Nessa sexta-feira, mesmo com a semana e o sol a caminharem para o término dos seus ciclos, o âmago da província de Huíla preserva a sua habitual vitalidade.
Uma réstia de luz vinda do cimo da Serra da Leba ainda doura o cimo da Sé Catedral de São José.
No jardim contíguo, como à frente do templo gótico, noivos, famílias e convidados entregam-se a sessões fotográficas casamenteiras e a uma confraternização elegante.
Jovens engraxadores de rua cirandam entre as gentes das bodas, atentos a qualquer oportunidade.
Disputam os mesmos kwanzas com os vendedores de crédito para telemóveis, de vegetais, fruta e até de ovos.
Deambulamos pela grelha central de Lubango, com atenção especial para a arquitectura sortida, aqui e ali, artística.
Pouco acima da igreja, um prédio destacado de uma tal Rua 14 de Abril parece-nos saído de um qualquer bairro limítrofe de Lisboa, erguido nos anos 50 ou 60.
Outros tantos em redor, de betão e tons pastéis gastos, contrastam com o céu azulão e recompõem esse visual, à primeira vista familiar
Até que umas poucas palmeiras imperiais que despontam do nada, quase tão altas como os prédios, reafirmam o tropicalismo e a africanidade pós-colonial.
Deixamo-nos perder. Ruas acima e abaixo, num permanente jogo de luz e de sombra.
Passamos por edifícios distintos, térreos ou, no máximo, com dois andares, que combinam ensaios de Art Déco com pinturas condizentes: salmão e vermelho, roxo, azul-celeste, cores garridas afins.
Amostras de nuvens alvas sobrevoam-nos, apressadas pelo vento de sul.
Quando esses edifícios nos re-impingem a génese e a era portuguesa da cidade, novas palmeiras se projectam e murais exibem arte nova africana.
Abre-se um portão enferrujado. Uma mulher espreita para fora, em busca de alguém ou de novidades.
A Diversidade Étnica e Cultural de Lubango
É uma anciã mumuíla, senhora de um cabelo claro encanudado e de incontáveis missangas, das adoradas pela etnia.
Instantes depois, já na praça ajardinada que adorna o Comité Provincial do MPLA, abordam-nos duas miúdas himbas.
Mesmo crescida, capital secular, não tarda, de um milhão de habitantes, sem aviso, a cidade prenda-nos com a exuberância tribal da Huíla e de outras partes de Angola.
Cruzamos para o lado de lá da praça Gabriel Caloff. Lubango entra em modo de pompa e de reverência ao pai da nação, Agostinho Neto.
Impõe-nos a herança ideológica e patrimonial da defunta União Soviética, incompatível com valores históricos e culturais que, ainda assim, perduram, caso da religião.
A Lubango Cristã: da Senhora do Monte ao Cristo-Rei Local
Comprovamos como a fé católica se alastrou e perdura, até nas cercanias mais íngremes. Lubango tem a sua santa padroeira na Senhora do Monte.
Na curta peregrinação que lhe dedicamos, uma comitiva de fiéis já de regresso aos lares, louva-nos o esforço da caminhada, sem se pouparem a um merecido reparo: “mas olhem que deviam ter vindo mais cedo.
A missa já acabou e o padre também está de saída. Só vão dar com o segurança e com os macacos em volta. Vejam se o segurança vos abre a porta”.
Uma família portuguesa ainda por lá matava saudades de outros tempos.
Sem que o esperássemos, conversa puxa conversa, entretemo-nos todos a tentar fotografar macacos-verdes fugidios, demasiado metidos no arvoredo.
Dali, apontamos à falésia da Serra da Leba a que o casario da cidade se ajustou, abençoado pela versão local do Cristo Rei, sobre uns 2100 metros de altitude, altivo a dobrar.
Tal como a cidade, foi um madeirense, o engenheiro Frazão Sardinha que o ergueu, em 1957.
Com o propósito de a aproximar da grandiosidade histórica de Almada-Lisboa e do Rio de Janeiro.
As autoridades municipais não se ficariam por aí.
De visita ao cimo da falésia e ao Cristo Rei, saltitamos de pedra em pedra, pela base do letreiro hiperbólico que propõe Lubango a urbe hollywoodesca.
Um Século de Cidade, Mais Tempo ainda de Povoação
Nos dias que a desvendamos, Lubango cumpre um século desde que foi elevada a cidade.
A fundação da povoação é anterior, de 1885. Decorriam vinte e nove anos desde que Carlos Duparquet, um padre com paixão pela botânica, e a sua comitiva foram expulsos, pelos nativos, das Terras de Calubango.
E meros quatro após o soba local ter, por fim, permitido o estabelecimento de uma missão católica de perfil agropastorial.
Ora, foram esta missão e a fertilidade excepcional dos solos da zona que abriram as portas à chegada de mais colonos.
Estava, então, no auge o frenesim que ficou conhecido por “Partilha de África”.
As novas regras de legitimidade territorial estipuladas pela Conferência de Berlim, coagiram o governo da Metrópole a colonizar mais das colónias.
A Colonização Urgente do Interior de Angola: de Sá da Bandeira a Lubango
O interior de Angola tornou-se uma prioridade. Por essa altura, o Império Britânico, os Bóeres sul-africanos e os germânicos já senhores da África Ocidental Alemã (actual Namíbia), todos eles ansiavam subtrair o mais possível de Angola aos portugueses.
No caso particular dos britânicos, de forma a inviabilizarem o sonho do Mapa Cor-de-Rosa.
De acordo, Lisboa providenciou e custeou a viagem de mais de duzentos funchalenses e porto-santenses, a bordo do navio “Índia”.
Primeiro para Moçâmedes, logo, para o interior da Huíla em que fundaram a povoação de Sá da Bandeira, baptizada em homenagem ao influente marquês homónimo que criou o concelho de Huíla e que, em 1836, proibiu o tráfico de escravos no Império Português.
Aos poucos, juntaram-se à povoação colonos brasileiros e bóeres provindos da Humpata, terra que preserva esse nome. Um domínio agrícola e pecuário que cruzamos vezes sem conta, a caminho dos famosos meandros de asfalto da Serra da Leba.
A Imponência Geológica da Fenda da Tundavala
E em busca de uma das duas fendas geológicas monumentais nos arredores de Lubango, a do Alto Bimbe – a que tem acesso complicado – uma das razões para ter sido a da Tundavala a tornar-se a fenda estrela da companhia, meritória da reverência que, sobre dois ocasos consecutivos, lhe dedicamos.
Em ambas as ocasiões, impressionamo-nos com a rapidez com que a estrada da Tundavala nos resgata do trânsito de Lubango e eleva a um mundo serrano bucólico.
Atingido o cimo aplanado da Leba, manadas de vacas que deambulam entre grandes blocos de granitos e quartzitos chegam a barrar-nos a passagem.
Pouco depois de retomarmos o caminho, uma vendedora de fruta instalada numa área de estacionamento confirma-nos que os miradouros estão por ali.
Damos prioridade ao mais distante, no limiar do vasto Planalto Central de Angola, com vista sobre uma outra Angola imensa que tem início, lá em baixo, a uma cota de mil metros.
As contas eram fáceis.
Tanto o abismo por diante, como a Tundavala que o recortava logo ao lado, tinham uns vertiginosos 1200 metros.
Duas jovens mumuílas que viviam numa ombala próxima e nos abordam sabiam de cor e salteado o deslumbre que geravam nos forasteiros.
As vistas e elas próprias, descalças, de panos enrolados à cintura e tronco nu, ao contrário do visual tradicional mumuíla, quase desprovidas de missangas.
Desde que detectou as nossas máquinas fotográficas que o duo se fazia à fotografia.
Assumimos que o interesse era mútuo. Logo, inauguramos uma produção, repleta de poses e vaidades, contra o céu azulão do planalto.
E com a Tundavala em fundo.
Devia ser este o único precipício familiar das gentes da Huíla, motivo incontornável de orgulho na sua terra.
Por contingências políticas, de escala mundial, a História reservou-lhes um destino diferente.
A quem, como nós, as descobre onze anos depois do encerrar do conflito, ainda a refazer-se do trauma, mas visualmente recuperada, custa a acreditar que também a Huíla e a sua airosa, multiétnica e sedutora capital se viram mergulhados no abismo bélico que obliterou Angola entre 1961 e 2002.