patagónia gaúcha sem fim.