O seu a seu dono.
Temos a obrigação de sublinhar que o estímulo inicial para buscarmos o lugar tema deste artigo, como do que se seguirá, foram umas poucas cenas de magia e mistério a preto-e-branco do filme de Miguel Gomes “Tabu”.
Sentados numa das salas do velho cinema “King”, deslumbramo-nos com cenários montanhosos que, pela trama, se situavam numa das ex-colónias portuguesas de África.
Identificamo-los. Nos anos seguintes, planeamos duas viagens a Moçambique. Na primeira, com excepção para uma incursão à Gorongosa, percorremos a costa, de Maputo à ilha Ibo com passagem por Inhambane e pelo Tofo.
Na segunda, já sem termos como resistir, usamos o comboio para ir da Beira até Tete e ao lado de lá do país. De Tete, cruzamos o Malawi numas horas, até chegarmos à cidade fronteiriça de Milange. Em Milange, ficamos com Gurué ao alcance.
Se percorrido de seguida e sem percalços, o trajecto entre Milange e Gurué faz-se em seis horas. Estávamos, no entanto, à mercê dos chapas moçambicanos.
Entre as esperas até que os proprietários conseguissem lotação esgotada e os tempos arrastados dos percursos Milange – Mocuba e Mocuba – Gurué, acumularam-se onze horas de viagem, no derradeiro trecho, por uma estrada esburacada até mais não.
Onze Horas Depois, a Chegada Nocturna
Sobre as dez da noite, por fim, o sôr Voador – assim conhecido cremos que por voar sobre os buracos sem que os pneus lhe rebentassem – deixa-nos à porta da Pensão Gurué. Tínhamos feito uma reserva telefónica prévia. Quando entramos, percebemos que a Pensão Gurué estava quase ao abandono, tomada por insectos rastejantes.
Deixamos as malas. Saímos para o único lugar em que o segurança da pensão nos disse que ainda poderíamos jantar. Damos com o restaurante-bar “Arina” em modo festivo, com música alta e convivas a celebrar o fim da semana de trabalho.
Ao balcão, o sr. Valério saúda-nos e dá-nos esperança: ” a minha mulher já fechou a cozinha. Vou ver se ela vos faz qualquer coisa.” A Dª Lídia anui. Foi a primeira de todas as refeições a sério que tivemos, em Gurué.
O sr. Valério fala-nos de uma pousada logo ao lado. Quando a espreitamos, parece-nos uma solução mochileira bem mais condigna e confortável. Findo o jantar, mudamo-nos para lá. Por fim, temos a recompensa de um sono tranquilo e duradouro.
Despertamos para um sol tropical radiante. Subimos a escadaria da pousada, em modo de reconhecimento diurno. Caminhamos na direcção da rotunda que faz do cerne da povoação.
O velho cinema Gurué que encerra a praça a leste cheira a pipocas.
Subimos um piso.
A Deambulação Inaugural pela Cidade
Do quase cimo do edifício, admiramos a rotunda e a artéria principal de Gurué, também estrada nacional N103, que vemos percorrida por um trânsito sortido e barulhento.
À imagem do cinema e da pensão, quase todos os edifícios deixados pelos portugueses estão gastos.
Outros, supostos restaurantes e pousadas, revelam um desleixo condizente com a ausência generalizada de estrangeiros a turistar agravada pela recente pandemia. Nos dias que passámos em Gurué, éramos os únicos.
Negócios de vários tipos preenchem os lados da via. Uns poucos mini-mercados e lojas geridas por famílias paquistanesas e chinesas.
Mais afastada da rotunda, a via transforma-se num verdadeiro mercado africano, animado por lojinhas e por bancas de beira da estrada.
Regressamos ao âmago da povoação. Temos a missão de recarregar os dados de Internet. Fazêmo-lo numa agência Movitel tão quente e abafada que também nos serve de sauna.
Cruzamos o Jardim Municipal. No extremo oposto, chama-nos a atenção uma capela de arquitectura aventurosa.
Parece atrair uma nuvem que a evaporação intensa fazia expandir.
A Visão Inaugural de um Monte Namuli e o Dia-a-Dia de Gurué
De lá, sem o esperarmos, temos o primeiro vislumbre de um dos montes Namuli, o Murresse, com o seu cume arredondado destacado e coberto de um estranho verde musgoso.
Poderia ser aquele o Monte Tabu do “Tabu” de Miguel Gomes.
Do nada, uma congregação de peregrinos deixa a capela.
Uma crente, de sua graça Celestina, dá-nos as boas-vindas.
Pergunta-nos se somos católicos, se a eles nos queremos juntar. Escusamo-nos com o plano de deambularmos pela cidade.
Volta a passar por ali a N103.
Ao longo do Hospital Rural de Gurué, a via aloja uma extensão do mercado dedicada às frutas e vegetais.
Motoboys alinhados, mas concorrentes, controlam-na de olho nos potenciais clientes.
Nas imediações, convivemos com a equipa de futebol feminino do Instituto Politécnico (Ipis), recém-equipada de amarelo e que se prepara para um confronto com as Artes, a disputar ali em redor.
Malgrado alguma decadência visual dos seus edifícios e da arquitectura colonial, Gurué acolhe sérios trunfos evolutivos.
Além do IPIS, coexistem os polos da Universidade Católica de Moçambique e o Instituto Dom Bosco, incumbidos de formar as próximas gerações moçambicanas, de entre os quase 300.000 habitantes do distrito e os que se mudam de terras nem sempre próximas da Zambézia.
Num Moçambique ainda refém da ideologista marxista e da sua corrupção pós-marxista, as oportunidades escasseiam.
Da Fundação a um Domínio Produtivo do Chá
Serão mais que as que os portugueses lhes tinham previstas, num regime colonial em que o trabalho dos negros pouco ou nada era remunerado, em que a formação, a liderança e a prosperidade estavam reservadas aos brancos.
Foram os portugueses que fundaram a Gurué não tribal, durante o século XIX. Certas teorias defendem que a baptizaram com a adaptação do dialecto local lomué (macua ocidental) para javali ou, então, de ikurué, traduzível como poderoso.
Uma outra, bem díspar, é a evocada pela escritora moçambicana Paulina Chiziane. Inspirou, aliás, a sua obra “o Alegre Canto da Perdiz”.
Paulina Chiziane relembra que, na mitologia do povo lomué, os Montes Namuli – que são considerados o Éden Africano e o berço da humanidade – nasceram do ovo de uma perdiz. Já Gurué, a cidade, terá recebido a inspiração mitológica para o seu nome do canto da perdiz, que canta “curué, curué, curué” ou “gurué, gurué, gurué”.
Ora o chá chegou à cidade, pouco depois da sua fundação colonial.
Na senda do que os rivais britânicos já faziam a oeste do maciço de Malange (actual Malawi) e que, desde 1914, a Empresa Agrícola de Lugela e a Sociedade de Chá Oriental transpunham para o distrito de Milange, as autoridades ofereceram terras no sopé dos Montes Namuli.
Estimularam portugueses endinheirados a lá gerarem as grandes plantações moçambicanas de chá.
A partir de 1930, a Companhia da Zambézia, a SDZ Chá, a Chá Moçambique, a Chá Gurué e as Plantações Manuel Saraiva Junqueiro, todas possuíam sedes em Gurué. Enriqueciam com a produção e comercialização de chás que conquistaram prestígio internacional.
Foram os casos do Licungo, do Gurúè, do Sto António e do Monte Branco Junqueiro, exportados para o Reino Unido, os Estados Unidos e o Canadá.
Na década de 40, os barões portugueses do chá serviam a presença, em Gurué, de mais de trezentos familiares, amigos, colegas e assalariados.
O chá dava trabalho a milhares de nativos de Gurué, de Lugela e de Ile.
Suscitava lucros que financiaram novos lares, infra-estruturas e outros investimentos agrícolas. Não tarda, até mesmo de uns poucos luxos, caso do cinema, erguido em 1950.
Por forma a resolver a interioridade da povoação, os Transportes Aéreos da Zambézia asseguraram voos para Nampula e Quelimane, a capital da província.
Em 1960, a Zambézia, com óbvia concentração em Gurué, detinha uma das mais amplas áreas de chá do Hemisfério Sul e produzia em redor de 20 mil toneladas anuais.
O chá, a par do caju e do algodão, tornou-se uma das principais exportações moçambicanas.
O Re-baptismo Colonial como Vila Junqueiro
Um dos impulsionadores deste crescimento foi Manuel Saraiva Junqueiro, proprietário da SDZ, Sociedade de Desenvolvimento da Zambézia e, assim ditou o destino no final da década de 50, vítima mortal de um acidente de aviação.
Em sua homenagem, em Outubro 1959, as autoridades rebaptizaram Gurué de Vila Junqueiro. Este nome só foi usado no papel. Entre as gentes, prevaleceu, como prevalece, Gurué.
Malgrado as guerras e a independência moçambicana, a história e a génese lusa estão longe de apagar. Prosseguimos EN103 abaixo. Passamos pelo Paço Episcopal da Diocese de Gurué.
Pouco depois, damos com duas estações de serviço.
A segunda é uma GALP.
Registada como de Manuel Ferreira & Filhos, uma das famílias portuguesas que se manteve em Gurué. Sem surpresa, frequentam a sua loja de conveniência uns poucos portugueses com funções na cidade e na Zambézia. Também lá nos abastecemos de víveres e improvisamos quase-refeições.
Fazemo-lo, por exemplo, antes da incursão inaugural às plantações de chá circundantes. A primeira de várias que contaremos no complemento deste artigo.
COMO IR
Voe de Lisboa para Maputo, com a TAP – flytap.com por a partir de 800€ ida-e-volta. De Maputo, poderá voar com a LAM até Quelimane onde poderá alugar um jipe ou uma pick up e viajar até Gurué.
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