A Gestão Espiritual de Wangyal Buthia
Sir Wangyal Buthia revelou-se uma espécie de Winston “The Wolf” Wolfe de “Pulp Fiction”. Por distintas divergências, a nossa relação com os responsáveis pelo turismo de Sikkim começara bem mas depressa se complicou. Conhecemo-los no início de Dezembro. Desde Dezembro que tentávamos confirmar o nosso itinerário naquela província.
Sir Buthia só seria informado de que nos iria acolher lá para 7 de Janeiro, dois dias antes de chegarmos. Nessa data, a maior parte das questões continuavam por desbloquear. Buthia resolveu-as a todas com incrível subtileza e humildade.
“Ok. Sir… just enjoy. Everything is according to u. Let’s together florish Sikkim world wide” garante-nos com recurso a um tradutor automático e a mais positiva das atitudes.
Quando o encontramos em Rangpo, onde Bengala Ocidental e Sikkim namoriscam, depressa confirmamos que Wangyal era o Zen em pessoa. Iluminados pelo seu conhecimento e luz espiritual, Gantkok e Sikkim pareceram-nos sempre mais radiosos.
O cicerone prenda-nos com os lenços khata, garantias sedosas da sinceridade e boa-vontade das suas intenções. De Rangpo, viajámos encosta acima apostados em espreitar o Festival Cultural Red Panda, um dos mais importantes de Sikkim.
O evento realizava-se, no entanto, num estádio. A sua atmosfera artificial de betão e relva sintética anulava qualquer interesse fotográfico que nele pudéssemos ter.
Gangtok acima, Gangtok abaixo
Malgrado o descontentamento dos seus superiores, Sir Buthia compreende os nossos motivos e anui. Definimos como paragem seguinte o Namgyal Institute of Tibetology. Este museu e estabelecimento emprega investigadores da língua e tradições do Tibete e do budismo tibetano.
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Edifício do Namgyal Institute of Tibetology, um centro de investigação do Budismo Tibetano mas não só.
Nos últimos tempos, também o estudo e o registo informático da história dos cerca de sessenta mosteiros de Sikkim e dos seus documentos e obras.
Lá fazemos as nossas próprias investigações que só trocamos por outras, ali ao lado, em redor de Do-Drul Chorten, estupa que abriga livros e outras relíquias sagradas do budismo.
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Monge trabalha em frente da grande estupa sagrada de Do-Drul Chorten
Uma cerimónia religiosa para lá prevista mantêm vários jovens monges entretidos a cortar e a preparar flores, enquanto fiéis budistas fazem girar as 108 rodas de oração dispostas em redor do monumento.
Algum tempo depois, a inauguração do Red Panda Festival terminara. O trânsito voltava a fluir pela ladeira principal da cidade. Também nós nos dirigimos ao seu alto.
Precisávamos de comprar fruta para a noite. Wangyal conduz-nos ao edifício multipisos do grande mercado Lal. Quando chegamos à base, reconhecemos um corte do casario da cidade que tínhamos descoberto na Internet e que nos encantava. Esquecemos de imediato, as tangerinas e as uvas. Imploramos que nos leve ao terraço do mercado.
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Vendedores do mercado Lal de Gangtok nos seus postos elevados de trabalho.
Sir Buthia lidera a correria com que galgamos vários lances de escadas. No cimo, desvenda-nos um recanto escondido entre as muitas tendas de comidas típicas de Sikkim que preenchiam a orla do prédio.
Desse recanto, apreciamos melhor a tal curva de casario arredondado, colorido e emblemático, minutos antes do pôr-do-sol, ao som de um bingo comunal que centenas de moradores de Sikkim – incluindo oficiais da polícia – ali jogam todos os fins de tarde.
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Vista do casario característico da cidade, a partir do cimo do seu mercado Lal.
A noite não tardava a cair. Estávamos cansados da viagem matinal desde Kalimpong e a jornada seguinte de exploração começaria a horas impróprias.
A Omnipresente Montanha Kanchenjunga
A história enfiou Sikkim numa espécie de ranhura do mapa asiático. O antigo reino surge sob o Tibete, entre o Nepal e o Butão, com a fronteira entre o vasto subcontinente indiano e o Bangladesh logo abaixo. Os Himalaias também despontam no seu território. Uma parte exuberante há que dizê-lo, protagonizada pela terceira maior montanha da cordilheira e do Planeta.
Em Gangtok, desde que fora dos meses de monção, a Kanchenjunga está quase sempre presente. Vimo-la despertar e rosar para o dia do topo ventoso e gélido de Tashi, um dos vários miradouros que servem a cidade.
A temperatura roça os 0º. Um grupo de militares indianos em t-shirts aproveita a atmosfera espartana e treinam para uma qualquer estafeta que se avizinha. Já o sol, emerge, triunfante à partida, do leste nas nossas costas. Por breves instantes, rosa e doura os diversos pináculos dos Himalaias.

Sol nasce e ilumina a Kanchenjunga, a terceira montanha mais elevada à face da Terra
Deixa-os entregue à frigidez da alvura e da altura enquanto um bando tresloucado de corvos segue o exemplo dos militares e compete entre si e contra o vento pelos melhores telhados, terraços e ramos das redondezas.
Mais que um pico majestoso, a Kanchenjunga faz parte da espiritualidade das gentes destas paragens. Dos Buthias e dos Lepchas. Ainda dos nepalis que formam a maioria na província, têm a sua língua franca e deram o nome à nação vizinha. Por último, dos tibetanos que residem nas franjas norte e leste da província, mais próximo do Tibete.
Boa parte deles acredita numa divindade Dzo-nga – uma espécie de yeti local – e na existência de um Vale da Imortalidade escondido na cordilheira. Pelo menos a crença no Beyul Dmoshong, é de tal forma real que, em 1962, um Lama Tibetano conduziu centenas de seguidores a encostas elevadas e nevadas da Kanchenjunga, numa peregrinação com o propósito de abrir caminho para esse mesmo vale.
Sikkim: de Reino a Província Indiana
Mas Sikkim não é feito só de montanhas e de redutos budistas. Durante muito tempo independente ou protectorado, o antigo reino viu-se incorporado na Índia, em 1975, durante a vigência de Indira Ghandi, após forte contestação contra a monarquia Chogyal e um referendo que teve como resultado 97.5% de Sim à entrada na União, mas cuja legalidade continua a ser rebatida.
Hoje, plenamente integrada, a província de Sikkim acolhe ainda um número crescente de Bengalis, muçulmanos vindos de Bihar e Marwaris, este, o trio étnico que prospera com o comércio na região sul de Sikkim e em Gangtok.
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Banca serve petiscos de gol gappa (também chamados de pani puri) em em bolas de massa ocas que podem ser servidas recheadas ou ensopadas nos mais distintos sabores indianos, doces ou salgados.
Encontramo-los de cada vez que voltamos ao mercado Lal para reabastecermos, instalados nas suas bancas geminadas e repletas de fruta, vegetais da época e restantes víveres do ano inteiro.
Também noutras em que vendem os incontáveis vestuários e utensílios Made in China que, malgrado as péssimas relações entre a Índia e o Dragão, cruzam a fronteira a norte numa base regular e abastecem bem mais que Sikkim, todo Subcontinente.
Com o sol apontado ao zénite, a temperatura torna-se suportável. Damos por encerrada a contemplação e adoração da Kanchenjunga. Regressamos ao coração de Gangtok desejosos da papa de aveia aconchegante que, como crianças, pedinchamos ao Sir Bhutia para fugirmos aos pequenos-almoços indianizados.
As Ruas e Ruelas Sobrelotadas de Gangtok
Ao chegarmos à artéria principal MG Marg, uma estátua tão humilde como o próprio Mahatma Ghandi abençoa uma multidão multiétnica, jovem e de trajes ora ocidentalizados ora tradicionais que se cruza de forma bastante mais ordeira que a sul do Subcontinente.
Curva e dividida em duas secções em função do relevo caprichoso, a MG Marg é a avenida por excelência de Gangtok. Sikkim orgulha-se do seu estatuto de província mais “verde”, orgânica e limpa da Índia. A MG Marg comprova, pelo menos, o último dos títulos.
Quando a percorremos, entre lojas e lojinhas repletas de produtos de marcas famosas mas aldrabadas, agências, bares e restaurantes com visuais minimamente cuidados, entregamo-nos à impressão de que aterrámos num qualquer recanto europeu, ou da mais civilizada Ásia.
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Cena cinéfila de Rua em Gangtok
Dali, Gangtok ramifica-se numa fascinante rede de ladeiras e escadarias que mantém fortes as pernas dos moradores.
Subimos a bordo do teleférico que serve a cidade e apreciamos, a uma boa distância panorâmica, o casario garrido e dependurado. Numa outra manhã, Wangyal consegue a companhia e o jipe de um cunhado.
Na maior parte do tempo em amena cavaqueira, os dois levam-nos ao lado de lá do rio Teesta e ao Mosteiro Rumtek, um dos mais emblemáticos mas também polémicos de Gangtok.
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Arquitectura garrida e tibetana do mosteiro de Rumtek.
No início dos anos 90, o direito de posse e administração do mosteiro, o maior de Sikkim e o mais rico centro monástico da Índia gerou um estado de sítio.
Rumtek: um Mosteiro Budista em Estado de Guerra
Engane-se quem pense que o Budismo é só meditação e espiritualismo. Rebentaram verdadeiras batalhas campais entre as duas facções.
Desde então, até hoje, o governo indiano mantém presentes militares de metralhadoras, com instruções para dispersarem quaisquer ataques perpetrados pelo lado que pretende reconquistar o mosteiro.
O ambiente é surreal. Quase nos hipnotiza um tema cerimonial místico de trompas e címbalos, adornado pelo gongo tocado por um jovem monge que chama os colegas para a aprendizagem do dia.

Jovem aprendiz budista convoca outros para as aulas no mosteiro Rumtek.
Ao som dessa banda sonora, passamos entre soldados volumosos e camuflados e atravessamos o pórtico principal. Visitantes indianos divertem-se a atirar moedas ao ar com o objectivo supersticioso de as imobilizar no cimo do mastro central da bandeira da paz. Um grande bando de pombos sobrevoa-os.
Procuramos um ponto de observação privilegiado quando damos com um outro grupo mais jovem de aprendizes sentado no chão de um terraço, entregue aos seus cadernos. O adulto que os supervisiona ausenta-se. De imediato, substituem os afazeres monásticos por sucessivas tropelias.
Atraem os pombos com pedaços de chapatis deixados num canto da ala. A determinada altura, todas as aves deles se aproximam. Os pequenos religiosos atingem-nos com pedrinhas e bolas de farinha recém-produzidas. Assustados, os pombos esvoaçam por cima de nós, dão uma pequena volta de reconhecimento e regressam à mendigagem.
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Aprendizes budistas num raro momento de aplicação, no meio de muita traquinice
A brincadeira repete-se até que o tutor regressa e os põe na linha com vergastadas vigorosas. Do lado de lá do pátio, numa das muitas camadas estruturais do templo, prosseguem as trompas, os címbalos e a cerimónia de homenagem e oferendas ao 16º Karmapa, que tem as suas relíquias numa estupa dourada e sagrada.
Deixamos Rumtek entregue à paz podre em que caíra. Voltamos a Gangktok. À chegada, as luzes artificiais já iluminavam as cem mil vidas da cidade. Libertamos Sir Buthia para a sua e ficamos a ver o bingo do mercado de Lal alienar centenas de outras.
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Pequena multidãoo participa em mais uma tarde de bingo no terraço do mercado Lal
Os autores agradecem o apoio na realização deste artigo às seguintes entidades: Embaixada da Índia em Lisboa; Ministry of Tourism, Government of India; Sikkim Tourism