É íntima a relação do aeroporto da Ilha das Flores com Santa Cruz, a sua capital.
A cidade aproveitou-se de uma laje destacada da costa oriental. Arruma-se como pode, entre o mar e a pista de asfalto que a separa da encosta inaugural da ilha.
A algumas milhas para norte, a Vila do Corvo espreita-a em permanência. Vive uma vigia mútua e solidária que atenua a solidão e a pequenez imposta pelo Atlântico sem fim.
Ilha das Flores e o Corvo à Vista
O avião revela-as às duas, uma de cada correnteza de janelas. O casario de Santa Cruz, mais e mais definido à medida que a aterragem se aproxima. O do Corvo, aninhado na base da ilha-montanha, apenas e só um vislumbre.
Pousamos contra um vento castigador. Desembarcamos. Num ápice, saímos prontos a verificar a promessa do nativo ao balcão do rent-a-car: “pois, mas mesmo que esta seja a última, vai ser a ilha de que vão gostar mais.” afiança-nos convicto da beleza da sua terra.
Apressamo-nos a instalar-nos e a explorá-la decididos a deixar, para o fim, a cidade que nos recebera.
Contornamos o aeroporto e seguimos vertente acima, apontados à Ribeira dos Barqueiros.
Um desvio da estrada conduz-nos ao Miradouro do Monte das Cruzes e, este, à perspectiva elevada e contrária da pista do aeroporto e da capital, agora do lado de lá, sobranceira ao oceano.
Mudamos da principal via costeira para a ER2-2 que atravessa a ilha a meio. Avançamos pelo reduto mais elevado da Ilha das Flores, um domínio de quase só verde multiplicado entre cumes e prados ondulantes e velhas crateras afundadas por lagoas.
As Caldeiras, as Lagoas de uma Ilha Verdejante e Exuberante
São de tal forma abundantes estas crateras e lagoas que o segundo miradouro em que nos detemos não só foi baptizado em sua honra como as revela aos pares: a Caldeira Negra (ou Funda) e a Caldeira Comprida, lado a lado, vizinhas, mas díspares também no tom da água.
A primeira é escura como breu. A outra, verde, como que tingida pela vegetação envolvente.
A norte destas, a Caldeira Branca e a Lagoa Seca fazem um par rival que enriquece a Reserva Florestal Natural do Morro Alto, no sopé da elevação homónima e, com os seus 914 metros de altitude, a suprema da ilha.
Aproveitamos a proximidade. Metemo-nos por uma estrada de terra e conquistamo-la aos solavancos, a pontos, ladeados por incríveis muros naturais amarelos e verdes de musgo e de líquenes ou por extensões surreais de bolas atufadas de vegetação.
Pequenas manadas de vacas e novilhos cor-de-avelã estranham a incursão e trepam ao cimo dos tufos arredondados de onde nos observam com suspeição.
O cume do Morro Alto não tarda.
Desvenda-nos as várias lagoas porque tínhamos passado e um mar franzido de mato quase raso que se prolongava até ao oceânico em redor.
Descemos das alturas apontados à costa poente. Pouco depois de regressarmos ao alcatrão, atravessamos a Ribeira Grande.
Apercebemo-nos mais tarde, no mapa, que nasce nas terras altas, se divide, flui em direcções opostas e cruza a ilha de lado a lado.
Em qualquer ilha dos Açores, abundam os miradouros. Na Ilha das Flores, é igual.
É com grande proveito panorâmico que neles nos continuamos a deter.
Em seguida, o de Craveiro Lopes, cravado sobre as falésias viradas a ocidente. De lá, vislumbramos o casario da Fajazinha a salpicar o vale profundo retalhado de minifúndios murados que acolheu a povoação.
Os Colonos chegados do Continente à Ilha das Flores. Pouco depois, os Flamengos.
A Fajazinha surge na costa oposta àquela em que, em 1480, se inaugurou o povoamento da ilha.
Foi seu responsável um flamengo. Willem van der Haegen negociou com Dª Maria Vilhena os direitos de capitão donatário originais de Diogo de Teive e que, entretanto, passaram dos Teives para Fernão Teles de Meneses.
Este – são coisas do destino – morreu em 1477, vítima de uma pedrada, durante uma briga numa rua de Alcácer do Sal.
O assentamento do flamengo durou dez anos. Vencido pelo isolamento, Der Haegen mudou-se para São Jorge. O povoamento só foi retomado em 1504, por iniciativa do rei Manuel I. Através do novo capitão-donatário João da Fonseca que promoveu a chegada de colonos da Terceira e da Madeira.
Seis anos depois, vários outros se instalaram, provindos de distintas regiões do norte de Portugal.
Fixaram-se em distintas zonas da costa da ilha, de acordo com o determinado pela sesmaria que lhes fora atribuída e assim incumbidos de cultivar trigo, cevada, milho, legumes, urzela e pastel.
Da Colonização à Intensa Emigração
Lajes das Flores e Santa Cruz das Flores receberam, dessa forma, as suas Cartas de Foral.
Mesmo dividida por bolsas semi-isoladas entre si, a povoação da ilha pegou finalmente de estaca, também devido ao estímulo do comércio com mercadores vindos do Faial, do Pico e da Terceira.
Descemos ao âmago da Fajazinha, uma das aldeias que prosperou até meio do século XIX. Por essa altura, quase chegou aos 900 habitantes mas, em 2011, já só tinha 76.
No entretanto, uma boa parte da população – sobretudo os homens mais jovens – embarcaram em navios baleeiros rumo às terras da América do Norte: Boston, New Bedford, Provincetown, Natucket.
Da Ilha das Flores, entre 1864 e 1920, partiram quase 10.000 pessoas. Apesar dos sermões dos padres que tentavam impingir mil e uma agruras da vida no destino final.
E das preocupação das autoridades em conter esta sangria populacional com patrulhas marítimas regulares de canhoneiras.
Foram tanto florenses como açorianos de outras paragens que se mudavam para a Ilha das Flores em busca da sua oportunidade.
O tilintar das águias americanas (“moedas de ouro de 20 dólares) exibidas pelos retornados e a possibilidade de evitarem o serviço militar nas colónias africanas que nada lhes diziam, provaram-se sempre argumentos mais convincentes.
Uma Família Entregue aos Afazeres Rurais da Fajãzinha
Procuramos onde estacionar quando vemos um cesto carregado de espigas de milho mover-se abaixo. Segura-o uma única mão.
Metemos conversa com o rapaz que o carrega.
Mesmo sabendo de que, a seu ver, a cena não passava de um de tantos esforços agrícolas, gabamos-lhe a elegância rural.
O moço reage com bem mais sensibilidade e acolhimento do que esperávamos. “Acham? Então cheguem ali acima. Já vão ver diferente. Está lá a minha família a colher o resto.” Seguimos a sugestão.
Damos com um milheiral já desfolhado. E com António de Freitas, Maria de Fátima e Rui Filipe, três gerações de florenses sorridentes, pachorrentos e bem consigo próprios.
Partilham a mesma tarefa agrícola e interrompem-na com prazer para nos aturar.
Conversamos sobre a beleza da Fajazinha e as peculiaridades da sua agricultura. Até que nos começa a custar atrasar-lhes mais a vida e nos despedimos.
O Fluir há muito Caprichoso da Ribeira Grande
Atravessa a Fajazinha a tal Ribeira Grande fenomenal que antes tínhamos cruzado. Pois reza a história que, alimentada pelas chuvas que tantas vezes encharcam a ilha, esta mesma ribeira passa com frequência de Grande a torrencial, de benesse a ameaça e faz sérios estragos.
José António Camões, um padre que pregou a Cristandade na freguesia, narrou um seu capricho de 1794 com realismo: “Houve tal inundação e enchente que não só derrubou a dita ponte , mâs nem sequer ao menos della ficou o menor vestígio, sem rasto, saindo de seo leito natural a dicta ribeira que no desembocar no mar deixou um areal largo em maior distância de 300 braças com uma perda inextimavel dos pobres lavradores que possuiam terras a ella contíguas, que todas ao mar foram derregadas.”
Como descreveu também o padre Camões, a determinada altura, a Ribeira Grande mergulha numa das mais impressionantes quedas d’água da ilha, com cerca de 200 metros.
Alagoínha: um Paisagem de Marca da Ilha
Logo ao lago, o caudal anexo da Ribeira do Ferreiro espraia-se pelo prolongamento da mesma falésia. Gera aquela que se tornou a imagem de marca da Ilha das Flores: as quedas d’água do Poço Ribeira do Ferreiro, mais conhecido como Alagoínha.
É a nossa próxima paragem.
Demoramos a achar o caminho curvo feito de grandes calhaus encaixados à sombra de uma floresta viçosa.
Quando o terminamos de percorrer, depressa damos com o paredão quase vertical forrado do verde da vegetação que se estende desde o alto à superfície da lagoa.
Vários véus de noiva deslizam, lado a lado, por esse verde abaixo até se integrarem no caudal do seu destino. Quando o vento amaina, a Alagoínha faz de espelho.
Duplica a cena acima e a beleza tão peculiar daquele lugar. Custa-nos deixá-lo.
Da Fajazinha, movemo-nos costa ocidental acima, rumo à Fajã Grande. Também ali se destaca uma enorme queda d’água. Continua a erodir o seu caminho pela majestosa Rocha da Fajã abaixo.
Até se estatelar noventa metros abaixo, no Poço do Bacalhau que, apesar do nome, se encontra repleto de enguias.
Também não é o nome que o faz mas a Fajã Grande tem bem mais habitantes que a Fajazinha, para cima de duzentos em 2011. O grosso da sua fama vem, no entanto, de outro atributo.
É a última das povoações ocidentais da Europa.
Ilhéu de Monchique: o Último Estertor do Velho Mundo
A oeste, sobra apenas o Ilhéu de Monchique, um rochedo vulcânico com trinta metros de altura. Ermo, inóspito e sombrio, é este o derradeiro solo europeu.
Durante séculos, foi usado pelas embarcações para acertarem as suas rotas e verificarem os instrumentos de navegação. Hoje, serve, acima de tudo, como referência do tal extremo geográfico.
Na noite que se seguiu choveu a sério. Chuva com que, por estranho que pareça, nenhuma outra ilha dos Açores nos havia ainda prendado.
Continuou, até, pela manhã adentro mas, assim que o sol se empinou, afugentou as nuvens choradeiras e abriu passagem à bonança.
Aproveitamos e aventuramo-nos pela estrada que ziguezagueava para sul.
Com passagem por Caveira, por Lomba, Fazenda das Lajes e Lajes das Flores, o assento do Governo Municipal e local de um porto de mar recém-alterado que veio alterar a ordem comercial das coisas, na ilha.
Encanta-nos a fachada insinuante da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Logo à frente, o miradouro do velho forte sobre o porto.
A fortaleza com que a povoação se tentou defender dos ataques de corsários ingleses que se sucederam ao que, em 1587, a deixou saqueada e parcialmente destruída.
No dia anterior, tínhamos passado da Fajãzinha para a Fajã Grande. Tocava-nos agora uma curta viagem entre as Lajes e o Lajedo. E uma extensão ao pitoresco Mosteiro, a paróquia mais pequena da ilha com apenas 43 habitantes registados, em 2011.
A caminho, passamos pela Rocha dos Bordões, um fenómeno geológico curioso em que toda uma fachada de um penhasco solidificou com enormes estrias verticais na base.
De Volta a Santa Cruz das Flores
Dali, invertemos caminho apontados a Santa Cruz. Na capital, entretemo-nos a apreciar as várias igrejas. Prestamos atenção redobrada à Matriz da Conceição, uma das mais imponentes do arquipélago.
Procuramos ainda os fortes que a cidade foi erguendo com os anos, vítima da urgência de repelir os frequentes ataques.
No tanto que caminhamos, nenhuma vista aproximada nos fascina tanto como a que tínhamos revelado no primeiro dia, a partir do monte das Cruzes. Lá nos apressámos a regressar.
Reapreciamos o cenário harmonioso dos confins dos agora apelidados de Havai portugueses e aguardámos que algum avião chegasse para aterrar.
O nosso partia dentro em pouco pelo que nos vimos obrigados a pôr cobro à descoberta da Ilha das Flores e a regressar à Terceira.