A visão destoa daquilo a quem se havia habituado quem, como nós, chega das alturas litorais de Valletta e das suas Três Cidades.
Avançamos por uma planura de um amarelo-palha, retalhada por plantações irrigadas e verdejantes.
Aos poucos, aproximamo-nos de uma meseta destacada, sustentada por uma série de socalcos, muralhada em toda a sua extensão e coroada por um casario do calcário amarelado típico de Malta.
Desse casario acanhado, projectam-se três torres e uma abóboda, cimos dos principais templos cristãos da povoação.
A via Triq L-IMdina mete-se por uma alameda que se some num túnel de cedros e pinheiros mansos.
Quando dela saímos, fazemo-nos à encosta. Instantes depois, damos connosco na orla tão ou mais arborizada da face sudoeste da fortaleza.
De frente para o seu fosso e para o portão de Mdina, a entrada principal da cidade, vigiada por leões que expõem o brasão do Grande Mestre da Ordem de São João de Jerusalém.
O Portão de Vilhena Adaptado à Guerra dos Tronos
O portão também tem o seu nome português: Vilhena.
António Manoel de Vilhena, Grande Mestre de 1722 até à sua morte, em 1736, foi responsável pela renovação então urgente de Mdina, a par de outras obras imponentes de Malta: o Borgo Vilhena de Floriana, o Forte Manoel e, na mesma senda de baptismos narcisistas, o Teatro Manoel.
Vilhena contratou o arquitecto e engenheiro militar Charles Francois de Mondion para várias obras da sua época. O francês ergueu o Portão Vilhena num estilo barroco louvado, recuperado vezes sem conta e, hoje, com fama planetária.
O portão foi um de dois lugares de Mdina (entre muitos mais de Malta) usados nas filmagens de “Guerra dos Tronos”.
A primeira ocasião deu-se no episódio 3 (Lord Snow) da Temporada 1, enquanto “Kings Landing”. Também passaríamos por outro lugar feito cenário, a Praça da Mesquita.
Em sucessivas travessias do portão, o que vemos é, em grande parte, resultado da beleza e da notoriedade extrapolada da cidade.
Cruzam a ponte cavalos que puxam coches de outros tempos com visitantes deslumbrados a bordo, calhambeques com noivos destinados à catedral de São Paulo.
E até um jipe com caixa, carregado de verdura, resultante de uma qualquer operação de jardinagem.
O trânsito de Mdina é, todavia, esporádico.
Lista de Espera da UNESCO e o Impasse da Cidade do Silêncio
Malta espera há um bom tempo que a UNESCO passe a cidade da lista indicativa (onde está desde 1998) para a de Património Mundial, em que Valletta já consta desde 1980.
As autoridades fazem tudo o que podem. Com uma ou outra excepção como as que testemunhámos, o reduto muralhado de Mdina é o único no arquipélago em que são proibidos veículos motorizados.
Afinal, Mdina ficou para a História como a “Cidade Silenciosa” de Malta. Esse título e os complementares de “Cidade Velha” e “Cidade Notável” são trunfos que o governo maltês sabe que a UNESCO não pode ignorar.
Quando entramos em Mdina, perdemo-nos, de imediato, num labirinto de ruas, ruelas, praças, portas, janelas, varandas, pátios e por aí fora, de elementos urbanos seculares, de linhas normandas e barrocas, todos eles aprimorados.
Instantes de deambulação depois, a questão premente instalava-se.
Porque carga de água um legado histórico complexo e majestoso como aquele era mantido à espera ?
Palácio Falson: símbolo do Fausto e da Persistência dos Nobres de Mdina
Procuramos o Palazzo Falson, um dos edifícios a que dedicámos particular atenção.
Hoje, um museu, o palácio mantém as suas dezassete divisões ainda mobiladas, apetrechadas com vários pertences históricos e uma capela decorada com quadros religiosos em que, até no próprio altar, se destaca uma pintura de Jesus Cristo cuidado por um séquito de anjos.
No Palazzo Falson, desvendamos o fausto em que viveu, em Mdina, a família homónima, à imagem da abastada e poderosa nobreza de Malta.
Nesse luxo e requinte fortificado, boa parte dos nobres da ilha, resistiram a abandoná-la, mesmo quando a acção político-militar de Malta se mudou para outras partes.
O Passado Milenar da Cidade Silenciosa, Velha e Notável
Reza a história que Mdina foi fundada, no século 8 a.C., pelos Fenícios. Nas devidas eras de ocupação de Malta, tomaram-na os Romanos, os Bizantinos e os Árabes, este o povo que lhe atribuiu o nome que preserva.
Sobranceira, distante do litoral mediterrânico e menos vulnerável a ataques de piratas e toda a laia de inimigos como as povoações da costa de Malta e as da vizinha ilha de Gozo, Mdina manteve-se a capital da ilha.
Até que os Cavaleiros Hospitalários da Ordem de São João, formados em Jerusalém, conquistaram Malta aos árabes. Mesmo se se refugiou em Mdina por ocasião do Cerco Otomano, a Ordem preferiu Birgu, uma das actuais Três Cidades.
Nem esta inesperada desfaçatez, nem o sismo da Sicilia de 1693, que causou destruição significativa em Mdina.
Ou sequer os planos de um dos engenheiros militares preferidos da Ordem, o capomastro Girolamo Cassar, de a reduzir e dela fazer uma fortaleza pura e dura convenceram os nobres a partir.
A Obra Ambiciosa Ditada por António Manuel de Vilhena
Avancemos até 1722. António Manuel de Vilhena chegou aos comandos de Malta. Em pouco tempo, conquistou uma imagem de benevolência e de respeito pelos súbditos que estes não estavam habituados a ver nos Mestres Hospitalários.
Vilhena ditou a recuperação integral de Mdina e a sua fortificação à altura da importância histórica da cidade e das forças que continuavam a cobiçar Malta, parte delas, às portas da ilha.
Além do portão que já abordámos, Vilhena ordenou várias edificações públicas: o Palácio Municipal e a Corte Capitanale que, nos nossos dias, faz de edilidade.
Os nobres foram-se deixando ficar.
Anos mais tarde, entre outras comoções sociais e, sobretudo militares, os franceses e os britânicos disputavam Malta sobre o litoral de Birgu, de Valletta e restantes povoações da costa leste da ilha.
Também nessa ocasião, a classe nobiliárquica privilegiada resistiu a mudar-se do seu remanso muralhado. Foi essa espécie de auto-retiro e a subsequente ausência de veículos que deram origem ao epíteto Cidade do Silêncio.
Náufrágio do Apóstolo Paulo e a Cristianização Precoce de Malta
Enquanto a calcorreávamos, fruto da abundância de turistas forasteiros, o silêncio mantinha-se parcial, mais íntegro nas catacumbas de São Paulo, parte de um sistema subterrâneo de quase 4km que compreende outras galerias.
As catacumbas fizeram de cemitério dos Fenícios e dos Romanos, em uso até pelo menos ao século VII e, de novo, durante a reconversão da ilha ao Cristianismo do século XIII.
Uma corrente da história defende que o apóstolo Paulo era levado para Roma para ser julgado como rebelde político quando uma tormenta fulminante fez o navio naufragar.
Paulo e os restantes passageiros a bordo conseguiram nadar até Malta. Parte de uma narrativa bem mais rica, crê-se que durante a estada forçada, Paulo se refugiou numa gruta de Rabat, a cidade que hoje se estende fora das muralhas de Mdina.
Chegado o Inverno, terá sido convidado por Publius, o líder romano da ilha, para a sua casa. Nesses dias, Paulo curou uma febre intensa que afligiu o romano. Reconhecido, este, ter-se-á convertido ao Cristianismo. Tornou-se, inclusive, o primeiro Bispo de Malta.
A presença naufragada de Paulo e o seu papel decisivo na alegada cristianização precoce de Malta, justificaram os baptismos da catedral de Mdina, da igreja de Rabat e de outros monumentos porque passamos.
O Crepúsculo e o Lento Dourar da Cidade Silenciosa
Ruela após ruela, triq atrás de triq, o dia já longo da Cidade Silenciosa caminha para o fim.
Deleitamo-nos ao ver como o ocaso amarelava recantos contemplados pelo grande astro.
As sombras a alongarem-se nos becos e os pedestres surgirem de túneis seculares como fantasmas projectados.
Vemo-los deambularem pela base da catedral que o lusco-fusco e a iluminação abençoam de um quente quase rosado.
Lembramo-nos de que aquela resplandecência deveria ser impressionante a dobrar, se vista à distância, quase a descolar do altiplano de Mdina.
Apressamo-nos, assim, a descer para o seu sopé leste.
Já num trilho que sulcava os minifúndios em redor, a atrapalharmos corredores que cultivavam a sua forma física, encantamo-nos com a estrutura celestial, meio espacial da catedral de São Paulo num fogo dramático contra o firmamento.