Partimos de Stavanger rumo ao Magma Geopark, por um retalho de Noruega meridional que, no mapa, parece ter sido estraçalhado por um rolo compressor.
À imagem de boa parte da Escandinávia e da Finlândia, as eras glaciais e os seus profícuos glaciares, como os degelos que lhes sucederam, legaram uma vastidão de elevações e vales abruptos sulcados e salpicados de rios e riachos, de milhares de lagos, lagoas, pântanos, braços de mar, desfiladeiros inundados e afins.
O Caminho Bucólico para as Margens do Sokna
A estrada campestre que percorríamos evitava-os e usava as vantagens do terreno anfíbio com uma precisão e suavidade só ao alcance das melhores engenharias. Por altura de Egersund, por fim, ficamos com o Mar do Norte pela frente. Daí para baixo, seguimos pela Sokndalsveien, a via ainda mais retirada e tranquila que atravessa o derradeiro concelho do condado de Rogaland.
Conduzimos por prados que, para óbvio deleite dos rebanhos lãzudos, a chuva intermitente de Verão mantém ensopados, verdejantes e tenros. Não tarda, a Sokndalveien confronta-se com o Sokna, um rio sinuoso alimentado pelas torrentes libertadas pelos grandes lagos Steins e Eids.
Em vez de nela continuarmos, cortamos para a Strandgaten, uma estradinha rural ainda mais exígua que emula os sucessivos contornos fluviais. Submisso à coerência semântica da região, aquele quase corredor asfaltado leva-nos à iminência de Sokndalstrand, uma aldeia de beira-rio e beira-mar que estimávamos poder traduzir como Praia de Sokndal, de acordo com o seu passado de estância balnear.
Sokndalstrand: uma aldeia à beira do Sokna e do Mar do Norte
Já em modo pedestre, avançamos ao longo da viela ladeada de casas pitorescas de madeira, na sua maioria brancas, que delimitam a artéria aorta da povoação. Mais para próximo do mar, vários destes lares foram convertidos em lojas, cafés e restaurantes que acolhem os visitantes e dão mais sentido às suas incursões.
Estão embelezadas por canteiros e vasos dependurados com flores garridas. Para nosso espanto, algumas delas contam com bancos de jardim colocados junto a estantes exteriores recheadas de livros de consulta grátis e imediata.
Cruzamo-nos com forasteiros que já não vão para novos. Sem pressas, aproveitam a benesse dos assentos mas, em vez de se dedicarem a leituras espontâneas, refastelam-se entregues à massagem do sol estival.
Por estas paragens boreais da Europa, ninguém se atreve a dar o Verão e o sol como adquiridos. Nesta tarde, ao contrário de tantas outras, a bonança parecia ter chegado para ficar. Um morador com bicho-carpinteiro não resistiu à oportunidade.
Pegou em pincéis e tintas e meteu mãos à obra a pintar de fresco uma porta tradicional do seu estabelecimento, com um padrão geométrico caprichoso que lhe exigia toda a atenção possível. “Mas a pintura original é de quando? perguntamos-lhe após uma saudação introdutiva. “A porta já vem de há muito mas, aqui à beira-mar, a tinta dura o que dura.” responde-nos num tom diplomático. Percebemos que a conversa desconcentrava o artesão. Não querendo ser responsáveis por borrões desesperantes, agradecemos a paciência, despedimo-nos e seguimos caminho.
A Estafeta do Salmão e o Sacrifício de um Dálmata Malfadado
Logo ali ao lado, uma ponte de pedra com vão em arco, provavelmente mais antiga que a porta, ligava as duas margens do rio Sokna. Cruzamo-la, descemos uma pequena ladeira para uma laje de rocha já sobre a água veloz do rio.
Daquele poleiro improvisado, avistamos a sequência branca-amarela-vermelha de fachadas traseiras semi-palafíticas que se tornou a imagem de marca da aldeia e, no prolongamento do casario, o seu limiar marcado pela baía mais ampla em que o Sokna se entrega ao mar do Norte.
Sentamo-nos por momentos a apreciar a correria e os remoinhos do caudal. Instantes depois, apercebemo-nos dos saltos de grandes peixes. Lembramo-nos que era Junho. Estávamos a presenciar a corrida dos salmões rumo às águas gélidas e doces de montante em que haviam sido gerados.
Não seria essa a única surpresa. Duas meninas saem de uma casa do nosso lado do rio, a puxarem um dálmata pela trela. Ávidas de distração, levam o cão até a borda inclinada e dão-lhe um derradeiro empurrão. O animal vê-se forçado a um banho que não estaria nos seus planos.
Nada contra a corrente e sai uns metros mais acima. Sacode o máximo de água enregelante do corpo sarapintado e corre para o mais longe que pode das travessas donas. Regressamos ao aperto aconchegante da Strandgaten. Caminhamos até ao seu entroncamento com a paralela Ovregaten. Chegados à orla marinha da povoação, regressamos ao carro e à vastidão do Magma Geopark que nos tínhamos proposto a explorar.
Pelo Magma Geopark abaixo
Por não ser considerado parque nacional, o Magma Geopark carece das várias entradas com pórticos características dos parques nacionais. As suas principais atracções geológicas e históricas surgem assinaladas à beira das estradas, por tabuletas castanhas com nomes e símbolos próprios.
Retomamos a estrada 44 que havíamos deixado às portas de Sokndalstrand. Cumprimos um desvio largo que nos leva rios Sokna e – alguns quilómetros depois – Sirebekken acima. Já com o grande lago Stemmetjorna por diante, cercados de fragas massivas de pedra escura, flectimos de novo na direcção do mar, até ficarmos sobre o fundo continental do Jossingfjord, um fiorde tão emblemático como histórico destas paragens.
Ali, o cimo de um dos penhascos que delimitam o golfo estabelece um mirante natural. Além de assegurar a vista, formava os visitantes quanto à importância do abismo por diante.
A Faísca Marcial do “Altmark“
Segundo lá apuramos, em plena 2ª Guerra Mundial, o navio-tanque alemão “Altmark” regressava à sua pátria através de águas norueguesas que eram ainda consideradas neutrais mas em que não parecia fazer qualquer lógica estar, desviado centenas de quilómetros da rota normal para o litoral germânico.
Por insistência de informadores britânicos que suspeitavam que a embarcação transportava prisioneiros de guerra aliados, a Marinha Real Norueguesa investigou-a por três vezes sem nunca ter detectado a presença desses cativos. Fazendo fé na palavra dos oficiais germânicos no comando do navio de que a viagem tinha apenas fins comerciais, deram-lhe passagem.
Ainda desconfiados, os britânicos resolveram levar a cabo a sua própria investigação. O destroyer “HMS Cossack” tentou interceptar o “Altmark”. Como consequência, os oficiais do navio alemão procuraram esconder o barco nas profundezas do Jossingfjord. O “HMS Cossack” seguiu-o, entretanto, já com instruções de capturar o navio inimigo mesmo que, como viria a acontecer, o “Altmark” e as embarcações que o escoltavam ameaçassem ripostar com torpedos.
Temendo comprometer de vez a sua neutralidade, a Marinha Real Norueguesa recusou-se a participar na abordagem dos britânicos. O “Altmark” acabou por encalhar. Malgrado alguma resistência, os britânicos forçaram a sua captura após o que um oficial aliado gritou para o tanque: “are there any Englishmen there?”. Na sequência da resposta, os britânicos libertaram 299 prisioneiros aliados.
Sete marinheiros alemães foram abatidos e onze feridos. Os noruegueses, esses, ficaram sobretudo afectados por os britânicos terem colocado – de ânimo que os nórdicos consideraram leve – a sua neutralidade em risco.
Com certa razão. O incidente terá convencido Adolf Hitler de que os Aliados nunca respeitariam a neutralidade norueguesa. Consciente da importância estratégica deste país escandinavo, decorridos apenas dois meses após o incidente do “Altmark” (em Abril de 1940), Hitler ordenou o desenrolar da operação Weserübung que viria a garantir a conquista não só da Noruega como da Dinamarca.
O Malfado de Quatro Pilotos e Navegadores Neozelandeses
Em 1945, já nos últimos tempos da 2ª Guerra Mundial, também os neozelandezes John Mostyn Brightwell (23 anos), Edgar Joseph Foy (24 anos), Graham George Parkin (22 anos), Royden Leslie Nugent (26 anos) viriam a perder a vida no Jossingfjord.
Em 14 de Abril, integravam o esquadrão “Dallachy Strike Wing“, formado por 20 caças Beaufighter com a missão de atacarem navios alemães: a vedeta rápida “Adolf Lüderitz” e os navios-tanque “Schleswig” UJ-1430 e M-496.
Dois dos caças Beaufighter em que, no exacto momento, voavam para fora do fiorde colidiram um com o outro e despenharam-se. No aperto do desfiladeiro, nenhum dos tripulantes teve tempo para se ejectar. Graham Parker e Royden Leslie Nugent conseguiram aterrar o RD463 no mar abaixo. Abandonaram o avião e subiram para um pequeno bote de emergência.
Pouco depois, outro avião de socorro largou um bote maior de pára-quedas. No entanto, o bote não se soltou do pára-quedas, como era suposto. Foi arrastado pelo vento para longe dos aviadores.
No dia seguinte, o esquadrão regressou e viu-se de imediato atacado por aviões alemães. Nenhum dos pilotos neozelandeses seria avistado.
Jossingfjord: grandiosidade Norueguesa de Pedra
Hoje, o memorial lá instalado contribui para a solenidade lítica do lugar, um desfiladeiro verdejante de 3km que se estende do Mar do Norte encosta acima, cercado por penhascos imponentes que nos remeteram vezes sem conta para o imaginário californiano de Yosemite.
Regressamos à estrada. Atravessamos o túnel conquistado ao colosso de anortosito abaixo do mirante. Da saída do túnel, contemplamos toda uma encosta coberta de incontáveis rochedos fragmentados do mesmo material que se pareciam equilibrar numa luta de pesos-pesados.
Um ziguezague íngreme leva-nos aos fundos do fiorde. Ali, com algum esforço, damos com um duo de casas instaladas sob o fundo côncavo de um dos penhascos, um conjunto há muito conhecido por Helleren.
Os Lares Oportunistas de Helleren
Estes lares convenientes foram erguidos por volta de 1920, pouco depois de a estrada ter chegado àquele fim do mundo. Construíram-nos famílias pobres que, malgrado os Invernos rigorosos, conseguiram sobreviver de uma combinação de cultivo, criação de ovelhas e de pesca.
Ao contrário do que se passa com a maior parte das casas norueguesas, os donos pouco se preocuparam com a qualidade dos tectos. A protecção da chuva, da neve e do vento garantida pelo encaixe do penhasco provou-se de tal forma funcional que os telhados de pouco adiantariam.
Do lado oposto do fiorde, junto a uma vertente coberta de rochas aguçadas mas, desta feita, atapetadas por um musgo viçoso, encontramos um estranho trecho de caminho-de-ferro, disposto em forma de rampa apontada ao céu. Pé ante pé, conquistamos o velho trallebanen.
O topo daquela excêntrica estrutura de madeira e ferro, concede-nos uma vista quase tão majestosa como a do mirante à entrada do fiorde. Revela-nos ainda a lagoa de uma barragem que, em tempos, foi fornecida de peças e mantimentos pelo vagão para ali destacado.
Incursão de Toca-e-Foge na Província de Vest-Agder
Continuamos num reduto com forte fotogenia do imenso Magma Geopark norueguês, um domínio natural que se estende por centenas de quilómetros para todas as direcções, numa vastidão cinzenta e verde, ora litoral ora interior, de anortosito e rochas afins.
Seguimos para sul. Enfiamo-nos noutro fiorde, ainda mais longo, de tal forma comprido e profundo que os noruegueses o usaram para demarcar a fronteira entre duas das suas regiões: Rogaland e Vest-Agder.
Ao longo da estrada Midtbo que o serve, sucedem-se aldeolas e lugarejos ribeirinhos formados por casas de madeira vermelhas e brancas, servidas por lanchas e barcos a remos providenciais.
Fim da linha no Término da Estrada Midtbo
Chegamos ao término litorâneo da Midtbo que, cientes do valor do seu retiro, os moradores marcam como privado para evitarem as sucessivas incursões dos turistas estivais. Ao darmos uma lenta meia-volta, observamos uma família a desembarcar de um desses barcos, munida de dezenas de sacos com compras.
Tendo em conta a morfologia excêntrica da zona, compensa aos residentes cruzar o fiorde em 5 minutos até uma povoação com supermercado do lado de lá, em vez de se meterem num carro e conduzirem meia-hora ou mais.
Tínhamos prolongado o dia de exploração a um limite algo insano. De tal maneira, que o ocaso tardio se fez anunciar e deu lugar a nuvens tão escuras como o quase breu porque que se fica a noite estival destas latitudes. Chegamos ao abrigo urbano de Egersund quase à meia-noite. Descansamos o que nos é possível descansar.
Na manhã seguinte, continuaríamos a descoberta. Do trollpiken, das grutas de Brufjell e de tantos outros caprichos destes confins magmáticos e lunares da Noruega.