Numa ilha como El Hierro, nem o Atlântico nem os vulcões e a lava se somem por muito tempo.
Viramos as costas à capital da Vila de Valverde. Afastamo-nos por uma estrada meio campestre meio silvestre, com piso da mistura de areia e cinza disseminada um pouco por toda a parte.
Andrea Armas, anfitriã em Hierro, faz o reparo: “querem apostar? Vamo-nos cruzar com a minha colega. É a hora de ela sair e ela vai para casa por este caminho.” De facto, umas centenas de metros à frente, a previsão confirma-se. Andrea saúda a colega e retém-na num curto diálogo de ocasião.
De facto, não fosse a promoção recente de La Graciosa a oitava ilha Canária, El Hierro seria a mais diminuta do arquipélago. E, no entanto, nunca poderia ter albergado e satisfeito as duas civilizações que, se estima que a partir de 1405, nela se confrontaram.
Andrea conduz-nos ao Centro de Interpretação da Árvore Garoé.
No interior, elucida-nos quanto à importância daquela árvore frondosa, das encostas em redor e do momento em que os europeus chegaram ao litoral de El Hierro.
A Árvore Milagrosa Garoé e a Inevitável Ocupação dos Conquistadores Europeus
Desde pelo menos a primeira metade do século XIV que castelhanos, aragoneses, galegos, catalães, portugueses e outros procuravam desbravar o arquipélago e reclamar as riquezas que lá pudessem encontrar.
Em 1405, conquistadas Lanzarote e Fuerteventura aos indígenas Majos (Maxos), o normando Jean de Bethencourt virou-se para El Hierro.
Ao desembarcar, não encontrou resistência. É provável que os nativos bimbaches de El Hierro já receassem as incursões dos navegadores barbudos chegados em grandes barcos.
De acordo, quando os avistaram a aproximar-se da costa, ter-se-ão refugiado no único lugar da ilha em que poderiam sobreviver: o alto da árvore de Garoé e covas em redor da vertente, um conjunto a que o franciscano andaluz Juan de Abréu Galindo apelidou de Tigulahe mas que, hoje, em El Hierro ninguém parece conhecer por tal nome.
À época, aquela era a única fonte de água permanente e fiável, alimentada pela névoa húmida que os ventos Alísios ali conduzem, retida por covas alagadas, pela folhagem e por uma rede densa de raízes que se entrelaçam entre essas covas.
Durante algum tempo, a fonte de água do Garoé – que significa rio ou lago em dialecto bérber – permitiu aos Bimbaches – também eles de origem bérber – evitarem o contacto com os homens de Bethencourt e esperarem que a secura no resto da ilha os obrigasse a debandar.
Esse retiro foi possível durante algum tempo. Quando os colonos regressaram com reforços, os Bimbaches deixaram de se conseguir esconder. À parte de se entregarem ao seu destino enquanto escravos, ainda se viram forçados a partilhar a sua preciosa água com os invasores.
A lenda local mais famosa acrescenta à história um jorro de romance.
A Lenda de Paixão e Traição de Agarfa e Tincos
Andrea conta-nos que, segundo a lenda, os europeus deram com o esconderijo dos Bimbaches porque, algures no enredo, Agarfa, uma jovem nativa, se terá apaixonado por Tincos, um soldado andaluz.
A traidora Agarfa revelou, assim, o esconderijo dos seus. Provocou a captura de Armiche, o mencey (rei) dos Bimbaches e viabilizou a ocupação de El Hierro pela Coroa Espanhola. Se mais melodrama faltasse, acabou por morrer às mãos do conquistador amado.
Inauguramos uma curta viagem para o lado noroeste da ilha, ainda de costas para a Villa de Valverde que os colonos mais tarde fundaram, a menor capital das Canárias e a única arredada da beira-mar.
El Hierro sempre foi uma das ilhas mais remotas e desprotegidas. Numa altura em que os ataques dos piratas berberes se sucediam – e atormentavam também as ilhas de Porto Santo e da Madeira – retirar a villa em elevação terá deixado os povoadores normandos e castelhanos algo mais descansados. Isto, enquanto os piratas e outros inimigos se mantiveram a principal preocupação dos colonos, claro está. Nem sempre assim foi.
Regressamos ao asfalto. Cruzamos o cenário rural do interior da ilha e os Barrancos de La Pasada e de Los Muertos, este, já em pleno Camiño de La Pena.
Voltamos a deter-nos junto à Ermida amarela da Virgen de La Peña, encarnação canária da Virgem Maria, patrona de Fuerteventura.
Dali parte o Camiño de Jinama, uma das vias usadas durante séculos pelos habitantes de El Hierro, um trilho mais que de cabras, sobretudo em dias ventosos e de intempérie, traiçoeiro e mortal.
O Deslumbre Inolvidável do Valle de El Golfo
Aproximamo-nos do muro que fechava a estrada em frente à ermida. Sem que o esperássemos, no vislumbre que se seguiu, El Hierro concedeu-nos um assombro que reteremos para sempre na memória
Para diante, para baixo, uma vertente massiva estendia-se, oblíqua, do cimo da ilha até se entregar ao Atlântico numa fajã de lava recortada.
Com o sol quase poente, a espreitar por detrás de um manto de nuvens, sobrevoados por francelhos de olho em tudo, na companhia de cabras indiferentes, o cenário deslumbrou-nos. E não fazíamos sequer ideia do evento arrebatador que o tinha originado.
O Vulcanismo mais Jovem e Mais Activo das Ilhas Canárias
Estima-se que El Hierro tenha emergido do Atlântico há cerca de 1.2 milhões de anos. É, assim, uma das ilhas mais jovens e mais vulcânicas das Canárias. O seu vulcanismo intenso está bem expresso nas suas 500 crateras abertas e em redor de outras 300 cobertas por fluxos de lava moldou e continua a moldar a ilha.
Quando se elevou do mar, crê-se que resultado de três grandes erupções, El Hierro foi coroada por um cone elevado acima dos 2000 metros, 500 metros acima do zénite actual.
O que sobra desse cone, hoje, o vulcão principal da ilha, denomina-se Tanganasoga, termo com óbvia génese bimbache.
Nos milhões de anos decorridos, várias derrocadas se sucederam. A última, de há 15 mil anos, deu origem a uma avalanche com um volume entre 150 a 180km3 e ao panorama do Valle de El Golfo que nos mantinha incrédulos.
Nos anos 80, com recurso a elementos arquitectónicos e culturais de El Hierro, e em jeito de homenagem à sumptuosidade geológica da vista, o artista multifacetado Cesar Manrique dotou uma secção da orla de Risco de Tibataje de um elegante Mirador de La Peña.
Além de mirante, esse monumento é ainda um café-restaurante-esplanada em que tivemos o privilégio de jantar.
No entretanto, o sol afundou-se no oceano. O acendimento das luzes eléctricas reforçou a linha de casario e o padrão de inverneras (estufas) de bananas que assentavam na lava sólida abaixo.
Jinama e o seu Camiño. Um Modo de Vida Vertiginoso
As povoações de El Golfo e o Camiño de Jinama que lá conduz das terras altas do norte da ilha surgiram em função das “mudadas”.
Esta expressão traduz uma transumância que se realizava duas vezes ao ano: uma no Inverno, de maneira a que os animais aproveitassem os pastos. Outra, em pleno Verão, de acordo com as vindimas.
O Camiño de Jinama era, assim, subido e descido vezes sem conta, a pé, de burro e em condução de outros animais essenciais à vida rural.
A sua preponderância durou até, pelo menos, 1950, quando a actual estrada HI-5 foi inaugurada, a ligar as várias povoações entretanto lá estabelecidas, Frontera, Sabinosa, Llanillos, Merese, Toscas, Tigaday, Belgaras.
O lusco-fusco desvaneceu-se. Deixou El Golfo sinalizado pelo sarapintado das suas luzinhas. Pouco depois, recolhemos ao abrigo que tínhamos na ilha, também por elas iluminado.
Acolhemos a manhã seguinte como uma continuação do encanto insular em que El Hierro nos mantinha. Passamos pelo miradouro de La Llania. Dali, acima de uma floresta frondosa de laurisilva, apreciamos El Golfo de uma perspectiva mais centralizada da sua semi-caldeira.
O Domínio Vulcânico que os Herrenhos Continuam a Desafiar
Logo, espreitamos Hoya de Fireba, outra cratera. Por insólito que pareça, de então em diante, o grau vulcânico de El Hierro, só veio a aumentar.
Andrea conduz-nos abaixo da ponta sul da ilha, em busca das instalações do Geoparque da ilha, assim decretado pela UNESCO por méritos geológicos que quase não mereciam discussão.
A determinada altura, vemo-nos cercados por um mar de lava solidificada, numa tal profusão de crateras e chaminés que nos parecia impossível apontar quais as responsáveis pela enxurrada massiva que se estendia até aos fundos meridionais de El Hierro.
Refugiamo-nos do calor de forno no interior refrigerado do centro. Lá assistimos a excertos vídeo do último susto porque, mesmo feitos de Hierro, muitos habitantes da ilha passaram.
2011-2012 e a Actividade Vulcânica que Ameaçou Expulsar os Nativos
Em Outubro de 2011, ao jeito do que aconteceu em 1957-58 com o vulcão faialense dos Capelinhos, uma erupção submarina a cerca de 2km para sul de La Restinga, ganhou dimensão e ímpeto, às tantas, com jactos de água que chegavam a 10 a 15 metros de altura.
Os 600 habitantes da povoação foram evacuados.
Enquanto isso, as emissões de dióxido de carbono do vulcão Tanganasoga e os tremores de terra aumentaram. As autoridades recearam uma nova derrocada da vertente de El Golfo e até novas erupções de uma chaminé emergente nessa zona da ilha.
Também dali se viram evacuadas famílias. as autoridades prepararam-se para o pior. E para evacuarem todos os habitantes de El Hierro.
Após uma oscilação na actividade, por fim, em Março de 2012, mesmo contra a opinião de diversos vulcanologistas, as autoridades declararam a erupção extinta.
De então para cá, registaram-se alguns focos de actividade mas nada que gerasse o pânico de 2011. El Hierro retomou a sua vida.
La Restinga: um Limiar Meridional Acalorado da Europa
Das instalações do Geoparque, descemos até La Restinga, em tempos, uma povoação piscatória com o estatuto emblemático de extremo sul da Europa mas a que a transparência do mar e os ecossistemas submarinos atraíram hordas de mergulhadores ansiosos por explorarem o Atlântico vulcânico ao largo.
Faltava-nos o tempo.
Almoçados num dos restaurantes locais, passamos pela praia de Tacoron, uma enseada natural recortada na imensidão de lava do Sul de El Hierro. Aí, mergulhamos para umas braçadas de descontração, que nos refrescaram do braseiro que nos continuava a envolver.
Ziguezagueamos de volta à estrada HI-410 que dali partia rumo ao extremo oeste da ilha. Em El Julan, confirmamos que, abaixo e em redor, tínhamos apenas e só lava sólida.
Passamos pelo santuário de Nª Srª de Los Reyes. Dessa igreja inverosímil, avançamos até El Sabinar onde louvamos as sabinas notórias de El Hierro, zimbros que os Alísios poderosos ajudaram a retorcer numa profusão de incríveis ondas vegetais.
Punta de Orchilla e o seu Farol no Velho Fim do Mundo
O sol voltava a insinuar-se ao horizonte. Com os minutos contados para chegarmos à Punta de Orchilla a tempo do seu sumiço, apressamo-nos tanto quanto a estrada vertiginosa nos permitia, conscientes da eminência do velho ponto Meridiano, vigente em El Hierro durante mais de 200 anos.
Transferido em 1884 para Greenwich, por este, em vez do de Orchilla, ter as coordenadas correctas.
Antecipamo-nos o suficiente do ocaso para caminharmos em redor e apreciarmos o remanso do farol homónimo, considerado o mais remoto de Espanha.
Logo, instalamo-nos junto a uma cruz destacada do limiar elevado da punta, em homenagem das almas que cruzaram o Atlântico. Na iminência de outra cruz menor que eterniza Carmelo Heredia Olmos, o primeiro faroleiro a acender o farol de Orchilla, em 1933.
O ocaso transforma a cruz e a torre de Orchilla em silhuetas. Quando o escuro se instala, a luz esverdeada do farol fica a sinalizar a orla civilizacional de El Hierro no Atlântico e no Mundo.