Viajar de comboio, do interior lapão de Rovaniemi para o cimo do Golfo de Bótnia e, pouco depois, dar entrada no hotel do maior Castelo de Neve do Mundo reforça o grau de surrealismo quase-árctico em que andávamos.
São quase três da tarde.
Kemi e o seu Castelo de Neve Recordista
A temperatura cai a pique. A luz que subsiste desvanece-se a um ritmo comparável. Conduzem-nos ao quarto em que íamos ficar e passam-nos indicações ajustadas à frigidez do alojamento:
“O vosso quarto está a 5º negativos. É a forma que temos de garantir que não derrete!” atira a anfitriã com um sorriso sarcástico, ciente de que dificilmente os -5º a -20º exteriores e ambientes o permitiriam. “Os sacos-cama são para -25º. Se os usarem bem, conseguem um sono aconchegado.”
O saco-cama tinha forro polar e outras duas camadas. Fechava-se com, nem mais nem menos, três fechos de correr sincronizáveis.
Bem mais que os sacos-cama volumosos e complexos, impressionava-nos a cama sólida, translúcida e gélida que nos esperava.
Daí a duas horas, a noite tomaria conta de Kemi. Para o tal sono experimental, faltava mais. Decidimo-nos a usar o ainda dia minguante a cirandarmos. Primeiro pelo castelo. Logo, pela Kemi em redor.
À conquista da fortificação, desvendamos salas comunais ligadas por túneis e entradas arqueadas.
Sala após Sala, Distintos Motivos Finlandeses Esculpidos no Gelo
Uma das salas, tem toda uma floresta talhada nas paredes e tecto. Num recanto, uma raposa mágica aponta um coelho tirado de uma cartola. Passamos para uma sala ao lado.
Nessa, angry birds olham os visitantes de soslaio, munidos de uma fisga que anima tantas das suas estórias.
É uma homenagem àquela que se mantém a criação ficcional – desenho animado, jogo e afins – mais popular alguma vez criada na Finlândia.
Há uma capela com cinquenta a cem assentos que já uniu casais dos quatro cantos do Mundo. Há o restaurante de gelo em que, não tarda, iríamos jantar.
Outros espaços, revelam-nos distintas figuras do imaginário suomi, todas esculpidas no gelo alvo em que a fortaleza é erguida, receptora de tonalidades que uma iluminação artificial fazia alternar.
Uma comunidade irrequieta de catraios deambula, para cá e para lá, entregue a brincadeiras, diabruras e correrias que ajudam a suportar o frio.
Lá fora, três ou quatro adultos esforçam-se por controlar a excitação gerada por uns poucos escorregas sulcados, em declive, no gelo, em que a miudagem se faz deslizar sobre bóias, trenós, tobogãs e sabe-se lá em que mais.
Monstros com olhos de luz fulminante parecem engolir a criançada de cada vez que mudam de ala.
Desafogado como era, o Castelo de Neve de Kemi abrigava aquilo e muito mais.
A História ainda Curta do Castelo de Neve
Em 1996, a cidade de Kemi ergueu-o em parceria com a UNICEF, como uma dádiva às crianças do Mundo. De então para cá, com quase trinta Primaveras e Verões pelo meio, o castelo derreteu e foi reerguido, pelo menos, tantas vezes.
Com áreas que oscilaram entre os 13 mil e os 20 mil metros quadrados e as muralhas mais longas a medirem para cima de 1km.
De início, surgia junto à margem da Baía de Bótnia e à marina de Kemi. Em 2017, as autoridades mudaram-no para a morada algo impronunciável de Mansikkanokankatu 15.
É de lá que partimos com a missão de explorarmos a pequena urbe no topo do Golfo de Bótnia, a 120km km do Círculo Polar Árctico, menos de 30km da Suécia.
Como seria de esperar, no pino do Inverno, encontramo-la densamente nevada.
A espaços, sob camadas impressionantes de neve, como é o caso de em volta da sua igreja luterana, finalizada em 1902, agora, com um tom salmão que combina com os “pasteis” predominantes da cidade.
E a Génese Russa da já Secular Kemi
Alexandre II, czar russo, fundou Kemi, em 1869, numa altura em que a Finlândia se mantinha um Grã-Ducado autónomo, integrante do vasto império russo.
A ideia do imperador era dotar o cimo do Golfo de Bótnia de um porto de águas fundas que fomentasse o comércio dos produtos chegados àquelas partes.
Tanto os que desciam do norte da Lapónia Finlandesa pelo rio Kemi, como os transportados Golfo de Bótnia acima, em ambos os casos, hoje ligados às duas grandes indústrias da cidade: a madeireira e a da pasta de papel.
Como testemunhamos em três tempos, o funcionamento do porto foi e ainda é interrompido durante o congelamento invernal.
Umas poucas embarcações resistiam, beneficiadas por protecções especiais, na marina contígua.
Ao largo, os únicos navios que circulam durante o frio são quebra-gelos como o emblemático “Sampo” em que temos o privilégio de percorrer o Golfo de Bótnia por canais recém-abertos.
Kemi na 2ª Guerra Mundial e o Pós-Guerra
Chegaram a complementar este porto duas outras estruturas preponderantes e, como o Castelo de Neve, recordistas. Em 1944, a Finlândia assinou um acordo de Armistício que terminou a Guerra da Continuação com a U.R.S.S.
Esse acordo ditou a Alemanha Nazi inimiga da Finlândia e o início da Guerra da Lapónia que se estendeu até Abril de 1945, quase até ao término da 2ª Guerra Mundial na Europa. Não sem que, antes da sua rendição, os Nazis destruíssem a ponte e o viaduto mais longos da Finlândia, ambos situados a norte de Kemi.
Passado um ano, começou a construção do hotel Merihovi para que haveríamos de nos mudar, terminada em 1949.
Malgrado a escassez de materiais provocada pela grande guerra, tornou-se um edifício clássico da cidade. Acolheu várias vezes o ex-presidente finlandês Urho Kekkonen, bem como o cosmonauta russo Yuri Gagarin.
Quando passamos pela sua frente, têm lugar as filmagens de um qualquer filme ou série finlandesa de época, com carros coloridos, dos anos 60 a 80, alinhados no parque de estacionamento e umas poucas cenas no interior a que nos recusam o acesso.
De Volta ao Enregelado Castelo
Voltamos ao Castelo de Neve esfriados por um vento que tinha despontado do nada. As autoridades alertam e louvam o famoso vento local:
“fica ventoso em Kemi. Bastante mesmo. Graças ao vento, tornámo-nos uma gente particularmente forte. Que sobreviveu a muitos desafios ao longo do tempo.
O vento de Kemi é fresco e limpo. Um bom tipo de vento. Dá energia!”.
A nós, em particular, estava-nos a fazer bater o dente.
De acordo, aceleramos rumo ao refúgio que nos esperava, mesmo de neve e gelo, aquele com que podíamos contar.
Reanimamos na única sala aquecida do castelo, a comunal, àquela hora, por razões óbvias, quase à pinha.
Um Jantar tão Experimental como Breve
Sobre as 19h, mudamo-nos para o Snow Restaurant. Sentamo-nos sobre cepos de madeira que peles de rena tornavam mais confortáveis e a uma mesa feita de grandes blocos de gelo.
Servem-nos salmão e alce, recém-cozinhados, embrulhados em folhas de alumínio.
Desembrulhamo-los, ainda a fumegar. Compomo-los nos pratos decididos a fotografarmos a tão peculiar refeição. Caprichamos. E demoramos mais que o devido. Já nos tinham prevenido que os jantares do Castelo de Neve não admitiam hesitações, muito menos socializações.
Quando, por fim, nos preparamos para saborear as especialidades nórdicas, já estava tudo frio. Menos que a sala de jantar de que migramos, apressados, de volta ao conforto da de estar.
Com tarefas por cumprirmos nos portáteis, arrastamo-nos por lá, até já sermos os únicos. São nove da noite quando, a esforço, cedemos ao repto de passarmos para o quarto.
Como esperado, a transição volta a castigar-nos. Vencida a tarefa exigente de nos enfiarmos nos sacos-cama, ajustarmos os fechos de correr e cobrirmos com a manta de pele de rena, o cansaço reclama-nos para um sono também ele estreante. Sobre cama de gelo.
O dia volta a raiar. Vêm-nos chamar à porta. Mesmo no quarto congelado, somos os últimos a despertar. Tomamos o pequeno-almoço. Mudamo-nos para o hotel Merihovi.
De lá, sobre as dez, saímos para uma volta de mota de neve em redor de Kemi, com sequência na tal navegação a bordo do quebra-gelo “Sampo”.
Regressamos pouco depois do ocaso, uma vez mais, a precisarmos de reaquecer. Ainda duram as gravações às portas do hotel.
Depois do anoitecer, mantemo-nos de olho na distância e acima de Kemi.
As previsões indicavam boa probabilidade de se darem auroras boreais.
Ao invés, o céu nublou-se. Assim ficou noite fora.
A Inesperada Convenção Kitacon de Kemi
Damos entrada no fim-de-semana.
Ao deambularmos por Kemi, percebemos que a cidade havia sido tomada por humanos convertidos em Lolitas, góticos, mascarados indefinidos e personagens de BD que desconhecíamos.
Todos afluíam para um mesmo edifício. Seguiam-lhes os passos uns poucos pais jovens que puxavam crianças e até bebés instalados sobre trenós coloridos e deslizantes.
Entramos no tal edifício. Lá dentro, eram centenas os jovens mascarados de sabe-se lá o quê.
Explicam-nos que tudo aquilo fazia parte do Kitacon.
Trata-se de uma convenção de fãs de animé, jovens culturas e sub-culturas nipónicas e afins que reunia adolescentes, sobretudo de Kemi e da Finlândia, também de uns poucos países vizinhos.
Longe de contarmos com o evento, integramo-nos na comunidade meio geek, meio nerd, em qualquer caso, orgulhosa das suas encarnações e de nelas nos verem interessados.
Condicionada pela sua latitude extrema e pela meteorologia inclemente, Kemi aproveita todas as oportunidades para fugir da rotina e se transformar, de preferência, em convívio com forasteiros.
Voltamos a sublinhar a auto-definição das autoridades da cidade: “ [Kemi] pode não ser o lugar mais excitante do Mundo, mas é, provavelmente um lugar melhor que muitos para viver, dormir, comer, rir e passar um bom tempo. Uma coisa é certa:
Kemi é a melhor Kemi do Mundo e todos lá são bem-vindos”.
COMO IR
Voe de Lisboa para Helsínquia, com a TAP – flytap.com por a partir de 450€ ida-e-volta. De Helsínquia poderá cumprir a viagem para Kemi com a Finnair.