Temos a primeira surpresa ainda antes de partirmos.
O guia encarregue de nos acompanhar falava português. Não o típico português “brasileiro”, muito menos o da região do Pantanal. Expressava-se num português africano.
Quando lhe perguntamos o que o tinha levado até aquele interior do Brasil, tão longe da sua Angola, Coutinho conta-nos que o facto de também falar inglês, lhe abriu a perspectiva de por ali trabalhar na fazenda e em turismo.
A oportunidade pareceu-lhe perfeita, até porque ia continuar a viver no calor.
Agarrou-a assim que pôde.
E continuava por ali, entre a Passo do Lontra e a São João. No caminho entre as duas, sentados na caixa de uma camioneta, conversamos um pouco mais.
Passo do Lontra à Fazenda São João: Viagem pelo Âmago Rural do Pantanal
De terra batida, a estrada provou-se poeirenta e recta, mas repleta de pequenas subidas e descidas forçadas nos lugares em que, durante a época das chuvas e do Pantanal alagado, havia que evitar a sua submersão, sobretudo em redor do grande curso de água mais próximo, o Corixo do Cerrado.
Cruzamo-nos com iguanas e com os inevitáveis carcarás, uma mera introdução à extensão faunística da Passo do Lontra que iríamos encontrar.
Damos entrada na propriedade por volta das onze da manhã, com o calor estival já a apertar. Os quartos, os redários, todos os aposentos privativos, aliás, estavam ocupados.
Instalamo-nos, assim, no dormitório masculino da fazenda, deu-nos ideia de que há muito por usar. Partilhamo-lo com dois grandes sapos que tinham reclamado o “banheiro” como um seu domínio refrescado.
Meia hora depois, Coutinho reaparece. Convoca-nos para uma volta guiada pela fazenda, na companhia de uma guia externa boliviana e dos seus clientes chilenos.
Sor João, o Ancião e Dono da Fazenda São João
Contornamos o pântano no âmago da fazenda quando nos surpreende um senhor já da sua idade, aos comandos de um tractor.
Coutinho informa-nos que se tratava de João Venturini, o dono da propriedade. Como se não bastasse, conduzia um Massey Ferguson, há muito a nossa marca de tractores preferida.
Rogamos-lhe algumas fotos sobre o seu veículo de trabalho. Apesar de pouco habituado a este tipo de atenções e de protagonismo, João Venturini acede.
Posicionamo-nos de maneira a lhe dar o destaque que merecia, e a evitarmos obstáculos de fundo indesejados.
Estamos nesse processo quando sentimos um ardor crescente. Num pé. Logo no outro. Pelos tornozelos acima.
No tempo de percebermos o que se passava, o ardor transforma-se numa aflição generalizada, uma espécie de incêndio biológico.
Estávamos há quase um minuto a fotografar sobre um enorme ninho de formigas-bala (paraponera clavata), assim tratada no Brasil por, com o devido exagero, a sua mordedura causar uma dor comparável à infligida pelos projécteis.
Sôr João Venturini e Coutinho esforçam-se por evitar risadas iminentes. Várias sacudidelas e praguejados depois, antecipamos o término da sessão fotográfica.
À Descoberta do Pantanal da Fazenda São João
Continuamos a afastar-nos dos edifícios da fazenda, ao longo das margens da sua lagoa, que vemos repleta de vegetação anfíbia, decorada por nenúfares, habitada por jacarés juvenis, engordados pela profusão de peixes com que a estiagem todos os anos os brindavam.
Passamos entre mangueiras hiperbólicas, por essa altura, carregadas com mangas ínfimas, miniaturas ainda verdes da fruta suculenta e deliciosa em que o calor abafado da época das chuvas os tornaria.
Enquanto isso, as árvores cumpriam uma outra função.
Araras, Ibis e Tantas outras Aves do Pantanal
Concediam pousos sombrios e protegidos aos bandos de araras que por ali esvoaçavam, entregues aos seus taramelares estridentes.
Ao passarmos sob uma dessas mangueiras, detectamos quatro ou cinco, das azuis, com as suas golas e aros dos olhos amarelos.
Observam-nos, intrigadas, mas menos apreensivas do que contávamos.
Quando, enfim, lhes passa a curiosidade, regressam ao mordiscar conflituoso em que andavam.
Em redor, bandos de íbis-escarlates, guarás-vermelhos, como preferem os brasileiros tratá-los, levam a cabo as suas próprias coreografias de voo, quase sempre ordeiros e bem agrupados.
Primeiro contra a folhagem tropical, logo, pelo firmamento que o calor parece deslavar.
Da comunhão de mangueiras, evoluímos para um pasto encharcado e vasto, sustento e modo de vida das manadas de cavalos que a fazenda fez por aumentar e da boiada que esteve na génese da propriedade.
Fazenda São João, a Fazenda Irmã da Passo do Lontra
Até à sua conversão, a Fazenda São João manteve-se como o retiro rural e pecuário da família Venturini.
Existia como contraponto à Passo do Lontra, uma fazenda fluvial que inauguraram, em 1979, às margens do Miranda para dar resposta a uma crescente procura deste rio e do Vermelho, por parte dos aficionados da pesca.
Com o passar do tempo, a família decidiu oferecer aos hóspedes da Passo do Lontra um dia à descoberta da sua outra fazenda.
Quando os visitantes com ela se encantavam, começaram a reclamar lá passarem noites. Os Venturini acederam. Adaptaram a propriedade a condizer.
Instalaram, por exemplo, o redário em que já não encontrámos vaga. E uma sala de refeições pitoresca, num edifício arredondado de que desponta uma das várias palmeiras do Pantanal, uma bocaiuva ou, pelo menos, assim nos parece.
A Sempre Fascinante Gastronomia Pantaneira
Nesse seu abrigo redado, cozinheiras com figuras e modos de Dª Benta, do velho “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, confecionam, expõem e servem refeições típicas pantaneiras.
Arroz e feijão, macaxeira (mandioca) frita, empadões suculentos e galinha guisada, de tempos a tempos, sacrificadas do bando de galinhas-de-angola que, ao fim do dia, encontramos num sono comunitário sobre as tábuas mais altas do estábulo.
A noite, anunciou-a uma circunferência do sol perfeita, velada por um céu que o braseiro da tarde acinzentara e, assim o quisemos nas nossas fotografias, a ocultar-se atrás dos galhos de um qualquer arvoredo seco.
A noite encheu-se de sons e ruídos misteriosos e mágicos, mesmo ali em redor do dormitório a que chamámos casa.
Bufos de corujas e cantos de mães-da-lua, o coaxar das rãs na lagoa, passos furtivos de jaguatiricas e de antas, rastejares de anacondas. Tudo isto e muito mais ali era de esperar. Até ao despertar do grande pântano.
A aurora traz um alívio da fornalha e até algum orvalho que resiste às primeiras duas horas da ascensão solar. Na lagoa pantanosa, os nenúfares exibem uma frescura exuberante que só a aurora lhes concede.
Os Vaqueiros Pantaneiros da Fazenda São João
Saímos para nova caminhada, entre jacarés em plena recarga, tuiuiús a repararem os ninhos e a mesma boiada do dia anterior, intrigada pela nova invasão do seu pasto.
Ao regressarmos, damos com um trio de vaqueiros pantaneiros da fazenda a regressarem de uma qualquer tarefa a que o gado os tinha obrigado.
Aproximam-se num galope suave. Quando atingem a margem da lagoa, decidem-se pelo atalho e cruzam-na.
A travessia começa tranquila.
Até que, numa zona mais profunda, um cavalo se assusta com um jacaré. Empina e obriga o pantaneiro a dominá-lo, com a mestria dos anos passados sobre a sela.
Jesus e os seus auxiliares desmontam no estábulo. Retiram as selas aos cavalos, recompensam-nos com festas, sentam-se em cadeiras baixas e gozam um descanso ainda trajado.
De chapéus e botas de couro, calças de vaqueta. Cinto dotado de facas e bolsas com outros utensílios.
Descanso com Sabor a Chá-Mate
A conversa flui para um trabalho árduo de aí a uns dias e de como o mesmo labor gerou problemas inesperados numa fazenda vizinha.
Jesus não quer sequer pensar no que aí vem. Apostado em libertar-se do calor e da responsabilidade de ser o exemplo a seguir, enche um corno de mate de água a ferver.
Sorve o chá vitamínico com a leveza de espírito de quem já cavalgou milhentas atribulações daquelas.
Finda a trégua, remete-se à sombra do estábulo e a um estendal sem fim de correias, arreios, fitas e fivelas, alforges, esporas e itens afins.
Ainda tem por ali que fazer, mas o calor e a curiosidade dos forasteiros aliam-se num pretexto justo para adiar a faina.
Em vez, o pantaneiro elegante debruça-se sobre um dos barrotes que servem de cama às galinhas-de-angola.
Deslumbrado pelo lado de lá do Atlântico que lhe contamos, inverte os papéis.
Confronta-nos com duas ou três questões-observações que nos deixam a cogitar, a que responde com a sua forma pantaneira, terra-a-terra, mas tão honesta de ver o Mundo.
Naqueles confins quase paraguaios do Pantanal, o Brasil fazia mais sentido.