Chegamos a Domingo. Porto Santo prenda-nos com um dos poucos amanheceres solarengos.
Sobre as 9h30, como combinado, estamos à porta do hotel prontos para seguirmos. Os miúdos da família que dali nos acompanhariam, aparecem sonolentos e de chinelos de praia.
O guia da Mar Dourado avisa-os de que, calçados daquela maneira, a caminhada os ia fazer sofrer. Nem assim consegue vencer, primeiro a indecisão, depois, a inércia juvenil de grupo.
Victor encolhe os ombros. Valida a partida. Atravessamos toda a Vila Baleira ao ritmo domingueiro a que a povoação se entregava. Não tarda, a estrada ladeada de casas e negócios dá lugar a uma outra, desafogada, baptizada de Estudante Jorge de Freitas e paralela ao areal dourado do sul da ilha dourada.
Chegados ao sopé da Portela, entramos na marina. Encontramo-la disputada por atletas estimulados pela pista de asfalto entre os rochedos do molhe e o muro repleto de pinturas murais náuticas acima.
Victor reúne os passageiros.
Passa-lhes a informação relativa à navegação e ao destino. Instantes depois, zarparmos para o Atlântico manso a sul do cais.
A Navegação Suave Rumo ao Ilhéu do Farol
O semi-rígido progride na direcção da Ponta do Passo. Da iminência desta península, com vista para a praia aconchegada na sua base, apontamos à extremidade norte do Ilhéu de Cima, uma espécie de cenário invertido a que a geologia e a erosão soltaram amarras.
Não obstante a separação, o Ilhéu de Cima continua por ali. É o mais íntimo da constelação de quase-ilhas vulcânicas e áridas que cercam o Porto Santo. Dista meros 380 metros do limiar sudeste da ilha principal.
O semi-rigído progride tão próximo das suas escarpas ocidentais que, malgrado a sombra, conseguimos apreciar vários tubos de lava que parecem ter sido injectados a posteriori na rocha.
Conseguimos também identificar a formação vulcânica excêntrica que Victor nos aponta, baptizada como Pedra do Sol, por razões que a sua configuração torna bem óbvias.
Estima-se que há cerca de 18 milhões de anos, fluxos de lava velozes e de temperaturas elevadas entraram em contacto com o mar bem mais frio. A lava solidificou em pouco tempo. Assumiu uma estrutura raiada, radial, que evoca o visual do grande astro e que forma um dos principais geossítios do Ilhéu de Cima.
Decorridos mais uns minutos, amaramos no pequeno ancoradouro imposto à costa e a salvo do mar do Norte.
A Longa Rampa e Escadaria para o topo do Ilhéu de Cima
Victor alerta os participantes que, em termos de esforço, tinha chegado o momento da verdade. Como quem não quer a coisa, olha de soslaio para a miudagem e para os seus pés achinelados. “Vamos lá então. São 713 degraus até lá acima. Paramos de quantos em quantos que as vistas cá para baixo são boas.”
Boas… era como quem dizia. Detemo-nos num dos “descansos dos burros”. A escadaria contava com alguns mais, determinados pelos pontos em que os jumentos que antes carregavam os víveres, mercadorias, fosse o que fosse, até ao cimo do farol, eram amarrados de maneira a evitar acidentes.
Desse patamar murado, o mar exibia um incrível esplendor cromático: no imediato, uma faixa esmeralda translúcida que deixava perceber as rochas submersas ao pormenor. Dessa faixa em diante, uma vastidão de água-turquesa a que só o sul de Porto Santo impunha fim.
Faltavam umas centenas de degraus para o cimo do ilhéu. Dali para cima, a transparência e a aparência do mar só se aperfeiçoaram.
O cenário suscita-nos anseios súbitos de mergulhos, banhos e natações. Com a ascensão, se calhar, nem a meio, arrumamo-los no subconsciente e retomamos a conquista do farol.
A escadaria chega a um recanto. Dobra para trás. Mais umas boas dezenas de degraus e lança-nos sobre a terra estável do topo do ilhéu.
Pré-informado de que participávamos com uma missão à parte, Victor dá-nos a soltura necessária para nos adiantarmos e chegarmos à ponta noroeste do ilhéu com tempo de fotografarmos o seu confronto grandioso com a do Passo.
Incursão à Ponta Noroeste
Quase corremos. Evitamos um ataque de gaivotas furiosas pelo trespasse do seu território onde, por certo, teriam ninho.
Assim mesmo, atrapalhados pelo vento cimeiro e pela ameaça asada, progredimos sobre a crista apertada, ao mesmo tempo que admirávamos o panorama sombrio e vertiginoso à direita.
Por fim, a crista abre para um trecho um pouco mais amplo e espalmado. Tiramos as mochilas das costas, estabilizamos a respiração ofegante.
Logo, desatamos a fotografar. Sobretudo o Pico Branco, a sua Terra Chã e outros picos que se erguiam acima da Ponta do Passo, destacados do maciço dourado do Porto Santo, apenas separados da ponta que nos sustinha por um estreito de mar raso, esverdeado.
Já estávamos atrasados. Retrocedemos com o mesmo cuidado. Vemos a fila liderada por Victor ao longe. Victor, detecta-nos e reclama-nos.
Quando nos reunimos, o grupo faz-se a uma ladeira que cruza a secção mais larga do ilhéu e sobe para o topo das arribas que encerram o seu leste, abrigo das cenouras-da-rocha endémicas da Macaronésia.
O trilho surge demarcado pela ausência da vegetação baixa e ressequida predominante em redor, salpicada apenas por umas poucas árvores de folhas afiadas que, tudo indicava, seriam juvenis. Intrigados, perguntamos a Victor de que se tratavam.
Os Dragoeiros que, em tempos, Abundavam em Porto Santo
O guia esclarece-nos. “São dragoeiros. Agora, pode-vos parecer impossível mas este Ilhéu de Cima e Porto Santo em geral já estiveram repletos de grandes dragoeiros.
No Ilhéu de Cima, em particular, foram tantos que chegou a ser chamado de Ilhéu dos Dragoeiros.
As árvores e o sentido do nome desapareceram porque, com a colonização, veio a procura de madeira e a extracção do sangue-de-drago, alastradas a quase toda a Macaronésia.
O cronista açoriano Gaspar Frutuoso (1522, Ponta Delgada; 1591, Ribeira Grande, Madeira) narrou, nas suas crónicas que, com os troncos dos dragoeiros milenares, os colonos do Porto Santo construíram barcos capazes de levar seis ou sete homens à pesca.
Com os séculos, o Porto Santo e os seus ilhéus perderam-nos a todos mas os dragos mantêm lugar definitivo nas armas do município da cidade que, na prática, abrange toda a ilha.
As autoridades ambicionam recuperá-los. Tratando-se de árvores de crescimento lento, têm muito que plantar. E ainda mais que esperar.
O Farol por que Também é Conhecido o Ilhéu
O farol, esse, não tardou.
Uns passos adicionais, já a 120 metros de altitude, esbarramos com a sua frente, virada a oeste, Compõem-na duas alas habitacionais gémeas, com uma torre de quinze metros no meio, por sua vez, coroada por uma campânula vermelha.
Victor e os colegas instalam-se junto às mesas de descanso e refeições que equipam a estrutura. Lá se dedicam a preparar os comes e bebes que a comitiva fizera por merecer.
Aproveitamos para investigar o entorno do farol. Não vamos longe.
Quando lhe damos a volta, confirmamos que havia sido inaugurado, em Maio de 1901, quase sobre os penhascos leste do ilhéu, num ponto elevado que facilitava o avistamento da sua luz rotativa pelas embarcações nas rotas de entrada e saída da Europa.
O Farol do Ilhéu de Cima continua a ser, há que sublinhá-lo, o primeiro a guiar os barcos provenientes do norte, fosse dos litorais atlânticos europeus, fosse do Mar Mediterrânico.
Até 1956, a sua luz foi alimentada a petróleo. Desse ano em diante, o farol funcionou com uma lâmpada de 3000 watts, remodelada, em 1982, quando passou a ter um alcance de quase 40km e tornou desnecessária a intervenção de faroleiros.
Por improvável que possa parecer, decorrida uma década, o farol foi desligado sem aviso.
O Desembarque Atribulado de Migrantes Marroquinos que Desligaram o Farol
Estamos já sentados numa das mesas da petiscada quando Victor nos conta o sucedido: “olhem, desactivaram-no quatro marroquinos que aqui chegaram em desespero.
Tinham embarcado num navio panamiano, em Casablanca, de forma clandestina.
Entretanto, a tripulação descobriu-os e o comandante tomou a medida mais radical. Largou-os no mar aqui próximo. A muito esforço, conseguiram chegar cá acima mas não havia aqui ninguém, nem sequer água.
Por isso, decidiram desligar o farol de maneira a que os viessem socorrer.
A Dentista Beirã Lurdes e o Mergulho no Atlântico Delicioso ao Largo
Victor entrega-se a deveres de anfitrião noutras mesas. Na continuação da conversa, conhecemos melhor uma parceira da nossa.
Chamava-se Lurdes. Era de Viseu, onde trabalhava como dentista. Fazia cinco anos que migrara da Beira Alta para o Porto Santo, com a filha que, nessa altura, já ia com onze anos e tinha trocado o sotaque beirão pelo profeta.
Lurdes delicia-nos com particularidades das suas consultas, em que os pacientes lhe ofereciam de tudo um pouco, como sempre foi hábito dos beirões e da gente do interior de Portugal.
Finda-se o repasto. Invertemos o caminho para onde o semi-rígido nos aguardava, a essa altura, já com os adolescentes dos chinelos a rogarem pragas à sua teimosia comunal.
Informado de que teria tempo para se refrescar, o grupo atinge o fundo da escadaria num ápice. Já sobre a laje vulcânica que fazia de doca, mergulhamos no Atlântico amornado ao largo.
Rejubilamos com o banho inaugural em Porto Santo. Ditou a azáfama exploradora e fotográfica que tivesse sido o único.
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