Por essa altura, já o tínhamos bem presente.
A nova viagem em que nos metemos faz questão de o recordar. Partimos de Rangum sobre as três da tarde. A jornada para norte dura mais de 15 horas.
As primeiras seis, passadas num conforto aceitável. As restantes, a roçarem o infernal.
Às tantas, já bem depois de cruzarmos a capital birmanesa fantasma de Naypiydaw, o asfalto dá lugar a uma terra mal batida que enche o autocarro de poeira.
O desvio para as terras mais altas das Shan Hills submete-nos a um percurso sinuoso que o condutor enfrenta com fúria. À medida que a noite e a altitude se instalam, o primeiro frio que sentíamos no Myanmar alia-se à poeira. Arruinam-nos as gargantas em três tempos.
Por fim, em NyaungShwe, o Portal Urbano para o Lago Inle
Por volta das cinco da manhã, destroçados pela viagem de mais de quinze horas a partir de Rangum, damos entrada em NyaungShwe a povoação portal do vasto lago Inlé.
Procuramos por um tal de Remember Inn Hotel, pré-investigado no mais famoso guia para mochileiros. Apesar da hora madrugadora, a dona recordava-se de quando os autocarros chegavam do Sul, quase sempre com potenciais clientes a bordo. Pouco depois de nos instalarmos, serve-nos um pequeno-almoço providencial de panquecas com chá e café.
Dormimos até à uma da tarde. Recuperada parte das energias, saímos à descoberta de NyaungShwe.
Desprovida de um sério encanto arquitectónico, a povoação expandiu-se em função do grande lago, enquanto entreposto comercial que serve as aldeias e lugarejos em redor.
Com o advento do turismo, boa parte de NyaungShwe dedicou-se a acolher, a entreter e a apoiar os forasteiros no seu ensejo de explorarem Inle.
Ainda assim, com 190 mil habitantes em toda a área urbana, a vida local fervilha de eventos e acontecimentos que sustentam uma genuinidade recompensadora.
Shin Pyu, uma Cerimónia Budista de Iniciação
Ainda nos habituamos ao asfalto gasto das ruas quando nos surpreende um cortejo Shin Pyu, forma de iniciação dos jovens rapazes e raparigas à vida budista, celebração da sua entrada em mosteiros ou conventos, onde cabe aos monges e monjas raparem-lhe o cabelo.
Um rapaz e uma rapariga seguem sobre cavalos decorados. Trajam vestes coloridas e sedosas.
Têm as faces e, em especial, as maçãs do rosto e os lábios, maquilhados e rosados.
Uns poucos elementos do cortejo seguram sombrinhas douradas que mantêm acima das cabeças coroadas dos protagonistas.
Precede este âmago do cortejo um grupo de ciclistas em tricicletas carregadas com sacas volumosas de arroz, de 50kg, ou mais.
No extremo oposto, em jeito de carro-vassoura, um tractor equipado de enormes colunas difunde música e a locução de uma animadora que, a espaços, exibe danças graciosas.
O cortejo some-se.
Sem a música estridente, Niaungshwe recupera a tranquilidade vespertina. Aproveitamos o que a perseguição da cerimónia nos tinha feito percorrer.
Os Primeiros Templos e Pagodes Dourados, à Beira do Lago
Ainda no âmbito do Budismo, seguimos em busca do duo de templos Kyaung Daw e Yadana Man Aung Su, os mais importantes da cidade.
Um enorme pagode dourado destacado acima do casario, ajuda-nos a encontrá-los.
No interior de um dos templos, três jovens noviços cruzam um pátio polido com marmitas cromadas a reluzirem contra os hábitos grenás.
Prostrado aos pés de uma estátua de Buda, um monge ancião dá por encerrada as suas preces.
Abre um chapéu de chuva e prepara-se para enfrentar o sol tropical. Sabíamos que, apesar de centrais, aqueles eram meros dois templos budistas de uma profusão em redor.
Abreviamos, assim, o tempo que lhes dedicamos em função de preparamos as incursões ao lago Inle. Mas não só.
As Marionetas Tradicionais do One Man Show Aung
Pelas sete da noite, entregamo-nos de corpo e alma, ao One Man Show Aung, conduzido por um marionetista de quarta geração, licenciado naquela arte, pelo estado birmanês, desde 1985.
Aung, um irmão e um tio, criam bonecos e cenários de aguarela inspirados nos circundantes.
Pautados por uma música folclórica estridente, os movimentos dos bonecos e os enredos geram uma animação dependurada que nos deslumbra. Haveríamos de assistir a outras pelo Myanmar fora. Nenhuma preservava a autenticidade do espectáculo de Aung.
Jantamos ali por perto. O cansaço da viagem de Rangum ressuscita.
Regressamos à pousada Remember Inn com planos de ainda fazermos isto e aquilo. Sem aviso, um apagão deixa NyaungShwe às escuras. Era o que precisávamos para nos rendermos de vez ao sono.
Lago Inle: a Incursão Inaugural
Tínhamos combinado zarpar para o lago pelas 6h30 da manhã. De acordo, a dona da pousada prenda-nos um pequeno-almoço empacotado.
No caminho para o embarcadouro, cruzamo-nos com uma fila indiana de monges recém-iniciados. Recolhiam, para as suas marmitas, o arroz da manhã que lhes ofereciam mulheres budistas.
Subimos a bordo de um barco de madeira, a motor. Um canal conduz-nos à imensidão do lago.
Quando nele entramos, ainda paira uma névoa matinal densa.
O Exotismo Equilibrista dos Pescadores Intha
É contra essa névoa que detectamos as personagens de marca da região, os seus pescadores de etnia Intha.
Os Intha são habitantes de palafitas, famosos por pescarem sobre uma ponta dos seus barcos, de armações de bambu e rede presas entre uma mão e um pé.
A outra mão, a segurar uma vara para equilíbrio e, quando necessário, o pé sobrante usado para remar.
Por mais fotogénico que pareça, o modo de pescar intha tem uma razão lógica e secular de ser.
O lago Inle está pejado de peixe, ainda mais de vegetação aquática.
Ora, há muito que os Intha aprenderam que só percebiam onde os peixes se abrigavam se se locomovessem de pé, em vez de remarem sentados.
Num jeito simbiótico, outros moradores encontraram utilidade na recolha das algas que, com a generalização do uso dos fertilizantes com fosfato e à agricultura de jardins flutuantes, se tornaram excessivas.
Em Busca do Mercado do dia de Inle
Prosseguimos rumo à povoação do lago que acolhia o mercado do dia, um dos cinco realizados de 2ª a 6ª feira.
Sendo Sexta, o privilégio pertencia a Maing Thauk.
Pelo caminho, o barqueiro navega por canais que separam verdadeiros bairros de palafitas geminadas e elaboradas, algumas, com dois pisos e, como as víamos na ausência de vento, desafogadas a dobrar.
A superfície escura do lago reflectia-as na perfeição.
Chegamos a Maing Thauk.
Deambulamos entre os vegetais e frutas expostas sobre bancas e no chão.
Boa parte das vendedoras são de etnia Pa-O, uma das que partilham o lago com os predominantes Intha mas também com os Shan, os Taungyo, os Danu, os Kayah, os Danaw e os Bamar.
Identificamos as mulheres Pa-O com facilidade.
Quase todas se vestem de negro, com excepção para os lenços garridos em que envolvem os cabelos e que combinam com as máscaras solares faciais tanaka.
No mercado de Maing Thauk deixamo-nos também levar pelos sucessivos convites de comerciantes de prataria, de tecelagem e outros para apreciarmos o seu artesanato.
Cirandamos entre oficinas e teares.
Distrai-nos desse entretém a azáfama de uma venda de noz de areca, um vício mascável há muito disseminado por estas partes do Mundo.
De Maing Thauk, rumo ao Sul do Lago Inle
Do mercado, caminhamos para o interior, por uma ponte-passadiço de madeira, comparável à mundialmente famosa ponte de U-Bein, mas não muito.
Procuramos o mosteiro homónimo da aldeia, situado numa colina e com vista panorâmica sobre o norte do lago, Maing Thauk na sua margem e, na oposta, o mosteiro de Lin Kin.
Após o regresso à margem, navegamos rumo ao fundo sul do lago. Fazemos escala no pagode dourado e monumental de Phaung Daw O.
Continuamos para Nga Phe Chaung. Erguido em madeira, há mais de duzentos anos, Nga Phe Chaung é considerado o mosteiro mais antigo e o mais amplo em redor do lago.
É famoso, sobretudo, por abrigar uma estranha convivência de gatos com os monges residentes.
Por esta altura, tínhamos coberto uma parte considerável do lago.
Sabíamos, todavia, que outra, tão ou mais ampla, se mantinha inexplorada. Decidimos multiplicar a fórmula. Na manhã seguinte, passeamo-nos numa bicicleta predestinada a furar.
Até chegarmos a Maine Tauk, são dois que nos atormentam.
A meio do dia, fartamo-nos de tão pouco pedalar. Metemo-nos num barco destinado a Khaun Daing, na margem oposta.
Shwe Inn Dein e a sua Floresta Budista de Estupas
Daqui, completamos o percurso, por terra, até ao complexo budista de Shwe Inn Dein, um dos mais distantes de NyungShwe, merecedor do esforço de lá chegar.
Dois templos erguidos sobre promontórios destacam-se de uma planície arbustada.
Ascendemos a um deles. Do seu cimo, à distância, vislumbramos as estupas douradas do outro.
Entre ambos, numa inesperada amálgama budista despontavam centenas de estupas menores, erguidas ao longo do tempo pelos fiéis.
Umas, mais antigas e desgastadas, exibiam o tom ocre dos tijolos e barro de que eram feitas.
Outras, a pintura branca gasta pelo sol que os cobria.
Outras ainda, preservavam uma cobertura de folha de ouro que atestava a prosperidade dos crentes que as haviam encomendado.
Agrupadas e destacadas do verde predominante, formavam um cenário distinto de tudo o que até então tínhamos testemunhado no Myanmar.
Viríamos a encontrar algo comparável na planície de Bagan, às margens do rio Irrawadi.
Começa a anoitecer.
O guia conduz-nos a uma outra estupa, isolada num ponto elevado que nos afiançava ter das melhores vistas da região.
O ocaso desenrolava-se nas nossas costas.
Virados para oriente, apreciamos como o sumiço do Sol arroxeava o casario entre o sopé da vertente e a margem imediata. Como a cordilheira que se elevava a partir da oposta resistia azulada.
Como o lago Inle voltava a irradiar um misto de grandeza e beleza com o seu quê de sagrado.