O Paraná é o Paraná, austral, no Brasil, sem ser o derradeiro estado.
Subtropical e exposto às frequentes ascensões e invasões das frentes frias do Atlântico Sul. Estas frentes frias e as suas chuvadas já nos tinham feito esperar em Foz de Iguaçu.
Nos últimos dias de Verão do hemisfério sul, quando decidimos passar pela Ilha do Mel, que não tem sequer uma época seca digna desse nome, a meteorologia paranaense volta a castigar-nos.
Ao embarcarmos, em Pontal do Sul, sobre as seis e meia da tarde, já chovia. Durante toda a navegação, a bátega só se intensificou.
Não existem ruas nem estradas na Ilha do Mel, apenas floresta, areal e trilhos estreitos.
Ilha do Mel e a sua Abundante Chuva
O crescendo da pluviosidade dificultou a vida ao rapaz do carrinho-de-mão que, Clemente, desde há alguns dias nosso guia, incumbiu de transportar a bagagem, areal acima, para a pousada que nos iria acolher, a Zorro.
Instalamo-nos em três tempos. Clemente confessa-nos a sua satisfação por regressar a um dos seus lugares preferidos do Paraná, um das evasões favoritas das gentes da capital Curitiba. Como se fosse necessário comprová-lo, desafia-nos para um mergulho. Já anoitecia, mas não tínhamos como recusar.
Num ápice, voltamos à chuva. Corremos por trilhos que Clemente conhecia de trás para a frente e que mais pareciam riachos.
Pouco depois, chegamos ao lado Atlântico da Ilha do Mel e à Praia da Gruta.
Sem conseguirmos perceber bem se o mar estava de confiança, limitamo-nos a atirar-nos sobre os derradeiros momentos das ondas e a nelas chapinharmos.
Uma e outra vez, várias mais, num estranho ritual balnear que teve tanto de salgado como de revigorante.
Regressamos à pousada. Jantamos.
Adormecemos na expectativa de que o amanhecer nos trouxesse o sol de volta.
Nem o amanhecer. Nem a tarde, nem a noite. Choveu quase todo o dia.
Às seis da tarde, parou de chover. O céu continuou cinzento chumbo. Passamos para o novo dia sob nova intempérie.
E para outro, quase todo, uma vez mais, chuvoso.
Depois da Tempestade, a Bonança
O terceiro-dia, um Domingo, amanheceu com o céu a abrir aos poucos.
Por fim, a Ilha do Mel concedeu-nos uma aberta que durou boa parte da tarde.
Assim que a percebemos, saímos equipados e disparados.
Com o sol retornado, a ilha resplandecia de vida.
Na Praia das Encantadas em que estávamos alojados, no sopé de uma encosta coberta de floresta, a frota local de barcos de pesca e de transporte exibia as várias cores
As do “Valentin”, as do “Lua Cheia”, as do “Cristalina”, entre outros.
Asas-deltas e parapentes sulcavam o céu já azulão.´
Surf, Bodyboard, Asa-delta e Natureza sem Fim
As praias viradas a leste, expostas ao Atlântico, voltam a atrair os banhistas e desportistas habituais, quase todos em forma e determinados a mantê-la.
Bodyboarders rolavam dentro de esboços de tubos.
Surfistas disputavam com eles as ondas, a essa hora sofríveis.
Um jovem pai, de cabeleira encaracolada farta, diverte uma criança enquanto tenta vestir o que falta de um fato de neoprene.
No lado esquerdo do torso, logo abaixo do coração, exibe um “Vanessa Te Amo” tatuado.
Aos poucos, inteiramo-nos do quanto a Ilha do Mel e os seus moradores vivem em função do mar e dos desportos marinhos, com óbvio destaque para o surf.
São várias as pousadas e hostels dedicadas a surfistas. Portais coroados por velhas pranchas identificam as praias com as melhores ondas.
A Praia do Farol e todas as Outras em Volta da Ilha do Mel
Com a maré a vazar, o areal vasto da Praia do Farol, recebe sucessivas vagas em processo de alisamento.
Às tantas, já só são meras linhas que a luz lateral distorce e duplica.
Assim as vemos do cimo do morro oposto ao do Farol das Conchas, no meio de uma colónia de limpa-garrafas exuberantes.
Por mais baixas que se revelem, são vagas do Atlântico do Sul.
Ali, como nos outros litorais virados a leste, a imprevisibilidade do mar obriga à presença de nadadores-salvadores, integrantes do Corpo de Bombeiros, dotados de grandes pranchas amarelas e laranjas, a mesma cor dos uniformes.
Da Praia do Farol, regressamos ao interior florestado do parque estadual, em busca de Clemente e de outras paragens. Malgrado o sol abrasador, boa parte dos trilhos que o sulcam continuam por drenar.
Forçam-nos a novas e deliciosas caminhadas anfíbias.
Recuperamos Clemente na pousada. Consciente da nossa origem “patrícia”, o guia propõe-nos um programa irrecusável. “Tem uma fortaleza colonial cá na ilha, ainda do tempo que vocês eram donos e senhores. Devíamos lá ir.”
Claro que devíamos. Nuns poucos minutos, já para lá nos dirigíamos. Clemente alertou-nos que, com o sol que estava, fazermos o trajecto todo a pé, ia ser duro.
Sujeitamo-nos ao seu julgamento.
A Caminho da Fortaleza Nª Srª dos Prazeres, de Volta ao Século XVIII
Metemo-nos num barco em Encantadas que nos leva até ao molhe de Brasília, ao istmo que une as duas secções principais da Ilha do Mel e à entrada da longa Praia da Fortaleza.
Do istmo, percorremos quatro quilómetros quase rectos para norte.
A fortaleza surge, por fim, ajustada a um ziguezague do litoral e ao nível do mar.
De tal maneira térrea que, com a maré a subir, o oceano a cerca de todos os lados, excepto o interior, integrado no sopé florestado.
Inusitada, de tão baixa e exposta que está, a Fortaleza de Nª Srª dos Prazeres foi mandada erguer, em 1767, por D. José I.
Por essa altura, a Baía de Paranaguá tinha-se já tornado importante para Portugal, livre do jugo de Castela, desde 1640, mas não da obsessão da Coroa Espanhola em se apoderar dos domínios lusos que foram politicamente seus durante o período da União Ibérica.
Paranaguá, em específico a ilha de Cotinga, é considerado o lugar inaugural da povoação portuguesa do estado do Paraná.
Em 1550, lá desembarcaram os primeiros colonos, convencidos de que, em redor, encontrariam ouro, e que o conseguiriam extrair apesar da prevalência na zona dos indígenas Carijós.
Os Carijós colaboraram.
A boa relação com os portugueses permitiu que os povoamentos colonos se alastrassem, movidos pelo achamento do metal precioso em diversos rios.
Alguns, foram baptizados com os apelidos das famílias que primeiro chegavam, o dos Almeidas, o dos Correias a par de outros que preservaram os baptismos indígenas, por exemplo, o Guaraguaçu.
A cidade de Paranaguá foi fundada um século depois, em 1649, financiada pelos proveitos crescentes do ouro, movido pelo movimento intenso do Tropeirismo, no Paraná.
Sulcavam o Atlântico do Sul ao largo, navios espanhóis, piratas e, entretanto, até mesmo franceses, holandeses e britânicos.
A Rivalidade colonial no Sul do Brasil e a Fortificação da Ilha do Mel e de Paranaguá
Alertado da vulnerabilidade de Paranaguá, D. José ordenou que a Ilha do Mel fosse guarnecida de forte e respectivos canhões, os dos baluartes e os colocados acima, sobre o Morro da Baleia.
Assegurou, assim, a protecção da entrada mais a norte para a baía, a mais distante das ilhas de Cotinga e, como tal, mais vulnerável.
Há muito desprovida dos seus propósitos bélicos, hoje, as autoridades que gerem o património colonial da ilha têm que lidar com a ameaça dupla do oceano e da mata atlântica, ambos sempre na iminência de invadirem a estrutura.
Damos a volta às muralhas.
Entramos, percorremos os adarves e espreitamos os edifícios complementares, em tempos paiol, casamatas e afins, todos alvos, cobertos de telhas de barro cozidas, bem portuguesas.
Clemente queixa-se de que a longa marcha pela praia o tinha deixado de rastos.
De acordo, recorremos ao serviço de um barqueiro, bem antes do molhe de Nova Brasília. De novo embarcados, retornamos à Praia de Encantadas sem sequer nos determos no istmo.
Clemente entrega-se a uma sesta terapêutica. Nós, detectamos uma placa multicolor e artística que anuncia “Temos Açaí”.
Apreciadores incorrigíveis do fruto e petiscos derivados, além disso esfomeados, mandamos vir duas tigelas bem frias e cremosas.
Primeiro, essas duas. Logo, sem termos como resistir, duas mais, uma gula em que, sempre que envolve açaí, nos metemos sem remorsos.
Em ambas as taças, os montes grenás do açaí gelado vinham cobertos de granola e, claro está, de mel. Enquanto os devoramos, assalta-nos a mente qual seria a explicação para a ilha se chamar do Mel.
Ilha do Mel e a sua Toponímia Misteriosa
Ao fim do dia, Clemente confessa-nos que “não faz nem ideia!”. Quando investigamos, apuramos um sortido de possíveis explicações.
Há a extração do mel silvestre e do açúcar da cana endémica, levada a cabo pelos índios Carijós e pelos colonos pelo menos até 1950, quando o açúcar industrializado não chegava à ilha.
Coexiste a teoria de uma família alemã (a de um tal de Almirante Mehl; em alemão, “mehl” significa farinha) detentora de um engenho de farinha de mandioca, que se dedicou, em simultâneo, à apicultura e inspirou vários marinheiros aposentados a lá fazerem o mesmo.
Outra possibilidade, reside no facto de água doce da ilha conter mercúrio que, ao misturar-se com a salgada, disseminava no mar, uma coloração amarelada.
A toponímia da Ilha do Mel prima pela inexactidão. De acordo com a meteorologia que a mantém luxuriante.
Mesmo nesses dias preciosos de bonança, só não sabíamos ao certo quanto faltava para a chuva tornar.