A estrada que segue para norte de Senggigi sobe e desce, curva e volta a curvar.
Desvenda, a cada um dos seus caprichos, novos cenários tropicais inesperados.
Fazemos o percurso a meia-encosta. Sucedem-se, lá em baixo, enseadas de areia cinzenta, pintada pelo colorido das embarcações de pesca tradicionais.
Ou extra-escurecidas pela sombra da floresta de coqueiros que preenche o vale, até quase tocar o azulão do Mar de Bali.
Mais alguns “sssss”, uma longa rampa e, da ilha homónima, insinua-se, no horizonte, o triângulo quase perfeito do Gunung Agung, um vulcão de 3142 metros de altitude que já foi devastador e pode voltar a entrar em actividade a qualquer momento, apesar da imagem angelical impingida pela sua auréola de nuvens permanente.
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O vulcão Gunung Rinjani, segundo mais elevado da Indonésia, envolto em nuvens.
O ambiente é rústico e rural mas roça o topo da escala do exotismo. Nos campos verdejantes à beira do asfalto, caminham camponeses de chapéus cónicos que conduzem cabras e vacas aos pastos.
Ao nível do mar, remam pescadores a bordo de pequenos perahus (barcos artesanais) prestes a desembarcar nas suas aldeias plantadas no areal.
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Pescador navega um pequeno barco tradicional perahu.
Praias maravilhosas não faltam em Lombok. Na costa noroeste, de Senggigi até chegar a Pemenang destacam-se a Malimbu e a Mangsit. Mais para norte, fica a de Sira e, ao lado, a Medana.
Quem as contempla, desertas e selvagens, fica de pé atrás. Que há de errado com estas baías irresistíveis? Nos dias que correm, nada de nada.
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Praia com areia vulcânica a norte de Senggigi.
O que se passa é que Lombok esteve décadas à sombra da vizinha famosa e o seu promissor desenvolvimento turístico foi prejudicado por confrontos religiosos ocorridos em 2000 e pelos atentados de Kuta, Bali, em 2002.
Por estes motivos e mais alguns, como o facto de ter uma população na sua maioria muçulmana tradicionalista que inibe alguns comportamentos considerados banais no Ocidente.
Lombok é, hoje, a Bali de há vinte anos. Agora que a tranquilidade parece ter regressado de vez, não se deve manter assim por muito tempo. Os seus visuais exóticos justificam-no.
São apenas a razão mais óbvia.
A Razão para a Riqueza Paisagística e Biológica de Lombok
A Linha de Wallace, uma divisória biogeográfica entre a flora e a fauna da zona ecológica indomalaia e a da Australásia, passa exactamente sobre o Estreito de Lombok. Apesar dos escassos 75 km de leste a oeste, quase os mesmos de norte a sul, Lombok contribui decisivamente para a ruptura da paisagem, a Wallacea.
É uma das Pequenas Ilhas da Sonda com maiores contrastes.
Devido à morfologia acidentada que culmina nos 3726 metros do vulcão Gunung Rinjani – o segundo mais alto da Indonésia, atrás apenas do Puncak Jaya (5050 m), da Papua Ocidental – certas áreas do seu território são tão húmidas e luxuriantes como Bali.
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Base de árvore curvilínea numa floresta junto a Senaru.
Outras, principalmente a sul e a leste, mantêm-se secas como o interior da Austrália, anos a fio, independentemente do fluir das monções do sudeste asiático que se antecipam ou atrasam mas acabam sempre por chegar.
Anunciam-se por volta de Outubro, mês em que o acumular de nuvens se intensifica. Costumam resistir até Maio quando a mudança de padrão climático vira os ventos para norte e a chuva passa para as latitudes superiores do sul da China, Filipinas, da Península Malaia, Myanmar, Tailândia e vizinhos da antiga Indochina.
A partir de Maio, apesar de predominarem os dias solarengos, abordam Lombok nuvens determinadas, tantas vezes escuras como breu, que descarregam num ápice e somem noutro.
A Chegada de Bali, a uma Atmosfera Pesada de Monção
Foi num cenário meteorológico deste tipo que aterrámos, vindos de Denpasar – Bali, num sobrevoo curto mas majestoso do Anel de Fogo do Pacífico: o céu carregado até mais não e o sol a espreitar com receio, a reflectir-se no mar.
Por algumas horas, reinou uma atmosfera densa, arroxeada, de luz mágica e cheiro forte a terra asiática encharcada. Na manhã seguinte instalaram-se as altas pressões. Tudo voltou a normalidade.
Os 2.4 milhões de habitantes de Lombok adaptaram-se à morfologia e ao clima da ilha. Moram e têm os seus arrozais a norte do Rinjani, nas planícies férteis do centro, irrigadas pela água que flui da vertente sul do vulcão e nas zonas costeiras viradas a oeste, também elas propícias à vida.
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Agricultor lavra um terreno alguns kms para o interior de Bangsal, na costa norte de Lombok.
As Gentes de Bali: Os Sasaks Muçulmanos e os Hinduístas Balineses
São maioritariamente sasaks, uma etnia muçulmana que retém antigas crenças animistas. Em termos fisiológicos, assemelham-se aos javaneses e aos balineses mas foram, durante largo tempo, um povo de montanha, algo que moldou a sua cultura e lei tradicionais Adat, o princípio porque continuam a reger o nascimento, a circuncisão, os noivados, os casamentos e, em tantas situações, o dia-a-dia.
Oprimidos pelos balineses que ocupavam toda a ilha desde 1750, em 1891, os sasaks convidaram os holandeses que ocupavam Bali a tomar conta de Lombok.
A resposta demorou mas chegou em força: três anos depois, o governador das Índias Orientais Holandesas, Van der Wijck, assinou um tratado com os rebeldes. Acabou por derrotar os balineses, e consegui manipular as aristocracias de ambos os povos em conflito de forma a conservar a paz e o poder.
Foi um equilíbrio improvável que se manteve longos anos, mesmo após da concessão da independência dos holandeses à Indonésia, em 1958, e a integração de Lombok na província insular de Nusa Tenggara Barat.
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Grupo de camponesas planta arroz num campo alagado nas imediações de Mataram.
Actualmente, os balineses são à volta de 10% e os Sasaks quase 90%. Devido ao requinte colorido da sua religião, os primeiros destacam-se da multidão.
Como as restantes cidades e povoações menores da ilha, Senggigi – a mais turística – desperta ao chamamento do “Allah hu Akbar” madrugador cantado pelos muezins.
Rege-se pelos quatro seguintes.
A Resiliência do Hinduísmo numa Ilha Muçulmana da Indonésia
Isso não impede que, ao mesmo tempo, no Pura (templo) Batu Bolong, a família Mindra, trajada a preceito de sash (lenço) e sarong coloridos leve a cabo os rituais elegantes do hinduísmo balinês.
O hinduísmo balinês está tão ou mais distante do indiano que Lombok da Índia. Como os hindus do sub-continente, os balineses crêem na trindade Brahma, Shiva e Vishnu.
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Silhueta do templo Batu Bolong contra a do vulcão Gunung Agung, já parte de Bali.
Acreditam também num deus supremo, Sanghyang Widi que só é venerado de quando em quando, por ocasião da fundação de uma nova aldeia, por exemplo.
Ao contrário do que acontece na Índia, em que proliferam imagens quase livres e garridas destes deuses, em Lombok, como em Bali, a trindade nunca é vista.
A génese da cultura e religião balinesas está na era Majapahit, um reino de influência indiana que, de 1293 a 1500, dominou várias ilhas indonésias e a península malaia e acabou por se refugiar, em Bali, da invasão dos Sultanatos de Malaca e Demak.
Uma das crenças pré-Majapahit que os balineses preservaram foi o kaja, kelod ou kangin, a orientação dos templos de frente para montanhas, o mar ou o nascer do sol, em deferência aos seus espíritos animistas.
É por respeito a esta crença que o ritual da família Mindra se faz sob a supervisão longínqua e sagrada do Gunung Agung, o maior vulcão de Bali.
Um Périplo de Motorizada Pelo Norte Verdejante de Lombok
A ilha não é propriamente grande mas tratamos da descoberta de Lombok, aos poucos, com ajuda da mota alugada que continua sem dar problemas.
A costa oeste já ficou para trás e, com ela, uma série de aldeolas sasaks encaixadas entre o mar e a montanha, quase sempre à beira da estrada que, aqui e ali, desaparece debaixo da areia arrastada pelas torrentes de água caídas da encosta.
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Vislumbre longínquo de uma das cascatas junto a Senaru.
Cruzar estas povoações exige cuidados de condução redobrados. Atravessam-se à nossa frente cães, vacas e galinhas e, como o trânsito é reduzido, a estrada faz ainda de campo de futebol, de pátio para todas as brincadeiras de criança e convívio dos adultos.
Já no norte, os espaços aumentam. Surgem arrozais vastos e campos com outras culturas salpicados de espantalhos toscos e camponeses atarefados.
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Camponesas plantam arroz nos arredores da capital Mataram.
Uma Curta Escala nas Ilhas Sem Nome de Gili
Passamos, sem parar, por Bangsal e seu pequeno porto. É famosa entre a comunidade mundial de “mochileiros” a máfia local de pretensos guias, agentes e vendedores aldrabões que tudo inventam para conseguir umas rupias extra.
Em especial durante o translado para as Gili Islands – cuja tradução trapalhona do bahasa e do inglês é Ilhas Ilhas – e que acabámos também por visitar.
Ficámos apenas duas noites nas Gili. Venceu a vontade de regressar a Lombok que nos tinha surpreendido e que nos continuava a fascinar. Como tal, voltamo-nos a instalar em Senggigi.
Prosseguimos com a exploração, ainda e sempre em modo motoqueiro.
De Mataram Para o Interior do Parque Nacional Gunung Rinjani
Decidimos deixar a costa. Tomamos um caminho que iria começar em Mataram, a capital, e seguir para norte, através da extremidade leste do Parque Nacional Gunung Rinjani, uma área elevada de floresta densa.

Floresta tropical para oeste de Senaru, numa encosta baixa do monte Rinjani.
A caótica Mataram tem cerca de 320.000 mil habitantes. Apesar de ser considerada uma cidade, é, na realidade, um conglomerado de quatro cidades independentes: Ampenam (o porto); Mataram (o centro administrativo); Cakranegara (o centro de negócios) e Bertais, a zona marginal que recebeu o novo terminal de autocarros.
Depois de verificarmos um ou outro pura e o Mayura Water Palace, na lista das suas atracções imperdíveis, concluímos que o tempo é melhor gasto sobre a “nossa” poderosa Honda Supra, à descoberta dos cenários naturais e rurais da ilha.
A estrada interior entre Mataram e Pemenang tem um desenho no mapa praticamente igual à que liga as duas povoações pela costa. As vistas, essas, são distintas.
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Mulher indonésia interrompe a plantação de arroz para confraternizar com os visitantes
Começamos por atravessar uma zona de arrozais minifundiários e arrumados em socalcos sobrepostos até à orla do bambu que anuncia o início da selva.
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Camponeses semeiam arroz num campo de Lombok.
À frente e acima no percurso, a estrada embrenha-se na vegetação. Torna-se sombria.
Atinge o seu ponto mais alto, já em plena Monkey Forest, onde reinam centenas de exemplares endiabrados e ladrões, de uma subespécie barbuda, os macacos-caranguejeiros (macaca fascicularis).
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Fêmea de macaco caranguejeiro numa floresta tropical.
Ali, a selva abre. Dá origem a um miradouro espontâneo que revela uma das perspectivas mais impressionantes de Lombok: a floresta tropical densa e coberta de névoa estendida encosta abaixo até encontrar o mar, vários quilómetros para diante.
Senaru e as Quedas d’Água Generosas no Sopé do Vulcão Rinjani
As vertentes íngremes do Rinjani abrigam inúmeros cenários semelhantes ao deste itinerário. Todos eles escondem os seus encantos particulares.
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Campos agrícolas frondosos de Senaru.
Proliferam quedas d’ água impressionantes com acessos que partem de aldeolas semeadas em campos rurais idílicos e continuam para trilhos de selva encharcados.
São os casos de Tetebatu e Lendang Nangka, na vertente sul, mas sobretudo de de Senaru, na norte, com acesso às suas quedas d´água Sindang Gila e Tiu Kelep.
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Queda d’agua Tiu Kelep encharca a selva no sopé do monte Rinjani.
Apesar de existirem outras hipóteses, com o passar dos anos, Senaru transformou-se na base eleita para as ascensões à Danau Segara Anak (Filha do Mar) – a enorme cratera-lago azul-turquesa do vulcão Gunung Rinjani.
Acolheu o Rinjani Trek Centre, em que podem ser contratados guias e carregadores e tratar-se da restante logística.
O Gunung Rinjani mantém-se inactivo desde 1901. ao contrário do Baru, por comparação, uma miniatura de vulcão alojada na sua cratera.
A última erupção do Baru ocorreu em 1994. Mudou a forma do cume do Rinjani e espalhou cinza sobre grande parte de Lombok.
Nada de dramático.
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Mulher transporta o filho e alguma carga adicional a caminho de Senaru.
Tanto os sasaks como os balineses consideram o Rinjani sagrado. Alguns sasaks fazem várias peregrinações por ano, por norma, durante a lua cheia quando lhe prestam homenagem e aproveitam para curar problemas de saúde com banhos criteriosos nas águas quentes que dele brotam.
Já para os balineses, o Rinjani tem a mesma importância religiosa que o Gunung Agung. Os balineses vêm-no como um trono dos deuses.
De acordo, organizam uma peregrinação anual em que levam a cabo a Pekelan, uma cerimónia em que atiram jóias ao lago e fazem outras oferendas ao espírito da montanha.
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Camponesa separa folhas de arroz
Tanta reverência parece garantir a clemência e protecção do vulcão. Os anos passam.
O Gunung Rinjani continua a poupar e a proteger Lombok, um segredo bem guardado de Nusa Tenggara.