São dez e meia da manhã. Miami estava uma hora e noventa quilómetros para trás. Tínhamos também deixado a vastidão verdejante e ensopada dos Southern Glades e continuávamos rumo à origem da U.S. Hwy 1, em grande parte denominada de Overseas Highway por a sua estrutura de asfalto e betão assentar no mar.
Esta estrada emblemática dos Estados Unidos levava-nos pela região anfíbia dos Sounds das Florida Keys adentro, ora por viadutos elevados face à vastidão de mangues e arvoredo alagado, ora por vias térreas mas em que vedações e sucessivas placas proibitivas mantinham inacessível a paisagem em redor.
Não era para menos. À imagem dos famosos Everglades, os Southern Glades e a sua extensão marinha mantêm-se selvagens até mais não.
Pantanosos e labirínticos, abrigam espécies como os crocodilos americanos, os jacarés e as panteras da flórida (pumas endémicos) que, confrontadas com a necessidade e a oportunidade, não desperdiçariam uma refeição humana.
É, assim, com algum alívio que vemos aparecer um desvio na estrada para um reduto em que, tudo aparentava, poderíamos sair do carro a salvo e desentorpecer as pernas.
Pelican Cay RV park: um Insólito Refúgio dos Glades
Uma placa sinalizava a eminência de um Pelican Cay RV park. Um segundo sinal alertava que estávamos numa zona de “Crocodile Crossing” e uma impressão grafitada no muro que delimitava a estrada especificava que se tratava da área de travessia dos répteis US1 900136.
As autoridades tinham os bichos e os seus movimentos catalogados e controlados. Ao contrário de nós que depressa suspeitamos que não deveríamos ali ficar muito mais tempo.
Damos com um parque de estacionamento e com um complexo de recreação privado e guardado a condizer. Antes de chegarmos ao pórtico de entrada, novo aviso com direito a tradução em castelhano chama-nos a atenção “No coolers, No Outside Food or Beverage”.
Os proprietários levavam a sério o seu direito ao lucro. De tal maneira que o segurança responsável pela cancela nos faz abrir o porta-bagagens e vasculha o habitáculo e a mala em busca de transgressões.
Dizemos-lhe que só vamos dar uma espreitadela ao lugar. O funcionário relaxa das suas funções e concede-nos a entrada.
Uma Elaborada Base para Pescarias
Atravessamos um grande bar desafogado com visual de resort.
Só do lado de lá percebemos que estávamos na margem de um dos muitos braços de mar que sulcavam a região, um tal de Manatee Creek que ligava aquela esguelha de terra à imensidão marinha das Florida Keys.
Na ausência de areais, tendo em conta a perigosidade animal daquelas águas, o complexo funcionava como um dos inúmeros antros em que os pescadores da Florida se alojavam.
De onde zarpavam para pescarias ao largo, onde conviviam e trocavam as suas peripécias em noites bem regadas.
Os próprios quartos do estabelecimento, palafíticos, davam para o canal.
Em vez de carros – como acontecia em quase todos os motéis espalhados pelos Estados Unidos – tinham às portas embarcadouros e lanchas apetrechadas de grandes canas-de-pesca.
Sentamo-nos por breves momentos a examinar o lugar. Ainda acompanhámos a partida de duas dessas embarcações para alto-mar. Em seguida, retomámos a nossa própria jornada.
Rumo à Longa Alpondra da Flórida
Dali, a US Hwy 1 prosseguia para sudoeste até encontrar a longa barreira de terra que separava as Florida Keys do Mar das Caraíbas. Intersectámo-la em Key Largo, a maior das Keys (ilhotas), com quase 53 km de extensão. Key Largo assume-se como uma meca do mergulho.
A sua costa sul dá para um recife de coral bem preservado que atrai snorkelers e mergulhadores aos magotes ao seu John PennenKamp Coral Reef State Park, o primeiro parque submarino dos E.U.A.
Quando por lá passamos, o vento forte e uma camada persistente de nuvens reduziam a visibilidade subaquática a um quase nada.
Apostados em mantermos intacta a reputação sedutora e tropical daquele limiar das Caraíbas, mantemo-nos em terra.
Vasculhamos como por ali se entretinham os americanos veraneantes, entregues a expedições de caiaque e paddleboard entre os mangues, a exercícios de passes de futebol americano ou leituras nas enseadas dissimuladas pela verdura da beira-mar.
Entretanto desata a chover. Era o pretexto ideal para abreviarmos novo regresso à estrada. Tínhamos estadia marcada em Islamorada. O destino do dia distava 40km. Nesse trecho, a esplendorosa e arrojada engenharia da Overseas Highway começaria a surpreender-nos.
Viagem pela História das Florida Keys
Por volta de 1920, a extensão peculiar e insular da Flórida despoletou grande interesse de investidores imobiliários.
Interessados em valorizar milhares de hectares no limiar do arquipélago que deliciariam a comunidade de pescadores da nação, esses investidores aliaram-se ao Miami Motor Club.
Com o caminho de ferro entretanto completo e o serviço de ferry que transportava veículos até certas zonas insuficiente, pareceu a todos que a construção de uma via seria não só exequível como premente.
Aos poucos e contra sucessivos contratempos, o projeto foi concretizado ainda que os espaços entre as ilhas mais distantes tenham continuado a depender dos ferries.
Passadas as dificuldades financeiras da Grande Depressão da década de 30, a obra foi retomada.
Milhares de homens ainda desenquadrados pela participação na 1ª Guerra Mundial e carecidos de rendimentos, obraram uma longa autoestrada marinha única, em boa parte assente em pilares fixos no leito marinho.
Em 1935, um ciclone de categoria 5 varreu a zona.
Destruiu muita da infraestrutura rodoviária e vitimou 400 trabalhadores, mais de metade veteranos da 1ª Guerra e, nalguns casos, também as suas famílias. A catástrofe fez as autoridades abortarem a construção.
Dissipada a polémica intensa levantada pelo furacão, viria a ser retomada num trajeto distinto.
A Overseas Highway com percurso íntegro do sul da Flórida até Key West em que agora conduzíamos, só seria inaugurada em 1938.
No ano seguinte, o Presidente Roosevelt percorreu-a com a devida pompa e circunstância.
De Key Largo, descemos pela estreita faixa de terra que, como por clemência geológica, os milénios legaram ao Mar das Caraíbas.
A Overseas Highway foi imposta às maiores de todas as keys da Florida, uma longa cadeia que vem desde a Biscaine Bay, a sul de Miami, e se prolonga por quase 200km até ao improvável extremo peninsular de Key West, a maior das suas cidades.
Seven Mile Bridge e umas Milhas mais até Key West
Chegados à Islamorada que nos acolheria nessa noite, instalamo-nos no hotel. Saímos de imediato à descoberta.
Uma realidade para que devíamos estar avisados naquele contexto marginal mas, ainda assim, capitalista dos E.U.A., surpreendeu-nos.
Por mais que nos esforçássemos, o acesso ao litoral iminente era monopolizado pelas propriedades particulares, casas de férias, hotéis, resorts e afins.
De quando em quando, lá aparecia o fim de uma rua transversal que permitia a visão do oceano, em retalhos incaracterísticos, pouco ou nada atrativos.
Só 10km para sudoeste, demos com uma praia pública, um retalho de areal salpicado por mangue que o recuar da maré vazia descobria, como revelava o imenso leito superficial para diante.
A Anne’s Beach prestava-se mais a passeios caribenhos anfíbios que a banhos.
Abandonamo-la em busca de alternativas. Em Lower Matecumbe Key, encontramos “Robbies” um novo recanto surreal das keys, um complexo bar-esplanada, dotado de lojinhas de pesca e de recordações com extensão para novo ancoradouro.
Parte dos seus passadiços delimitavam viveiros repletos de grandes peixes.
Os visitantes compravam baldes de isco e entretinham-se a alimentá-los. Como seria de esperar, os pelicanos caribenhos tornaram-se clientes habituais do lugar.
Quando lá entramos, patrulhavam os passadiços.
Roubavam pedaços de peixe e disputavam-nos com alarido, para entretenimento das famílias que ali almoçavam ou se preparavam para zarpar para as suas sagradas tardes de pesca.
Seven Mile Bridge e umas Milhas mais até Key West
De Islamorada para sul, viajamos literalmente sobre o Mar das Caraíbas com “saltos” e paragens investigativas noutras poldras intrigantes. Passamos por Vaca Key e por Boot Key.
Pouco depois, entramos na Seven Mile Bridge, a mais longa das Florida Keys, com 11.2 km.
Mantém a companhia paralela da ponte original, bem mais apertada, ainda assim considerada uma maravilha mundial da engenharia quando foi completada em 1916.
A obra deveu-se, sobretudo, à obsessão de Henry Flagler, um magnata do petróleo que apostou em levar o seu Florida East Coast Railway de Miami, sobre o mar, até Key West.
Flagler gastou 30 milhões de dólares do seu próprio dinheiro naquela que foi chamada de “A Loucura de Flagler”.
Em Setembro de 1935, o mais poderoso ciclone a atingir os E.U.A. devastou boa parte da estrutura.
Pigeon Key: um Legado da Determinação de Henry Flagler
Avançamos até Pigeon Key, um ilhéu e antigo campo em que, entre 1908 e 1912, habitaram cerca de 400 dos milhares de trabalhadores contratados por Flagler a 1.5 dólares ao dia.
Lá nos inteiramos de muitas outras curiosidades e peripécias, protegidos de nova súbita bátega de água nos velhos edifícios-museu.
Do Pigeon Key, prosseguimos para a Bahia Honda Key e para o Bahia Honda State Park. Ali, por fim, as Florida Keys desvendam-nos um pouco da sua faceta balnear: areais brancos de coral, coqueiros destacados acima de uma floresta de mangue, mas não só.
Íbises percorriam o areal em busca de alimento, mesmo entre banhistas que ora absorviam o sol invernal ora se divertiam na água rasa.
A velha Seven Mile Bridge também por ali passava. Primeiro perdida entre as copas dos coqueiros. Logo, estendida ao longo do mar em toda a sua excentricidade geométrica de betão e aço.
O sol cai sobre o horizonte. Transforma a ponte e a praia numa silhueta inusitada, num fundo rendilhado que recebe a pintura primeiro prateada, entretanto dourada, daquele nobre fim de tarde.
É já noite cerrada quando damos entrada em Key West, a urbe mais meridional dos E.U.A. continentais e o ponto habitado da nação ianque mais avançado nas Florida Keys.
À imagem do Alasca, Key West ganhou fama de ser algo tresloucada. Como teorizam com orgulho alguns moradores “é como se tivessem abanado os E.U.A. e todos os maluquinhos caído para o fundo”.
A Key West, dedicaremos um artigo tão à parte como a cidade.
COMO IR:
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