A pequena ilha de Goa sustenta um farol já secular à entrada da Baía de Mossuril. A sua torre listada sinaliza a primeira escala de um périplo de dhow deslumbrante em redor da velha Ilha de Moçambique.
Após uma aturada selecção e negociação, por fim, chegamos a um acordo.
Apesar da atenção e do discernimento empregues, falha-nos um pormenor. Irrisório, senão cómico. Ainda assim, por via da história associada, uma mácula que preferíamos ter evitado.
Dos vários dhows ancorados em frente ao pontão, sob a supervisão da estátua de bronze de Vasco da Gama, acabamos por embarcar num baptizado de “Titanic”.
Nessa manhã, tínhamos voltado a cruzar-nos com Omar, um jovem vendedor de chamuças que percorria a Ilha de Moçambique com um grande frasco ao ombro.
Como era expectável, os lucros diários obtidos pelo rapaz provavam-se comedidos. De tal maneira assim era que, em vez de se entregar ao seu ofício, Omar opta por nos acompanhar no passeio.
Os donos do dhow conhecem-no.
Admitem-no a bordo e ao boião que o miúdo carregava como um apêndice de plástico gorduroso.
A Partida Matinal da Ilha de Moçambique
Instalamo-nos numa zona da embarcação que o capitão nos indica e em que não atrapalharíamos as manobras do trio de tripulantes. Instantes depois, zarpamos para a baía de Mossuril, apontados ao extremo norte da Ilha de Moçambique e à saída para o Canal de Moçambique.
O dhow rasa o forte de São Sebastião. Passa por uma frota de pescadores artesanais a bordo das suas pirogas movidas a pagaia única. Ao contornarmos a península ocupada pela fortaleza, flectimos para sudeste.
Entregamo-nos à imensidão do canal.
Nesse tempo, refastelados entre o assento e o fundo do casco, admiramos a perícia com que o capitão e os seus ajudantes ajustam a vela ao vento, como a esticam e fazem oscilar com uma fluidez que mal nos perturba no nosso trono panorâmico.
À medida que nos aproximamos da ilha da Goa, o tráfico marítimo diminui a olhos vistos.
Aos poucos, de um mero vislumbre, define-se uma torre listada, branca e vermelha, acima de uma crista densa da vegetação que preenche o oriente da ilha, para lá de uma costa feita de duas linhas.
Uma primeira, de recife castanho e áspero. Outra, logo acima, de uma areal alvo que antecede o verde arbustivo.
O “Titanic” aproxima-se do recife rochoso. Navega paralelo, a determinada altura, já ao longo do litoral sul e de seus sucessivos recortes. Um deles, revela-se mais profundo que os anteriores.
Acolhe uma pequena angra com leito de areia molhada. O capitão aponta o “Titanic” àquele portinho natural e de águas cristalinas.
Virada a sul e de mar tranquilo a condizer, a enseada concede-nos um desembarque suave.
Ilha de Goa: o Desembarque na Ilha ainda Deserta
Num ápice, vêmo-nos em terra firme. Subimos para uma laje intermédia forrada a pedra-coral.
Dali, já com um duo de tripulantes do “Titanic” a fazer de guias e Omar a acompanhar-nos, seguimos um trilho de pedra-coral, recto, sulcado na vegetação.
Uma de duas vias abertas e que, em forma de cruz, abrangiam a ilha de Goa de sul a norte e de leste a oeste.
Sempre em fila, ou quase fila, chegados ao centro da ilha, cortamos para a sua perpendicular.
No término dessa continuação, com a costa oriental de novo à vista, esbarramos com a torre listada do farol.
“Comi duas chamuças.
Com este calor, estou a morrer de sede” desabafa Omar, no português básico com que se desenvencilhava com os visitantes lusos, à margem do dialecto macua em que os nativos daquelas paragens comunicam.
Aqui e ali, com recurso adicional a línguas vizinhas, casos do quimuane e do suaíli, úteis para conversas com tanzanianos e até mesmo com quenianos.
Sem que o esperássemos, o rapaz serve-se de um poço coberto. Lança para o seu fundo um garrafão atado a uma corda. Recupera-o, cheio de água.
Enche um copo de metal também ali ao dispor, providencial naquele reduto desprovido de outras infraestruturas e castigado pelo sol tropical.
Omar bebe o copo de um trago único. Restabelecido, insta-nos a subirmos ao cimo do farol. “Vamos! É muito bonito lá de cima.”
Ascendemos a escadaria, sem pressas. Mais que guias, os dois tripulantes provam-se escoltas. Por muito que a ilha tivesse por contar, pouco mais sabem que por ali se orientarem, o suficiente para nos conduzirem aos seus pontos fulcrais.
Deixamo-los ganharem avanço.
A meio de um dos lances da escadaria, Omar detém-se a contemplar a vista por um janelo arredondado, já sem vidros.
Atentos aos seus movimentos, apercebemo-nos como a sua face gerava uma silhueta perfeita, contra os azuis do Canal de Moçambique e do horizonte pouco nublado acima.
Retomamos a ascensão.
Ao chegarmos ao cimo, já os guias por lá cirandavam, entretidos a investigarem se as intempéries e os vendavais teriam causado estragos.
Ilha de Goa e o Cimo Panorâmico do Velho Farol
Um deles, segura o invólucro de acrílico da lâmpada eléctrica, como a testar a sua estabilidade.
Apercebemo-nos que tinha as unhas das mãos pintadas de vermelho bem vivo.
Omar também repara. Confrontamos olhares intrigados. Omar furta-se a observar o que quer que fosse, com o conterrâneo por perto.
Mais tarde, confessa-nos que também achava estranho. “Não sei… achou piada e pintou. Por cá, nem sempre quer dizer nada.”
Sem ter como se alongar no tema, o miúdo aproveita o inesperado protagonismo.
Pousa, mais uma vez, o frasco das chamuças e enquadra-se na campânula enferrujada do farol, a apreciar as vistas em redor.
Voltamos a fotografá-lo, naquela sua inadvertida fotogenia.
Enquanto o fazemos, reparamos em vários respingos, longínquos, ainda assim, bem destacados acima do azulão-profundo do Canal de Moçambique.
As Baleias Irrequietas no Canal de Moçambique
Trocamos de objectivas. Quando os enquadramos e magnificamos, percebemos que se tratavam de baleias, entregues a repetidos saltos e exibicionismos afins.
Há milénios que o Canal de Moçambique está na rota migratória de distintas espécies de cetáceos, sobretudo de baleias-jubarte, e de bossa. Nos meses mais frios, estas espécies deixam as águas demasiado gélidas do Mar Antárctico rumo a norte.
De Junho a Setembro, sobem o sul da costa de África e circulam entre Moçambique, Madagascar, com passagens frequentes ao largo do arquipélago das Comoros.
A sua presença sazonal nestas paragens chegou a justificar que, em tempos em que a caça à baleia carecia de regulamentação, duas empresas, diz-se que norueguesas, instalassem estações baleeiras na província de Inhambane, em Linga-Linga.
Mais tarde, abandonaram-nas, ainda antes de o abate dos cetáceos ser inviabilizado pela sua protecção e pelo estabelecimento de distintas eco-reservas terrestres e marinhas moçambicanas.
E a História Secular do Farol da Ilha de Goa
O farol de que continuávamos a apreciar o panorama índico em redor, esse, foi erguido em 1876, com o fim de assinalar a entrada para a Baía de Mossuril.
De orientar as embarcações ao largo, sobretudo as que tinham como destino a Ilha de Moçambique.
É considerado o mais antigo de Moçambique e estima-se que de toda a costa africana do Índico.
A sua arquitectura quadrangular, em vez de arredondada, serviu de padrão para vários outros entretanto edificados em Zanzibar e ao longo da costa sul da África Oriental Alemã, território colonial desmembrado após a derrota germânica na 1ª Guerra Mundial e que deu origem à actual Tanzânia.
Na origem, o farol da Ilha de Goa tinha meros doze metros de altura.
Em 1923, a sua torre foi aumentada para os trinta e um metros a que nos encontrávamos, dotada de uma nova luz e objectiva, provavelmente antecessoras das que o mantêm em serviço.
Partida da Ilha de Goa, Rumo à Cabaçeira
Como o tínhamos acordado, a Ilha de Goa e o seu emblemático farol eram apenas a primeira paragem de um itinerário mais amplo em redor da Ilha de Moçambique, com desembarque previsto na não menos intrigante península da Cabaceira.
Ciente do valor do seu tempo, o capitão vê-nos a demorar no cimo da torre. Apesar da distância, consegue alertar os tripulantes-guias que está na hora de prosseguirmos.
Tiramos umas derradeiras fotos.
Após o que regressamos ao solo e ao colorido “Titanic”.
Dali, apontamos à ponta de Cabaceira, ao largo de colónias de embondeiros despidos de folhas que nos parecem saudar.
Esse percurso, cumprimo-lo já empurrados por um vento intenso que faz a vela do dhow empolar e o barco inclinar-se até ao limite da sua veloz flutuação.
O capitão nota-nos apreensivos.
Decide sossegar-nos. “Calma, amigos. Isto da parte da tarde é mesmo assim. Quando mais próximo do pôr-do-sol, mais intenso e rápido se torna.”
Abstraímo-nos e aproveitarmos a inclinação. Tiramos fotos dos tripulantes em luta com a vela e com a oscilação causada pelas vagas.
Enquanto isso, o casario longínquo da Ilha de Moçambique desenrolava-se a ritmo condizente.
Por fim, o capitão faz o “Titanic” entrar num braço de mar raso, protegido de manguezais. Regressamos à bonança.
Caminhamos com a água pelos joelhos, entre caranguejos alarmados, até retornamos a terra firme. Tal como nos longos tempos coloniais, a Cabaceira confirmou-se uma expedição à parte.
A que, em breve dedicaremos, o seu merecido capítulo.