Desde que pisamos a pista do aeroporto instalado no Motu Tuanai, que nos sentimos aconchegados pela simplicidade.
Os propulsores do avião ainda giram mas já temos as malas nas mãos e um nativo despachado apresenta-se ao serviço e assegura-se que o seguimos. O cais do aeroporto está logo ao lado e apesar do ar de tupperware envelhecido da lancha, o motor não desilude.
Zarpamos para a lagoa turquesa do interior e, enquanto o vento nos massaja, aproximamo-nos do âmago verdejante de Maupiti. Uma igreja protestante verde e vermelha de visual austero destaca-se primeiro contra a encosta íngreme. Mais à frente, vislumbramos o resto do casario térreo e Vaiea, a principal povoação da ilha, fica completa.

Casario de Vaiea, a principal povoação.
Vaiea a Capital Despretensiosa no Sopé do Monte Teurafaatiu
Desembarcamos em equilibrismo através de uma tábua longa, demasiado inclinada. Já sobre o molhe elevado, damos com os fundos de algumas fares incluindo o da Chez Manu, a pensão mais barata que tínhamos conseguido encontrar neste domínio longínquo mas exasperante do Comptoir Français du Pacifique.
Chegam-nos do pátio vibrações de música caribenha a que se sucede um dos vários hinos de Bob Marley daqueles que, com a erva mais indicada, continuam a purificar as almas de Jah das vastas latitudes tropicais. Manu surge do nada.
Barra-nos o caminho a dançar, dá-nos as boas-vindas com um abraço alcoolizado e convida-nos para a comemoração. “Venham à mamã! Não sei se sabiam mas hoje é dia da Mãe. Metam as coisas no quarto e bebam um copo.”
A festa parece ter passado de prazo. Dois ou três compinchas dormitam em cadeiras desdobráveis. Só uma amiga se mantém desperta e partilha as coreografias trôpegas da anfitriã. A tarde vai no fim, instalamo-nos na divisão recôndita da casa, ligamos a ventoinha cansada e entregamo-nos a um sono de estufa.
Os Alimentos Possíveis, numa ilha Demasiado Só
Algumas horas depois, a fome desperta-nos. Saímos para a rua com o crepúsculo a ceder à noite e não encontramos vestígios da celebração. Nem sombra de um restaurante.

Embarcações tradicionais atracadas sobre as àguas imóveis em redor de Maupiti.
O som de um gerador e uma luz difusa chamam-nos a atenção. A visão de alguns ilhéus a sair armados de baguetes sugerem que ali nos podemos abastecer para o dia seguinte mas não demoramos a descartar a lista pouco ambiciosa de desejos.
Perguntamos por iogurte, bebidas ou frutas frescas mas além do calor, da humidade e do taro – vegetal comum do Pacífico do Sul – só o que chega de além-mar enlatado ou, no mínimo, repleto de conservantes se preserva por aqueles lados.
“Meus amigos, já é uma sorte termos conseguido ligar as arcas há pouco. Vão ter que escolher do que vêem cá fora”. Acabamos por nos render aos caprichos eléctricos do lugar e às evidências. O novo dia havia de trazer melhores notícias.
Quem viaja por estas criações insulares da Polinésia Francesa acaba por perceber que não pode partir sem conquistar os panoramas dos seus cumes.
À Conquista do Monte Teurafaatiu, o Tecto de Maupiti
À primeira vista, os 380 metros do Monte Teurafaatiu parecem tarefa fácil mas começamos a ascensão mais tarde do que é suposto.

Um mar azul de atol para lá de uma encosta tropical de Maupiti.
Acabamos a destilar sob o sol atroz, demasiadas vezes equivocados em trilhos escorregadios que se somem entre a vegetação cerrada e as rochas.
Durante grande parte da ascensão, um paredão enorme de pedra limita-nos a contemplação mas, a determinada altura, chegamos a uma plataforma natural e damos com o cenário totalmente aberto que procurávamos.

A vista do cume do monte Teurafaatiu.
Dali, num primeiro plano, dois ou três picos secundários aguçados reforçam a sensação de altivez. Para baixo, o restante atol de Maupiti e o casario encolhido das duas aldeias disputam-nos o olhar.
Mais ao longe, insinua-se ainda uma deslumbrante rede coralífera de tons de azul e um mar arenoso e tranquilo contido por cinco motus ligados como muralhas que o oceano continua por derrubar.

Pequena embarcação avança ao longo do recife de coral no interior do atol de Maupiti.
Só o silvar da brisa e o rugir de um motor de barco ou de moto-serra longínquos quebram o silêncio. São os únicos sinais de vida a quebrar uma das letargias mais exuberantes e recompensadoras que tínhamos até então testemunhado.
No entanto, Pierce Brosnan ou qualquer outro dos hóspedes frequentes famosos e endinheirados podem a qualquer momento descer dos seus jactos privados para a vizinha Bora Bora e desencadear nova maré mediática.

Família repousa num veleiro ancorado ao largo de Maupiti.
A Insignificância de Maupiti, uma Sociedade Genuína mas à Margem
A apenas algumas milhas, Maupiti é um mundo à parte tão humilde quanto ignorado. De regresso a terreno plano, alugamos bicicletas e enquanto pedalamos em redor da ilha, confirmamos o seu retiro forçado. Queremos comprar selos e postais mas os correios abrem apenas duas vezes por semana e apenas das 2 da tarde às 4 e meia.

Moradoras de Maupiti num velho Citroen Mehari.
De cada vez que algum dos seus 1300 habitantes precisa de um hospital ou até de um centro médico digno desse nome, tem que apanhar um voo para Papeete, a capital da grande Taiti. Já se perderam vidas nesse transporte inconveniente, mas também nasceram bebés pelo caminho.
No sentido inverso, os poucos popaa (peles-brancas) curiosos que desembarcam na ilha dão que fazer a uma outra família e trazem algum dinheiro abençoado.

Baía tropical de Maupiti com coqueiros sobre o oceano Pacífico
De resto, sobra a pesca e o cultivo do noni o fruto de uma árvore homónima (Morinda citrifolia) da família do café e com propriedades de que a medicina convencional suspeita mas que, tanto a tradição cultural polinésia como a medicina alternativa de vários países, se habituou a louvar.
Por estranho que pareça, é impossível não chamar paraíso a Maupiti mas estes édenes ultramarinos são quase comuns na infindável Polinésia Francesa e os investimentos dos colonos metropolitanos não chegam a todo o lado.
Por norma, os nativos queixam-se quando lhes faltam as oportunidades ou o socorro mas para compensar, têm todo este recreio divinal quase só para si.
O Circuito de Canoagem Divinal da Baía de Atipi
Estamos ainda a dar a volta ao coração geológico de Maupiti quando passamos pela baía de Atipiti e prosseguimos para a praia Tereia. Já nos tinham explicado que poderíamos aproveitar para atravessar a lagoa a pé até ao solo firme do motu Auira.
Sempre que possível mantemos os olhos no fundo, em busca das raias que nos podem picar e envenenar mas a profundidade aumenta em certas zonas e obriga-nos caminhar de braços no ar, para protegermos as mochilas e as máquinas fotográficas.
É nesses estranhos preparos que vemos aproximarem-se a grande velocidade quatro canoas coloridas movidas por remadores polinésios determinados. A caravana passa a um ou dois metros de nós mas, ignora-nos.

Nativo treina numa canoa
Os remadores prosseguem a sua navegação competitiva em redor do núcleo do atol mais preocupados em obter a forma ideal para as competições inter-ilhas que se realizam em breve.
Maupiti faz parte do arquipélago das Sociedade mas vive uma vida à parte.