Entramos no quarto do pequeno hotel de Manila cansados de uma recente aventura na Indonésia.
Para descontrair, ligamos a TV. Entregamo-nos, por momentos, a um zapping descomprometido e curioso. Desprezados inúmeros programas banais, deparamo-nos com um plano apertado de duas aves hesitantes numa pequena arena. O insólito capta-nos a atenção.
No vizinho Japão, seria o exotismo pesado do sumo que nos atrairia, nos Estados Unidos, o desafio masoquista de tentar perceber o encanto do basebol. Na Tailândia, talvez o muai thai (boxe tailandês). Acabámos de chegar às Filipinas. O desporto nacional são as lutas de galos (sabong).
A prová-lo, há um canal dedicado que as transmite horas a fio enriquecido por análises e comentários entusiásticos em tagalog, o dialecto nacional.
Desenvolvemos um inesperado interesse pela excentricidade cruel desta tradição introduzida há séculos pelos colonos espanhóis. Aproveitamos a descoberta das Filipinas e resolvemos investigar e fotografar alguns torneios realizados em galleras de distintas ilhas.
Lutas de Galos de uma Ponta à Outra das Filipinas
Esse périplo das lutas galos começou em Bohol, passou pela improvável Marinduque. Teve fim em Camiguin, já quase nos fundos das Filipinas.
É num dia escaldante que entramos no recinto de Dauis, em Bohol. Infernizam-no a cantoria de centenas de galos de crista levantada.
Lá dentro, os combates já decorrem mas, no exterior, em cabines construídas para o efeito, especialistas bem pagos atam tares (lâminas em forma de espora) nas patas das aves lutadoras com recurso a pequenas malas onde as mantêm arrumadas.
Malgrado a sua abundância e diversidade, um aviso afixado num contraplacado alerta: “Não são permitidas lâminas duplas”.
Logo ao lado, criadores/treinadores atiçam os seus competidores uns contra os outros para os excitar e exercitar. Um veterinário de serviço limpa e cose feridas de galos já atingidos, incumbido de os recuperar para combates futuros.
Alguns metros para diante, os concorrentes que se seguiam do dérbi são pesados, numa balança diminuta que estabelece as suas categorias.
Apesar do frenesim e da intensidade do evento, a inesperada presença dos fotógrafos estrangeiros atrai as atenções. Suscita uma série de reacções extemporâneas.
Chamam-nos à proximidade de um homem forte que traja uma camisola de alças largueirona e informam-nos com entusiasmo e reverência: “Ele é que é um dos grandes campeões! Já repararam no braço? Só quem tem muitas vitórias pode fazer uma assim!”
Por esta altura, o herói visado já se revê nos elogios. Vira o seu bíceps direito e expõe o galo lutador que tatuou com tinta negra.
Continuamos a percorrer o exterior da gallera. A missão revela-se cada vez mais complicada devido à aglomeração de gente junto à zona das bilheteiras. Quando, por fim entramos, no sabungan (arena), a atmosfera é densa.
O zoar já audível lá fora torna-se ensurdecedor.
O Interior Tresloucado das Galleras
Os termos meron e wala gritados vezes sem conta, anunciam um novo combate. A multidão exclusivamente masculina combina-os com gestos similares aos da bolsa. Define-se, dessa forma, quem quer apostar uma quantia alta (milhares de pesos) ou baixa (centenas de pesos).
Assim que o confronto tem início, os gritos histéricos passam a incentivar os galos competidores.
Em Coron, no sul do vasto arquipélago filipino, apresentam-nos o duvidoso Ricky Balboa, um promotor de derbies que confessa, com orgulho mal disfarçado de gangster, ter sido expulso do Canadá por lá organizar combates.
Ora as lutas de galos são ilegais, no Canadá, como é em quase todo o mundo dito civilizado.
Enquanto conta as notas de pesos que recebeu dos apostadores, Ricky descreve outras das suas peripécias marginais. Seduzido por uma manobra de marketing, deixa-nos passar o interior do cockpit e para junto de si. Os espectadores mais próximos afiançam-nos que se tratava de um privilégio de poucos.
O Acesso Inesperado ao Fosso da Arena de Coron
Aproveitamos a gentileza e vemo-nos numa situação surreal, cercados por grades e por uma multidão em êxtase.
Um filipino mais atrevido tenta a sua sorte com os estrangeiros. Mesmo sem intenção, incita outros a desafiar-nos, o que nos vemos obrigados a recusar com o humor possível fosse por uma questão de princípio ou por não sabermos avaliar a diferença entre o llamado (o favorito) e o dejado (o aspirante).
Assim são diferenciados os galos lutadores na terminologia local.
A competição é retomada. Ao soltarem os seus galos, os treinadores desencadeiam agressões imediatas e violentas que fazem voar penas e nos obrigam a correr em redor da arena.
Por norma, os ataques dos galos começam enérgicos, com grandes saltos de patas em riste. À medida que sofrem danos, as aves perdem fulgor.
Golpe após golpe, torna-se necessária a intervenção do árbitro que as reaviva. A luta só termina quando um ou ambos os galos se imobilizam de vez.
A Decisão Sagrada do Sentensyador das Lutas de Galos
Nessa altura, o veredicto do sentensyador (juiz) é inapelável.
Para que não restem dúvidas, o seu poder determinativo surge bem explicado a vermelho, em inglês, num painel com quatro faces que coroa a arena: “Judge decision is final.”
Concluído aquele combate, há um intervalo de vinte minutos. Logo, as apostas são retomadas. Prolongam um ciclo que dura toda a tarde e adensa uma atmosfera cada vez mais fumarenta.
Empregados de Ricky levam os galos perdedores abatidos ou demasiado feridos para o exterior. Lá fora, são de imediato depenados e cozidos. A nudez das aves revela golpes atrozes. Ao mesmo tempo, os criadores derrotados enfrentam as feridas da sua desilusão.
Os criadores felizardos, pelo seu lado, são facilmente identificáveis em redor da gallera. Passeiam os seus galos com cuidado extra, trocam piadas fáceis com outros apostadores satisfeitos. E exibem as patas que cortaram, como troféus, às aves a que as suas tiraram a vida.
A Faceta Financeira das Lutas de Galos Filipinas
Sempre que passam de eliminatória, os galos triunfadores enriquecem os seus donos. Estes, recuperam e multiplicam o dinheiro neles gasto, investido em rações especiais, em medicamentos, noutros tratamentos e na dispendiosa inscrição no torneio.
Nas pequenas povoações, cada registo ronda os 100 euros. Pode custar infinitamente mais nos grandes torneios transmitidos pela TV, competições em que se envolvem tanto a classe média filipina como os VIP’s abastados do país, incluindo actores e políticos influentes.
A derradeira felicidade cabe aos vencedores supremos de cada dérbi. Entre todos os eventos a que assistimos, os criadores triunfantes arrecadavam um mínimo de quase 2000 euros (120.000 pesos).
É muito dinheiro para o nível de vida sofrível das Filipinas. Ainda assim, uma ínfima fracção do que está em jogo nas competições de nível nacional e internacional.
As lutas de galos não são originárias ou exclusivas das Filipinas, longe disso. Várias outras nações da Ásia, do Pacífico, das Caraíbas, da América Central e do Sul e até o arquipélago espanhol das Canárias (onde, por contraste, é proibida a tourada) partilham o fervor pelo desporto.
Nas Filipinas, todavia, o fenómeno atinge proporções únicas. O gigantesco Araneta Coliseum de Quezon (cidade próxima de Manila) acolhe duas vezes por ano o World Slasher Derby.
Nesta competição multimilionária que goza de apoios governamentais directos e indirectos, enfrentam-se, os melhores galos lutadores do mundo.
E os filipinos vibram com as suas lutas de galos mais que nunca.