O dia manteve-se gélido como todos os outros, de Novembro a Abril, naquelas latitudes europeias extremas.
Tínhamo-lo passado a explorar a região em redor de Saariselka, com o tempo dividido em distintas caminhadas. Uma delas que terminou com sauna combinada com avantouinti: a prática tão idolatrada na Finlândia de mergulhar e praticar natações de curtíssima duração num pequeno buraco aberto num rio gelado e soterrado de neve.
Pouco depois do ocaso, regressámos a Kakslauttanen. Como era de esperar, mal terminámos de jantar, o cansaço tomou-nos conta dos corpos e das mentes.
Estávamos no hotel mais popular da povoação, famoso sobretudo por proporcionar aos hóspedes estadias pensadas para facilitar a observação de auroras boreais, em grandes cápsulas criadas em vidro reforçado.
O restaurante do hotel fecha. Sem mais que fazer, entusiasmados com a missão que se seguia mas já algo anestesiados pela fadiga, instalamo-nos no abrigo especial que nos havia calhado.
Descarregamos as imagens do dia, revemos o equipamento fotográfico, retomamos a leitura de alguns artigos e guias sobre o destino frígido que nos tínhamos proposto a descobrir.
Isto, claro está, com pausas sistemáticas para perscrutarmos o firmamento acima em busca de luzes suspeitas. Aguentámos-nos os dois por algum tempo com estas distracções e muita conversa arrastada, cada vez mais forçada.
Até que nos vimos obrigados a instaurar um regime de turnos, já só meio doloroso.
A Espera Desesperante. E o Aparecimento Celebrado das Auroras Boreais
Por volta da meia-noite, esse regime tinha sido deposto pelas forças imbatíveis do sono. Dormíamos os dois sem qualquer consciência da derrota quando um laivo de ansiedade nos despertou e orientou os olhos para cima.
Uma estranha cintilação clareava o céu a um ritmo irregular mas, dali, não nos desvendava qualquer tonalidade incomum. “Isto deve ser alguma luz de discoteca furtiva de Kakskautannem…” convencemo-nos sem fazermos grande fé na nossa sorte.
Mas a luz não apresentava qualquer padrão de pulsação ou repetição. Analisámo-la por alguns momentos adicionais e rejeitámos essa hipótese. “Não pode ser. Só podem ser elas! Estão a começar, concluímos num êxtase quase histérico.
Vestimos as camadas de roupa que nos faltavam para sobrevivermos ao frio atroz que se fazia sentir no exterior, agarrámos no tripé e no restante equipamento e deixamos o iglô envidraçado.
Lá fora, conseguíamos observar melhor o céu estrelado. Apercebemo-nos num ápice que as auroras boreais se sucediam acima e, num tom de verde-amarelado, se esticavam, encolhiam e contorciam em grande parte da amplitude da abóbada celeste.
De Saída para os -28º Atrozes da Lapónia Finlandesa
Procurámos um lugar que cobrisse a iluminação ténue da povoação e ficámos a admirá-las e a registá-las fascinados pela dança extraterrestre do evento, sempre curiosos sobre quanto mais se expandiriam e se mudariam de tonalidades.
Só horas depois regressámos ao iglô, com os pés dormentes pela contínua imobilidade e as mãos ainda piores devido à frequência com que as expúnhamos ao ar, ao metal do tripé e de parte das câmaras, todos a quase trinta graus negativos.
Foi a primeira vez que avistámos auroras boreais.
Não seria a última.
Naquela zona do mundo, as luzes do norte – como são também chamadas – podem ser vistas em cerca de 100 noites por ano concentradas entre Setembro e Abril.
Hoje, a maior parte dos nativos não se dá ao trabalho de sair de casa para verificar o céu ou acontece já nem repararem que o fenómeno ocorre mesmo sobre as suas cabeças.
As Interpretações dos Nativos Sami das Auroras Boreais
Em termos históricos, os vários grupos Sami chegaram a distintas explicações, cada uma mais original que as restantes. Alguns acreditavam que eram seres com alma e capacidade de ouvir e compreender os humanos.
Os Sami Skolt achavam que eram almas de pessoas mortas na guerra.
Outros, pensavam que eram gás que subia do mar e dos lagos. Mas a crença mais popular na Lapónia explicava o fenómeno com uma raposa de fogo que corria pelos campos a agitar a sua longa cauda.
Nos velhos tempos, as mulheres não se atreviam a sair sem um chapéu ou um pano na cabeça, receosas de ficar com o cabelo queimado.
Durante os movimentos mais pronunciados das auroras boreais, ninguém devia fazer barulho ou falar. Os Sami também evitavam apontar para o céu com receio de as insultar e de ser por elas castigados.
A maior parte dos seus utilizadores não tem disso consciência mas, foi esta mesma raposa incandescente que o motor de busca Firefox popularizou com o seu logotipo com o canídeo a envolver o planeta azul.
Viagem para Inari, Extremo Norte da Lapónia Finlandesa
O itinerário que havíamos estabelecido evoluía para norte até Inari, nas imediações do limiar boreal da nação suómi. Continuámos, por aí, a nossa busca.
Em Inari, dedicamos o máximo tempo possível à Kings Cup, a grande final das corridas de renas que reúne criadores e jockeys Sami vindos de todo o país para conviverem e competirem sobre o lago Inari completamente gelado.
Num desses dias, ficámos alojados à beira do lago Menesjärvi, numa velha escola abandonada que uma família transformara em pousada.
Ali, demos connosco longe de qualquer povoação e sem muito mais para fazer.
Ao mesmo tempo, o lusco-fusco instalou-se sob um céu quase limpo.
Nova Busca de Auroras Boreais. Sobre a Superfície Gelada do Lago Menesjärvi
Voltámos a sair para cima do lago gelado e a aguardar. Estávamos bem mais desprotegidos que nas cápsulas de Kakslautannem. Para compensar, a espera inicial provou-se muito menor.
A noite ainda não tinha escurecido por completo quando percebemos a primeira dança no céu, de um verde menos vivo que o dos avistamentos de há uns dias.
O breu instalou-se. As auroras intensificaram-se por uns bons 40 minutos, por cima do lago e da floresta boreal que o envolvia. De início, corremos a alertar os restantes hóspedes de que tinham começado.
Quando se interromperam, ficámos mais uma vez horas a aguardar que regressassem.
Até que a temperatura desceu de forma insuportável e nos levou a sugerir na sala de jantar, montarmos um esquema de vigia em curtas alternâncias.
Percebemos, no entanto, que o grupo internacional se tinha contentado com o que vira após o nosso aviso.
Sozinhos naquela demanda, enregelados e exaustos, retirámo-nos entregues à esperança que a raposa não aparecesse enquanto dormíamos.
Um Ano Depois. Nova Sequela da Saga Auroras Boreais Finlandesas
No ano seguinte regressamos à Lapónia Finlandesa. Voltamos determinados a explorar melhor a sua capital Rovaniemi e a região em redor. Também aproveitámos para nos estrear na prática do Esqui de Fundo, modalidade sagrada por aquelas paragens.
Fizemo-lo em Ounasvaara, na base de um resort de desportos de Inverno que se prolongava por uma encosta daquelas comedidas, como são todas na Finlândia.
Já nos ocorrera que o crepúsculo deveria ser fabuloso do topo da colina. Subimos a bordo dos saca-rabos que nos passavam pela frente. Mesmo atafulhados e atrapalhados pelas mochilas de fotografia e outras posses mal-guardadas, conquistámo-la sem esforço.
Quando aterramos no cume, o sol dissolve-se numa vasta secção oeste do horizonte. Livre da protecção da encosta, o vento sopra álgido e furibundo.
De tal maneira que parece espalhar aquela mancha alaranjada do ocaso, não só a neve que nos entra pelos olhos e gela as faces enrubescidas.
Um Ocaso Exuberante, como Preâmbulo Celeste do Espectáculo Nocturno
Temos mais sorte do que esperávamos. O hotel Sky Ounasvaara dista apenas alguns passos. Achamos a base semi-soterrada das escadas de acesso e subimos ao terraço panorâmico.
De lá, desvendamos a vastidão branca do centro da Lapónia, já tingida de um rosado avassalador.
Faias sobrecarregadas de neve preenchem o declive a perder de vista ou pelo menos até à sua visão difusa se fundir com a do casario de Rovaniemi e arredores, disperso pelo vale contíguo.
Um anoitecer azulado acaba por se impor à sucessão de tons que até então tinha decorado a atmosfera. Recolhemos para junto da lareira do hotel e recuperamos do quase congelamento a que nos havíamos mais uma vez submetido.
Reavido o calor e o ânimo, a cada dez minutos, um de nós volta ao terraço e perscruta o céu em busca das luzes mágicas. Desistimos passadas duas horas quando uma nebulosidade inconveniente cobre o firmamento sem apelo.
Por volta das nove chegamos a um outro hotel, o Arctic. Aguardamos que nos atendam na recepção. Dezenas de japoneses abonam euros avultados pelo privilégio de observar o fenómeno com condições e conforto especiais incluindo poderem recuperar do frio dentro de um tipi, em redor de uma fogueira, com direito a salsichas para assar, café e chá bem quentes.
Um gerente resgata-nos da espera entre os nipónicos. Leva-nos a conhecer o Palácio de Gelo local.
Bebemos vodka no bar, percorremos as várias divisões e renovamos o espanto com a excelência daquelas gigantescas esculturas sazonais.
Terminado o périplo, caminhamos até à beira do lago na proximidade do hotel.
Contemplação de Auroras Boreais no Seio de Admiradores Nipónicos
Desta feita, não temos sequer que esperar.
Ainda faltam alguns metros para a margem quando começamos a ouvir “aaaahs”, “ooohhhs” e “sugois” (cool, em nipónico). Chegamos ao leito gelado. Encontramos um batalhão de japoneses e de outros asiáticos em absoluto êxtase com o espectáculo no firmamento.
Por cima do lago e da floresta contígua, uma aurora boreal ora verde ora amarelada contorce-se e volta a contorcer-se numa fascinante dança magnética.
Os japoneses, em particular, ganham, ali e então, o dia e as mini-férias. Com maior abundância de neve, durante o Inverno, em diversas zonas do seu país montanhoso caso da região hiper-nevosa de Shirakawa Go – são acima de tudo as auroras boreais que os atraem nesta altura do ano à plana Finlândia.
Para lá de apreciarem a sua beleza excêntrica, muitos, viajam do outro lado do mundo imbuídos da crença de que aquelas luzes espaciais lhes concederão uma melhor vida sexual e fertilidade.
Derradeiros Dias sem Sinal da Raposa de Fogo
Para nós, era já o terceiro avistamento. Continuámos a tentar mas os dias seguintes mantiveram-se nublados. Tínhamo-nos inscrito numa pequena excursão que propunha a procura das auroras boreais em redor de um lago e de uma pequena quinta habitada por uma comunidade que vivia, à moda antiga da Lapónia.
Depressa percebemos – como toda a gente no grupo – que com um céu ali quase todo coberto, a probabilidade de as avistarmos roçava o zero.
Conformados, concentrámo-nos no que de melhor podíamos achar ao nível do solo. Convivemos e devoramos salsichas acabadas de grelhar em redor de uma enorme fogueira que todos íamos alimentando.
A raposa nunca se dignou a aparecer.
Contentámo-nos só com o fogo.