A nossa primeira abordagem ao Princess Juliana e à Maho Beach provou-se, digamos assim, convencional.
Quarenta minutos após descolarmos do aeroporto Terrance B. Lettsome, no extremo leste da ilha de Tortola, Ilhas Virgens Britânicas, a janela do pequeno turbo-hélice enquadrou a aproximação ao destino final.
À esquerda, difusa, quase submersa num mar petróleo-turquesa-esmeralda, uma ilha longilínea e chata que só podia ser Anguila. E, a medida que o piloto orienta o avião para a pista, a península ocidental de Sint Maarten, a “metade” holandesa da Pequena Antilha de São Martinho.
Preenchia-a, em boa parte, a lagoa marinha de Simpson Bay, uma das maiores das Índias Ocidentais. Mais próxima de nós, a linha costeira de Les Terres Basses (francesa) e, abaixo, Lowlands e Maho, já holandesas.
Continuamos a baixar. Sucedem-se os hotéis e condomínios que encerram a enseada de Maho, segundos depois, a pista solitária do Princess Juliana.
O piloto detém o Twin-Otter quase a meio dos seus 2.300 metros, no ponto que lhe permite atalhar para o Terminal em que nós e os cinco ou seis restantes passageiros desembarcaríamos.
Esta introdução inicial à aviação do SXM – como é conhecido o aeroporto de Sint Maarten em código – pouco ou nada teve que ver com as próximas.
Instalamo-nos num recanto oposto da ilha, sobre uma baía demasiado urbanizada e garrida, talvez por isso, castigada pelo Atlântico.
Na tarde seguinte, sem pressas, contornamos São Martinho por norte, contra os ponteiros do relógio. Atravessamos da zona holandesa para a gaulesa. Voltamos a passar para a holandesa.
Deixada para trás a capital francófona Marigot e circundada a lagoa de Simpson Bay, damos connosco uma vez mais nas imediações de Maho. Há anos que sabíamos da curiosa relação entre a sua praia e o aeroporto por diante. Estava na hora de a testemunharmos.
Numa derradeira rotunda, rejeitamos a Airport Rd. Em vez, apontamos à esguia Beacon Hill Road que percorre os fundos da pista. Em maré de sorte, apanhamos um lugar à entrada da estrada, quase dentro do primeiro dos dois bares que encerram a enseada, o tropicaliente “Driftwood Boat”.
Ao som de Bob Marley, claro está, um sortido internacional de convivas emborca cerveja e cocktails uns atrás dos outros num cerimonial caribenho da vida que o pôr-do-sol não tardaria a dourar.
Dali, à imagem de tantos outros visitantes enfiados em fatos de banho e biquínis, caminhamos sobre o murinho que separa o areal da estrada. Fazemo-lo até chegarmos a meio da praia e ao centro da pista, mal dissimulada por um gradeamento insignificante para a função que desempenha.
A praia é exígua, ainda mais numa maré bem cheia que gera vagas demasiado vigorosas para o normal padrão caribenho. As ondas desenrolam-se areia acima. Detém-nas apenas o tal murinho em que nos equilibrávamos.
Àquela hora tardia, eram poucas e espaçadas no tempo as aterragens previstas, ainda por cima de aeronaves menores, quase todas propulsionadas a hélices. Por isso mas não só, um bando de banhistas aventureiros divertia-se no cima-abaixo das ondas, abstraídos da observação do horizonte a que vários outros continuavam entregues.
Mantemo-nos por algum tempo num modo hiperactivo de reconhecimento. Apercebemo-nos de uma silhueta recortada a sul. Examinamos o mapa da região e apuramos que se tratava de Saba, outra ilha holandesa, esta apenas e só holandesa.
Sem que então o soubéssemos, uns dias depois, haveríamos de para lá nos mudar. Avançamos até ao limite oposto da praia, marcado pelo bar concorrente do “Driftwood Boat”. Encontramos o bem maior “Sunset Beach SXM” repleto de murais e motivos alusivos à obsessão aeronáutica de Maho.
Logo à entrada, uma prancha de surf ilustrada com um avião sobre um ocaso ladeado de coqueiros lista a gizes de várias cores as Chegadas ao Princess Juliana.
O “Sunset Beach SXM” chegou a estar equipado com uma webcam que exibia imagens do site “Flight Radar 24” e que permitia aos clientes acompanharem os movimentos dos aviões, sons dos controladores de tráfego aéreo etc.
O menu do bar conta com pizzas baptizadas com os nomes de companhias aéreas a operarem na ilha e o shot mais emblemático da casa é o “Jet Blast”.
Até ao fim de dia, nenhum dos aviões alvo aterraria pelo que deixamos a praia. Voltamos a cruzar o sul da ilha. Atrasados por um inesperado trânsito de hora ponta, reentramos na Villa Twin Palm que nos acolhera já em cima das oito.
O reconhecimento vespertino permitia-nos saber os horários estimados para as chegadas dos grandes aviões, concentradas entre as 11h30 e as 15h. Programamos a resolução de chatices (compra de cartão SIM local e afins) e a exploração da ilha de acordo.
Dois dias depois, mudaríamos da Villa Twin Palm para uma pousadinha junto ao extremo da pista do Princess Juliana oposto à Maho Beach. Era o quartel-general perfeito para voltarmos a abordar a praia e a sua interação com os aviões.
Intrigados, motivados pela excentricidade da nova missão, fizemo-lo três tardes a fio. Uma após a outra, a quantidade de visitantes, de banhistas e o frenesim em geral nunca cessou de aumentar.
Tal como acontece nas Caraíbas em redor, o número de almas a dispor das ilhas aumenta sobremaneira sempre que os gigantescos cruzeiros atracam, às vezes, aos quatro e aos cinco por dia. Sint Maarten não é diferente. Chegamos a segunda-feira. Estão dois desses colossos do mar atracados à entrada da Grand Bay que antecede Philipsburg, a capital do lado holandês.
Centenas dos seus passageiros desembarcam já a par da fama e entretenimento garantido da Maho Beach. Quando lá chegámos, a praia e o duo de bares que a remata estão à pinha.
O trânsito de dois sentidos da Beacon Hill Road prova-se um verdadeiro inferno, atafulhado pelos condutores de carrinhas-taxi determinados a facturar para a semana toda com a torrente de forasteiros. “Back to the ship? Ride back to the ship?” repetem vezes sem conta, impacientes, enquanto percorrem a ruela em câmara-lenta para ver se, nesse lapso, conseguem recrutar passageiros.
Os mais descarados detêm-se por completo. Levam à fúria os que seguem atrás em posições desfavoráveis ou já com clientes a bordo, desejosos de os largar no barco, de regressarem e conseguirem outros.
A confusão não se fica por aí. Estamos em época de furacões. Um ou dois agitam as águas atlânticas a norte e as caribenhas. Vagas ainda maiores que as das tardes anteriores chegam ao cimo do areal, galgam o murinho e alagam o asfalto coberto de areia.
As luxuosas vans passam a circular em modo anfíbio. Ainda não é tudo. Um murinho secundário divide os sentidos de marcha da Beacon Hill Road. Pouco dispostos a caminharem em ziguezague entre a multidão, alguns veraneantes atravessam a praia sobre os muros, com os veículos a circularem à tangente.
Em simultâneo, os aviões sucedem-se. Quase todos surgem do horizonte a ocidente. Em cerca de trinta segundos, passam de um mero ponto no firmamento às máquinas voadoras e avassaladoras que há muito dominam os céus. Outros, completam o seu percurso-manobra de pré-descolagem com as caudas próximas do gradeamento.
Os primeiros e os segundos, as suas respectivas aterragens e descolagens são há muito protagonistas incontestados da febre aeronáutica-balnear de Maho, os alvos em movimento de todas as selfies e fotos, nos dias que correm, as selfies sobrepostas às fotos, nem poderia ser de outra maneira. Por essa altura, estávamos contagiados sem retorno.
Mantínhamos os olhos nos relógios e no horizonte. Ao mínimo indício de Boeing ou Airbus, entrávamos numa excitação belicosa, incertos quanto a se os lugares pré-escolhidos na praia seriam os ideais para fotografarmos o sobrevoo dos aviões a muito baixa altitude e a mais de 250km/h.
O para cá e para lá incessante e imprevisível da multidão sobre o areal, o vai-e-vem das vagas e o fluxo das nuvens que tantas vezes ofuscavam o sol e retiravam cor às imagens dificultavam-nos o processo.
Só a prática nos permitiu melhorar. Os aviões meritórios: Delta e American Airlines, os Virgin Atlantic e os Jetblue mas sobretudo o enorme Boeing 747 azul e branco da KLM chegavam de tempos a tempos. Como tal, aproveitámos as amostras intermitentes a hélices para eles nos prepararmos.
Por incrível que pareça, a comoção que até aqui relatámos é apenas a das chegadas. Cabe-nos descrever a gerada pelas partidas.
Sem que, até à data, tenha havido uma reacção das autoridades de Sint Maarten, a posição de pré-descolagem dos maiores Boeing e Airbus que servem o Princess Juliana Int. Airport transforma a febre que afloramos acima num surto de loucura colectiva.
Num ápice, dezenas de banhistas alinham-se no prolongamento do avião e submetem-se ao poder dos seus motores. Quando o piloto aumenta a potência, os jactos soltam uma tempestade de querosene, poeira, areia e objectos que leva tudo atrás.
Os banhistas combativos recuam alguns passos. Os menos preparados para aquele turbilhão, saem disparados praia abaixo. Escusado será dizer que, para registarmos os momentos mais caricatos desta recreativa tortura, a ela nos tivemos que sujeitar.
Em sucessivas descolagens, vimos caras distorcidas e chinelos a achatarem faces deformadas. Outras faces, voluntariamente enterradas na areia tal era a dor que os detritos esvoaçantes provocavam.
Vimos mochilas, toalhas, óculos, chapéus, conjuntos balneares inteiros e até uma ou duas pessoas arrastadas para dentro de água com telemóveis nas mãos ou nos bolsos. E isto, apenas do topo do areal para abaixo.
Apesar dos grandes sinais ilustrativos de “DANGER”, afixados logo atrás da vedação e da mensagem inequívoca “Do Not Stand, Danger” pintada ao longo do rail contíguo, dois ou três banhistas mais inconscientes teimaram em resistir à explosão dos jactos, agarrados ao gradeamento. Por aptidão ou clemência, nada lhes aconteceu.
Nem sempre assim foi. Em Julho de 2017, uma neozelandesa de 57 anos alinhou-se com um grupo mais jovem disposto a apreciar a descolagem de um Boeing 737 a partir da vedação.
O 737 até tem jactos aquém dos Jumbo Jets e dos modelos 767, 777 ou 787. Foram o suficiente para a projectar contra os muros de cimento que compartimentam a Beacon Hill Road. Faleceu pouco depois no hospital e tornou-se a primeira vítima mortal deste plane spotting arrojado.
Nessa mesma noite, senti o ouvido direito esquisito. Não liguei por aí além. Quase um mês, vários banhos de praia, comichões e pequenas dores depois, horas após um banho adicional numa praia de areia negra da ilha de Montserrat, o ouvido infectou a valer.
Forçou-nos a ir ao hospital local. E só há alguns dias atrás recuperou a estanqueidade-santa que possuía antes de passarmos pela tresloucada Maho Beach.