A noite, a altitude e a ansiedade. A ansiedade, a altitude e a noite, fosse qual fosse a sequência, a partir de determinada altura, o trio caminhava de mãos dadas.
Pouco habituado aos 3500 metros e às incursões extenuantes aos 4500, durante o sono, os nossos organismos começaram a dar sinais.
Na derradeira dormida em Manang, com a partida combinada para as 8h, estranhámos o batimento cardíaco: as aparentes arritmias, o pulsar exacerbado, como que se o coração nos tentasse fugir pela boca. E o receio incontornável de um chilique qualquer nos vitimar.
Uma vez mais, a apreensão com a quantidade de água que tínhamos bebido e o reforço de última hora do líquido que, depois, não bastasse já o coração revolto, nos obrigava ir à casa de banho duas, três, quatro vezes adicionais.
Nesta amálgama de emoções e apreensões, pouco ou nada dormimos.
Despertamos às 6h30, a tempo de arrumar as mochilas para a caminhada e, logo, para o pequeno-almoço e para as últimas compras de Manang.
Derradeiros Preparativos e um Inevitável Carregador
Deixamos o hotel Himalayan Singi às 8h. À saída, encontramos o carregador que tínhamos contratado na manhã anterior. Por princípio, éramos contra o recurso a carregador como mera facilitação do esforço requerido pelo Circuito Annapurna.
Devíamos, no entanto, ter em conta que só o equipamento fotográfico que carregávamos tinha mais de metade dos oito ou nove quilos considerados aconselhados.
Conscientes da tragédia ocorrida em Outubro de 2014 no desfiladeiro de Thorong La e que abordaremos no episódio que dedicarmos à sua travessia, estávamos também munidos de sacos-cama dos mais quentes, -20º (e mais pesados) a que planeávamos recorrer caso lá nos víssemos retidos por alguma intempérie.
Longe de sermos montanheiros inveterados, andávamos com demasiado peso, era essa a realidade.
Não contávamos com o carregador para nos levar toda a carga nem para a totalidade do percurso que faltava. A ideia era que nos ajudasse apenas com o peso que tínhamos em excesso e só de Manang até Muktinath, sobretudo na travessia de Thorong La.
Queríamos, por todos os meios, evitar desistirmos devido a um qualquer colapso hernial das costas. Aliás, levámos uma semana a tentar precavê-lo com longas sessões de alongamentos no final de cada caminhada, e sempre que nos lembrávamos de os reforçar.
De acordo, tínhamos previsto o carregador levar-nos uma mochila com esse peso que estava a mais. Nós, carregaríamos o equipamento fotográfico e, cada qual, a sua mochila com os nove, vá lá que fosse dez ou onze quilos, considerados seguros.
Na véspera, para contratarmos os serviços do carregador, limitámo-nos a perguntar num hotel em frente ao nosso se conheciam alguém. Ao que o rapaz de serviço nos respondeu: “Cheguem aqui. Tenho aqui um.” Seguimo-lo até passarmos por uma porta lateral. No exterior, damos com uma obra de extensão do edifício em que trabalhavam quatro ou cinco homens e mulheres.
O rapaz chamou um dos operários. Falou com ele breves instantes e apresentou-o.
Don. De Operário da Construção Civil a Sherpa dos Annapurnas em Cinco Minutos
Chamava-se Don. Era, de longe, o mais pequeno dos trabalhadores que ali víamos. Teria, aliás, que ser um dos moradores adultos mais baixo, pequeno – chamemos-lhe o que quisermos – da cidade de Manang.
Por fácil que fosse, não queríamos ceder à tentação de fazermos da sua estatura um preconceito ou motivo de desassossego.
Don recorreu a um inglês atabalhoado. Confirmou-nos a disponibilidade para os três dias de percurso seguintes, supusemos que, em detrimento do trabalho na construção em que iria ganhar bem menos que o que lhe pagaríamos. Mesmo que, à laia de comissão, o hotel para que trabalhava lhe ficasse com parte.
Regressemos à manhã da partida. Saudamos Don.
Informamo-lo de que, antes de deixarmos Manang, pararíamos numa ou duas lojas e bancas, de maneira a comprarmos mais alguns aquecedores químicos, providenciais contra frieiras e queimaduras, caso a temperatura descesse a pique em Thorong La, ou, se lá nos víssemos em piores apuros.
Quando lhe passamos a mochila que era suposto carregar, Don mal consegue disfarçar a surpresa. O normal era os mochileiros dividirem a despesa com carregadores e, como tal, passarem-lhes enormes volumes, com vinte e até trinta quilos.
Ao confrontar-se com uma mochila pouco mais repleta que as nossas, Don olha em volta em busca do paradeiro da restante carga. Em vão.
Despedida de Manang e o Encalço do Grupo na Dianteira
Fechamos as compras. O grupo em que seguíamos desde Brakka (Braga) já partira há algum tempo pelo que apontamos ao extremo oeste de Manang.
A despedida da cidade move-nos a fazermos algumas derradeiras fotos das suas ruas, das suas gentes. Uns poucos moradores despedem-se.
Quando passamos o pórtico budista-tibetano que abençoa a povoação prendia-nos sobretudo a visão do seu casario de terra a destacar-se acima do caudal do rio Marsyangdi. Fotografamo-lo de distintas perspectivas.
Até que, por fim, Manang se transformou numa visão difusa.
Um Batatal Pedregoso e uma Partida de Xadrez a Meio da Caminhada
A determinado ponto, passamos por um grupo de camponeses acocorados num campo ressequido e pedregoso. Espantamo-nos ao constatarmos que já tinham enchido dois grandes cestos tradicionais nepaleses de batatas dali colhidas.
Nas imediações, um ancião agasalhado em trajes de penas modernos, faz rodar um mani de oração, sentado sob o sol generoso dessa manhã e entretido a ver os forasteiros caminharem rumo a Thorong La.
Caminho fora, continuavam a abundar os artefactos da fé budista-tibetana dos nepaleses destas partes: estandartes multicolores que ondulavam ao vento, cornos de iaque na base de estupas seculares.
Nos seus sucessivos meandros na meia-encosta, o trilho Annapurna Parikrama Padmarga conduz-nos à segunda casa de chá daquele trecho, já com um tal de Chullu West Hotel em vista.
Ali mesmo, sobre uma mesa colocada numa extensão escorada do caminho, um casal alourado, com visual de algures do norte da Europa, disputava uma partida de xadrez, acompanhada pela bebida fetiche do Circuito Annapurna: chá de gengibre com mel.
Saudamo-los. Continuamos a recuperar do atraso que levávamos em relação ao grupo. E a ganhar avanço face a Don que se detivera para cumprimentar uma família num negócio anterior, com a promessa de que não tardaria a apanhar-nos.
Por Fim, a Junção ao Grupo e a Caminhada que Restava para Yak Kharka
Juntamo-nos ao grupo junto ao Chullu West Hotel, no lugarejo de Gunsang. Desfrutamos de parte da sua pausa, ainda com vigor de sobra para precisarmos de estender a nossa.
Daí em diante, seguimos integrados no pelotão. Embalados pela deliciosa cavaqueira em inglês e em português as línguas mais usadas pelos dois brasileiros, três alemães, um turco, uma espanhola e um italiano, os membros do grupo.
Cruzamos a primeira ponte suspensa do dia, para variar já não sobre o rio Marsyangdi que, após mais de uma semana a fazer-nos companhia, fiel ao seu curso, nos deixava.
Do lado de lá da ponte, um escrito a negro sobre uma pedra polida proclamava em inglês: “Buda nasceu no Nepal, não na Índia!”.
Minutos depois, um outro, este, mais sinalizador que reivindicativo, indicava o caminho para o Lago Tilicho.
A Passagem Emblemática pelo Desvio para o Lago Tilicho
Este lago situado a oeste de Manang, a quase 5.000 metros de altitude é outro dos lugares mágicos que costumam desinquietar os caminhantes do Circuito Annapurna.
Emergiu por mais que uma vez nas conversas do grupo, como alternativa de aclimatização mais remoto e extremo que o Ice Lake e a Milarepa Cave a que todos ascendemos a partir de Brakka e de Manang.
Em cada uma dessas ocasiões, a incursão ao Tilicho Lake foi posta de lado. Estávamos em Março.
O Inverno do Nepal só por essa altura se desvanecia. O lago permanecia semi-gelado, envolto por vertentes nevadas que a subida gradual da temperatura tornava propícias a avalanches a que nem os iaques nativos sobreviveriam.
Não obstante, naquele vale amplo em que nos embrenhávamos, entre as bases do grande Annapurna III (7555m) e da montanha Chullu East (6584m) já quase só víamos neve nos cumes longínquos a sul e a norte.
Prosseguimos rumo ao destino final, ao longo de um afluente do Marsyangdi e até Yak Kharka (4018m), sem sobressaltos.
Josh e Bruno, um dos alemães e um dos brasileiros do grupo tinham-se adiantado e cumprido os 10km do trecho meia-hora mais cedo.
Entrada em Yak Kharka e no Hotel Tradicional que Nos Acolheu
Por volta da uma da tarde, quando damos entrada na povoação o duo já resolvera a escolha dos aposentos, pelo que nos limitámos a instalar num dos quartos humildes do Hotel Thorong Peak.
Com a estada resolvida, entregamo-nos a um almoço prazeroso e revigorante. De barriga cheia, sonolento, o grupo dispersa. Alguns, limitam-se a apanhar sol nos bancos em frente ao hotel.
Nós, cumprimos parte da sessão quase obrigatória de alongamentos e organizamos a roupa e o equipamento fotográfico para o trajecto em falta.
Ao fim da tarde, voltamos a juntar-nos todos para uma volta de aclimatização na direcção de Ledar, um lugarejo situado já aos 4219m. Sempre eram duzentos metros extra acima dos 4.000m a que, após o Ice Lake e a Milarepa Cave, voltávamos a habituar o organismo.
Por esta altura, Tatiana, uma das duas miúdas alemãs com ascendência russa do grupo, começava a queixar-se de dor de cabeça e outros sintomas ainda contidos mas clássicos do Mal de Montanha. No caso dela, urgia confirmar que recuperava para a manhã seguinte.
Até então, nós, continuávamos imunes à altitude mas não ao receio de que nos pudesse atingir sem aviso.
Uma Extensão Quase Só porque Sim à vizinha Ledar
Caminhamos, assim, em direcção a Ledar, de novo com a Annapurna III a insinuar-se acima de dois outros vértices de vertentes mais baixas.
Passamos pelo Himalayan View, um hotel arredado do centro estratégico de Yak Kharka que a placa à entrada situava em Upper Koche, além de aliciar os caminhantes mais fatigados a completarem o percurso de cavalo, num inglês maculado: “You can get horse to ride from hear to Leader Base Camp & Throng Top.”
O sol não tardou a abandonar o vale. Na sombra, batidos por um vento cada vez mais gélido que nos fazia doer as faces, antecipamos o regresso ao hotel de Yak Kharka.
À imagem do que acontecia todas as noites, sentámo-nos em redor da salamandra da sala de jantar, a partilhar os petiscos nepaleses do costume.
No entretanto, Don tinha reaparecido. Convivia com os empregados nepaleses do hotel. Apercebemo-nos que estava embriagado. Com a noção plena do quanto o álcool gerava e agravava Mal de Altitude, aí sim, receámos pelo que isso pudesse representar na sua capacidade de ascender e cruzar o desfiladeiro de Thorong La.
Em seu abono, tinha a benesse de há muito viver nos 3500 metros de Manang e de, por certo estar mais que habituado a viagens em altitudes superiores, supúnhamos que, em boa parte delas, com álcool à mistura.
Nós, não percebíamos palavra do inglês etílico que Don nos balbuciava.
Para compensar, os nossos corações pareciam ter andado sempre certinhos.
Sentíamo-nos em forma para enfrentarmos o percurso Yak Kharka – Thorong Pedi que se seguia, bem como a ascensão suprema a Thorong La.