Com um diâmetro de 45 a 50km e um seu zénite, quase central, a roçar os 2 km de altitude, mais que íngreme, a Gran Canária revela-se abrupta.
Sempre que apontamos ao seu interior, as estradas sobem a bom subir, pelos meandros a que os sulcos do vulcanismo e da erosão submeteram a modernidade.
O trajecto entre Vecindário e a vila secular de Aguimes, já 5km para dentro da ilha, pouco destoa.
A Visão Cubista de Aguimes
A povoação alonga-se sobre uma crista do sopé do Pico de Las Nieves, acima de um dos muitos desfiladeiros verdejantes que os canários preferem chamar de barrancos.
Espalha-se sobre a vegetação como um lego de peças pastel, coroado pela inevitável catedral católica.
Do lado de lá do barranco, retomamos a descoberta, já em modo pedestre, pelos becos, ruelas e vielas que sulcam o casario cubista.
Elegante no seu jeito excêntrico, Aguimes acolhe sucessivas vagas de visitantes. Àquela hora, quem sabe se pela distância das principais estâncias balneares, os forasteiros ainda estavam por chegar.
Cruzamo-nos com um ou outro, como nós, independentes, e deslumbrados pela harmonia cromática e de formas em que o pueblo se mantinha, adornado por deliciosos caprichos de arte de rua.
Despontam cactos do interior de pátios.
Potes enfeitam esquinas com pedras por pintar, uma moda arquitectónica que, como a de estilo profícuo de varandas e adufes, se estima importada de Portugal.
Outros pormenores já são, apenas e só, canários. É o caso do camelo de bronze deitado num beco, entre variantes de amarelo.
E o dos crucifixos de flores que abençoam e reforçam a exuberância do casario, uma tradição que vem de tempos ancestrais, mas muito posteriores à fundação de Aguimes.
Uma Povoação Pioneira de Gran Canária
Estima-se que os espanhóis começaram a erguer a povoação, a partir de 1491, pouco depois de terem submetido os indígenas canários e fundado o assentamento que deu origem a Las Palmas, o actual bairro de Vegueta.
Aliás, como aconteceria noutras partes, os conquistadores e os colonos que os seguiram, impuseram Aguimes a um assentamento que os indígenas se viram forçados a abandonar.
A supremacia indisputada da Igreja de San Sebastian, erguida com três naves, torres gémeas e altivas tem uma razão óbvia de ser. Foram os Reis Católicos de Espanha quem validou a fundação da vila.
Quando a ditaram, agradecidos pela participação dos missionários na guerra contra os aborígenes Canários, concederam-na à igreja.
O sol sobe no firmamento. Encurta às sombras dos transeuntes que, após a chegada de uns autocarros de turismo, são em maior número e justificam que os donos de negócios, guias e afins a eles se dediquem.
Por irónico que soe, nos últimos tempos, Aguimes atrai tantos visitantes que justificou um fluxo imigratório de outras partes menos afortunadas da ilha.
Esta realidade contrasta com a de décadas anteriores, em que os produtos hortícolas e outros se revelaram proveitos insuficientes e forçaram os colonos canários a migrarem para Cuba, para Porto Rico, para outras paragens sobretudo hispânicas das Américas.
No cômputo geral, a população do município aumenta há cem anos e, do início do século XX para cá, assente na pujança da zona industrial da vizinha Arinaga, quase a dobrar.
Outros negócios, instalados ainda mais para o interior e para cima na ilha, têm-se provado casos de sucesso em tudo distintos.
Guayadeque: o Rio, o Barranco e as Casas Cuevas Restaurantes
Com Aguimes para trás, seguimos pelo barranco do rio Guayadeque.
Quanto mais subimos nos seus 15km de extensão, mais sentimos o bafo seco de África. Agaves e cactos opuntia floridos disputam a humidade parca retida pelas encostas, por ali, repletas de grutas e cavernas aprofundadas e adornadas pelo homem.
Numa zona panorâmica e de fortes tradições gastronómicas da ilha, vários restaurantes adaptaram-se às reentrâncias e restantes formas das falésias.
O “Tagoror”, o “Veja” e o “La Era”, entre outros, tornaram-se casas cuevas e albergues pitorescas, algumas até bizarras, com os seus túneis e salas lúgubres a contrastarem com as vistas monumentais dos terraços e jardins solarengos.
Servem parrilladas com papas fritas ó arrugadas – estas últimas, as tradicionais das Canárias – enriquecidas com pimentos padrón e morcilla, em qualquer caso, tudo produzido em redor, como o são o mel, os quesos de Ingenio e o viño abocado que mistura vinho doce com vinho tinto.
Almoçados no “La Era”, sentamo-nos na eira que lhe inspirou o nome. Dali, entre agaves e cactos, acompanhamos os carros no seu trajecto de ínfimos ao tamanho real, aos esses, pela estrada que de nós os aproximava.
Uns poucos minutos de sossego contemplativo depois, seguimos pelo mesmo asfalto, rumo às terras cimeiras da Gran Canária.
A Caminho do Cimo de Gran Canária, Pico de Las Nieves
Passamos por El Sequero. Entramos num barranco paralelo ao de Guayadeque – o de Ingenio – que se aproxima do rio homónimo.
Cruzadas algumas povoações de montanha: La Pasadilla, El Roque, La Solana, Cazadores e lugarejos afim, deixamos a zona ressequida da ilha para o domínio vasto da sua floresta de pinheiros, irrigada pela névoa e pela humidade que os ventos alísios fazem chegar do Atlântico.
Incontáveis curvas e pinheiros depois, atravessamos a Caldera de Los Marteles. Logo, atingimos o miradouro Pico de Los Pozos, também conhecido por de Las Nieves.
Com boa parte da ilha em redor, retém-nos a atenção o panorama a noroeste, com a penha de Roque Nublo bem destacada acima do pinhal que preenche a velha caldeira principal da ilha, definido contra os azuis unidos do Atlântico e do céu.
Por detrás, num segundo plano longínquo, impõem-se as linhas de Tenerife e do cone do vulcão El Teide, com os seus 3715 m, o tecto das Canárias sobranceiro face ao cimo de Gran Canária.
Proeminente, e muito.
Vemos caminhantes fazerem-se aos trilhos que se internam no pinhal. E outros que se fotogravam, em poses acrobáticas, sobre rochedos próximos.
Logo abaixo, desprovido de sentido, uma carripana-quiosque mantinha em funcionamento um gerador ruidoso.
A inesperada dessacralização da Natureza canária e a aspereza do sol, não tarda, a pique movem-nos a retomarmos o itinerário.
Tejeda, a Cruz e a Vila Branca
Descemos para Cruz de Tejeda. Logo à chegada, damos com o seu cruzeiro trabalhado, coroado por um Cristo em aflição. À margem do significado religioso, o monumento marcava o centro geográfico de Gran Canária.
Circundavam-no um galo e duas ou três galinhas concentrados nos petiscos que os turistas por ali deixam.
De Cruz de Tejeda, descemos para Tejeda, a povoação-mãe destas partes, toda ela alva, contrastante com o cinza-verde áspero da vertente que a protege.
Dezenas de quilómetros contados, percebemos que estamos a leste do Roque Nublo que antes tínhamos vislumbrado.
O rochedo projecta-se do cimo da vertente em forma de agulha geológica. Com os seus 67 metros pontiagudos, reforça o dramatismo diagonal da povoação.
Em plena caldeira, lar de quase dois mil canários, Tejeda é considerado um dos pueblos mais encantadores de Espanha. Vários outros na Gran Canária, se poderiam juntar ao grupo.
Já apontados à capital Las Palmas, cumpridos 25km de ziguezagues pelo limiar do Parque Rural de Doramas, damos entrada num deles.
Teror e o Culto da Virgen del Pino
Teror é, hoje, um município de pleno direito, relevante a dobrar já que nele se encontra a Basílica de Nuestra Señora del Pino, templo da santa patrona da diocese das Canárias e, em particular, de Gran Canária.
A Virgen del Pino protagonizou uma aparição mariana em Teror.
Tornou-se a razão de ser de um culto católico exacerbado.
E de uma das celebrações de fé mais exuberantes do arquipélago Canário, assente no costume do século XVI de levar a imagem da Virgen a Las Palmas e de, perante ela, rogar pelas chuvas que, à época, se mantinham arredadas da ilha.
Ao invés, à hora a que chegámos a Teror, o céu parecia preparar uma bátega. Virada a nordeste, exposta à nebulosidade arrastada pelos Alísios, só a beleza e alegria da povoação e da sua população quebrava a atmosfera plúmbea envolvente.
Caminhamos ao longo da rua pedestre Calle Real de La Plaza, deslumbrados com a elegância das varandas de madeira, destacadas de outras tantas fachadas seculares.
Ao fim de uma sexta feira, moradores e visitantes das imediações alongavam-se em conversas estridentes, umas apeadas, outras sentadas nas terrazas concorridas.
Já há muito sumido para lá das montanhas, o sol levou para poente o que restava da sua luz. Entregue à dos candeeiros parisienses, Teror passou a encantar em modo pós-crepuscular.
Até que a deixámos, destinados a Las Palmas, a Virgen del Piño furtou-se a irrigar aquela grande, árida, mas acolhedora Canária.