Por algum tempo, a vida correu de feição a Tim Reynolds. A mudança da Nova Zelândia para o estado de Victoria foi mais suave do que pensava. E, num ápice, o recém-chegado encontrou emprego, formou família e começou a adaptar-se aos modos australianos.
Mas Tim nunca se conseguiu livrar da sua postura pomposa e demasiado institucional. As frases sempre lhe saíram demasiado pausadas e altivas e as suas expressões de espontaneidade surgiam com meses de intervalo, vislumbres de uma juventude corrompida e há muito perdida.
Uma das consequências inevitáveis foi o divórcio e a ruptura total do lar que há muito ameaçava desabar. Nick, o seu filho mais novo, decidira ficar com ele e não com a mãe. A escolha, interesseira, depressa confirmou um total desprezo do descendente. E uma indiferença assumida que só aprofundava a mágoa e o vazio do pai.
É assim que o conhecemos. Desesperado e à procura de uma nova existência. As viagens tinham-se provado uma fuga deliciosa, mas o seu emprego bem remunerado – 1500 dólares australianos por semana como guarda no tribunal de Melbourne – proibiam grandes evasões.
O Acolhimento Generoso de Tim Reynolds
Não podendo ir à montanha, Tim teve que atrair a montanha a si. E a solução a que chegou foi tornar-se anfitrião de estrangeiros de visita ao sul da Austrália, algo que depressa tornou numa obsessão, ao ponto de assumir online o desejo de acolher pessoas de todo o mundo.
Além de contar aos convidados peripécias dos seus desvarios pelo planeta, Tim apreciava desbobinar um requintado conhecimento enciclopédico. Ciente que chegamos de um país adepto do desporto rei, não resiste a relatar velhos feitos de Eusébio e ganha-nos 10 dólares numa aposta sobre o número de títulos mundiais do Uruguai.
Depois, passa a vangloriar as qualidades superiores do râguebi e, para nossa absoluta surpresa, de um desporto desconhecido de que se tornou adepto incondicional após ter chegado da Nova Zelândia, o Futebol Australiano.
As transmissões dos desafios do downunder destas modalidades ajudavam-no a passar o tempo, principalmente enquanto os viajantes que recebia se ausentavam para descobrir Melbourne e a sumptuosidade natural da Great Ocean Road.
Essendon vs Collingwood. Derbi no gigantesco Melbourne Cricket Ground
De vez em quando, Tim fazia ainda questão de assistir a um jogo sentado no estádio. A nossa curiosidade pela modalidade, de que nem sequer tínhamos ouvido falar, surgiu como o pretexto que lhe faltava para o repetir.
“Despachem-se, não quero perder o princípio do jogo, alerta enquanto devoramos as últimas batatas fritas na pequena casa de fish & chips de Caulfield.” Contagiados pela sua excitação contida, começamos a sentir algum frenesim.
Fazemos o caminho de carro dos arredores longínquos até ao centro de Melbourne e chegamos ao estádio atrasados. Compramos os bilhetes, entramos e sentamo-nos ainda entusiasmados, com o jogo já a decorrer.
Mas a euforia depressa se desvanece à medida que as equipas de Collingwood e Essendon disputam o pequeno esferóide esticado, ínfimo na imensidão do Etihad Stadium. Confirmamos a suspeita de que, para qualquer fanático do desporto-rei, também aquele jogo excêntrico se prova demasiado depressa soporífero.
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Panorâmica do enorme MCG, o Melbourne Cricket Ground.
A Inesperada Complexidade do Futebol Australiano
Contamos 36 jogadores em campo, mais uma série de árbitros.
Como se não chegasse, o relvado oval – que parece maior que alguns países – é invadido a toda a hora por intervenientes secundários das equipas com funções para nós enigmáticas e revela-se palco de um caos que as frequentes substituições e interrupções reforçam.
Custa-nos também a apreciar a frequência com que a bola é pontapeada – ou, pior, projectada por punhos fechados – pelos ares ou rebatida contra o chão para depois ser disputada por adversários que saltam de braços esticados para o céu.
Estes pretensos defeitos são, no entanto, qualidades únicas para os fãs incorruptíveis do estado de Victoria e de outras paragens australianas. Num dia de Grand Final da AFL (Australian Football League), o maior estádio do país, o MCG – Melbourne Cricket Ground – sofre uma adaptação à modalidade rival e pode acolher quase cem mil adeptos.
De acordo, em 2008, a média de assistência do campeonato rondou os 39.000 espectadores, num total anual de sete milhões distribuídos por cento e setenta e seis partidas.
A Popularidade Crescente do recém-nascido Futebol Australiano
Apesar destes números convincentes, o futebol australiano é ainda um tema polémico entre os australianos. O desporto impôs-se em Melbourne (onde nasceu) e restante sul habitado da Austrália. Ganha terreno nos outros estados em que a associação nacional tem vindo a injectar dinheiro para o tornar num verdadeiro fenómeno nacional.
Mas a sua popularidade cada vez mais comercial esbarra na do râguebi e do cricket. Apesar de os registos oficiais contarem 130.000 jogadores adultos e cerca de 2.600 equipas, até agora, o footy só convenceu cerca de metade da população da grande ilha.
Curiosamente, muitos aborígenes são fãs inveterados para o que contribuiu o facto de algumas das suas comunidades terem praticantes famosos em vários clubes.
Fora da Austrália, são alegadamente 30 os países que o praticam, com maior significado nas vizinhas Papua Nova Guiné e Nova Zelândia mas também na África do Sul, nos Estados Unidos e até um pouco na Europa.
As Inúmeras Variantes do Futebol Australiano
Ao mesmo tempo, o Rules deu origem a uma série de modalidades adaptadas com regras que permitem distintos contactos físicos. Foram os casos do Kick-to-Kick, End-to-End Footy, Markers Up, do AusKick, do Rec Footy, do 9-a-Side Footy e do Masters Australian Footy.
Quando confrontados com a ausência de campos dedicados, jogadores australianos a viver no estrangeiro criaram as versões locais possíveis. Foram os casos do Metro Footy e do Samoa Rules.
Em 1956, o Rules foi praticado como desporto de exibição nos Jogos Olímpicos de Verão de Melbourne. Mais tarde, a partir de 1967, tiveram lugar várias partidas entre clubes australianos e gaélicos (principalmente irlandeses).
Em 1998, concretizaram-se as Internacional Rules Series, uma competição entre as duas selecções respectivas que seria suspensa, em 2007, devido à violência desmedida da equipa australiana no ano anterior.
O exagero dos ozzies obrigou até a que as leis de jogo fossem alteradas para salvaguardar o jogador portador da bola. No ano seguinte, essa protecção pareceu assegurada e a prova minimal foi retomada na Austrália.
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Jogadores disputam uma bola perdida no chão.
Tim é apenas um dos muitos adeptos mais recentes mas defende o “Rules” com a força de uma multidão: “Vocês europeus são eternos viciados nesse desporto de bárbaros …” alfineta sem nunca perder a compostura. “Aqui, estamos sempre em evolução.”
Os Registos Possíveis do Derbi de Melbourne
Acabamos por o confirmar quando somos vítimas do marketing de que se envolveu a modalidade. À entrada no estádio, seguranças displicentes tinham-nos deixado passar com as máquinas fotográficas e lentes profissionais. Mas, registávamos já o jogo há meia-hora quando um steward vindo do nada nos proíbe de fotografar por restricções comerciais da equipa da casa.
Tim faz-nos a vontade e refugiamo-nos da supervisão nuns confins isolados do terceiro anel. Dali, roubamos algumas imagens extra mas distanciamo-nos ainda mais da acção e na curta relação com o desporto.
Após o apito final, os Bombers de Essendon levam a melhor sobre os Magpies (pegas) listados de Collingwood. O anfitrião regressa a casa animado e nós com a curiosidade satisfeita mas pouco convencidos.
Os australianos criaram o Rules e atrevem-se a chamar futebol a um desporto em que, quase um século depois, todos os praticantes continuam a jogar também com as mãos. Para qualquer fã do futebol a sério, o castigo é óbvio: eles que o joguem.