A extensão arredondada do Mindelo, com o seu casario pastel e prolífico a querer engolir de uma vez a angra que lhe serviu de molde, só nos complicava a missão de encontrarmos um ponto de observação privilegiado.
Tinham-nos falado de dois, como seria de esperar, ambos situados sobre a encosta que aperta a cidade, sobretudo a leste.
Dois ou três pedidos de indicações depois, ainda meio perdidos numa segunda ou terceira linha do bairro de João d’Évora, explicam-nos o início do trilho para o Monte Alto que buscávamos, esperávamos que o caminho para uma das vistas abençoadas da ilha.
Assim se confirmou.
O Panorama do Mindelo Glorioso, do Cimo do Monte Alto
Já no cume, percebemos como os seus 126 metros e a inclinação do monte o tinham transformado numa estranha ilha geológica, uma orgulhosa resistente ocre cercada dos lares e estabelecimentos que, com os tempos, as gentes cabo-verdianas e as de fora fizeram expandir o Mindelo.
Para baixo, concêntricas face ao extremo norte da baía, víamos destacarem-se os edifícios mais sólidos da cidade, sem grande lógica ou espartilhos arquitectónicos.
Uns, vivendas térreas, ou pouco mais. Outros, prédios já com os seus quatro ou até cinco andares.
Todos eles em tons de pastel, todos encaixados no sopé que, dali, ascende por 8km, de forma suave, aos 750 m do Monte Verde, o zénite ventoso de São Vicente.
Uma vez seguro de si, o Mindelo deixou de se contentar com o entorno mais acolhedor e proveitoso do Porto Grande. Apreciamos o panorama noutras direcções e até para trás do monte que nos sustinha.
O casario estendia-se por ali mesmo, num mar de cimento em blocos que, quanto mais distante do mar mais cinzento se tornava, sem os salpicos de branco e de outras cores próprias do âmago urbano.
Daquele cimo, víamos os barcos de recreio, na marina, uns poucos ferries.
E alguns cargueiros sarapintarem o azul-marinho do Atlântico, pontos de escala que faziam salientar a imponência oposta e rugosa do Monte Cara (490m), mais para o ocidente arenoso e ressequido de Lazareto, do Monte Sossego, zonas também elas limítrofes que, salvo umas poucas excepções, o Mindelo está por ocupar.
Damos por encerrada a contemplação elevada que nos entretinha. Regressamos à base do Monte Alto, ao carro e à Avenida Marginal de que tínhamos partido.
A Beira-Mar que Une os Mindelenses ao Mindelo, São Vicente
Reencontramos o pontão complementar do Pont d’Água no seu oásis frondoso de Bohemian Chick. Assim que cruzamos a estrada para a Praça Dom Luís, voltamos ao Mindelo secular, resplandecente de história, de vida e de morabeza que mais encanta quem o visita.
A Rua Libertad d’África alça-nos à elegância e importância do antigo Palácio do Governador, hoje, em tempos de Democracia apostada em se provar exemplar, denominado Palácio do Povo.
Rosa e branca, a mansão surge, a quem por ali passa, como um cenário de Alice no País das Maravilhas caído, sem estragos, do céu azulão acima.
Passam por ele, transeuntes embrenhados nos seus afazeres. Os pedestres em modo defensivo face ao trânsito que lhes passa a rasar.
Os condutores, a evitarem a mini-rotunda rasa, feita de canteiros listados, que as autoridades se lembraram de por ali instalar.
Arte, também em forma de instalações, abunda no Palácio do Povo.
Vencida, desde 1975, a lógica habitacional dos governadores coloniais, além de embelezar a mansão, o Mindelo destinou-a à expressão artística já de si prolífica na cidade, caso único de criatividade no arquipélago, caso sério na, mais vasta, Macaronésia.
O Mindelo e a sua Incontornável Aptidão Artística
Vagueamos para sul na grelha urbana. Passamos a edilidade da ilha de São Vicente.
Damos connosco na Pracinha da Igreja, de frente para a igreja da Nª Srª da Luz, o umbigo do Mindelo, à volta da qual se prostraram as suas casas e ruas pioneiras, a começar pela Rua da Luz que calcorreávamos.
À falta de arte premeditada e assinada, o Mindelo revela-nos, logo ao lado, uma versão casual que nos deixa rendidos.
Recuado face à fachada do templo, um velho prédio em tempos de um azul-claro igual ao celeste, descascava sob secura inclemente de São Vicente.
Em frente à sua própria fachada, uma acácia tresmalhada erguia-se pouco acima do piso térreo.
Determinado em evitar que a pintura da motorizada acabasse como a do edifício, um morador mantinha-a na sombra fugidia da árvore.
O calor estival, a falta de água e de sombra, a dificuldade em semear e conseguir colher, bem como de criar animais foram os principais obstáculos enfrentados pelos povoadores pioneiros.
Outros surgiriam.
De acordo com a carta régia de D. Afonso V, terá sido Diogo Afonso, escudeiro do Infante D. Fernando, o descobridor de São Vicente, bem como da Brava, de São Nicolau, São Vicente, Santo Antão e dois outros ilhéus, o Branco e o Raso.
Por esse feito de 1462, o navegador mantém, aliás, uma estátua de bronze acima da marginal.
Entre os barcos dos pescadores e a que, quando a praia-mar entra em pleno, o Atlântico chega quase aos pés, prestando-lhe a devida vassalagem.
A Vida Atarefada da Avenida Marginal de Mindelo, São Vicente
O meio da avenida é marcado por grandes palmeiras. Vemos as suas sombras graciosas projectadas nas fachadas multicolores que a encerram, casas dos mais distintos negócios estabelecidos e itinerantes.
Aqui e ali, a relação quase umbilical entre Cabo Verde e Portugal salta à vista.
Ali por perto, destaca-se, ainda mais acima, a réplica da Torre de Belém. Foi inaugurada em 2010 com a presença do então Presidente Cavaco Silva, de visita a Cabo Verde, para celebrar os 550 anos passados desde a chegada dos navegadores portugueses.
Numa pitoresca barbearia, a bandeira nacional convive com uma panóplia de calendários, emblemas e fotografias do Benfica.
São vários os jogadores do Grandioso, seus rivais e convocados para a selecção portuguesa nascidos em Cabo Verde ou filhos de pais cabo-verdianos que mantêm dupla nacionalidade.
Numa de tantas vezes que caminhamos pela Av. Marginal, cruzamo-nos com Vânia e Riseli, jovens vendedoras de fruta e vegetais.
Conversa puxa conversa, entramos numa perspectiva não desportiva do tema paternidade. A sua confissão conformada deixa-nos estupefactos: “aqui em Cabo Verde, homem só serve para fazer filhos.
Depois, até evita passar por nós para não exigirmos nada.” “Então ficam só com a parte divertida, como pode ser?” retorquimos.
“É isso mesmo. Isto, por cá, não tem nada a ver com Portugal! Eu tenho um filho. Só eu e os meus pais cuidamos dele. Ela já tem dois, é a mesma coisa…”
Alguns Mindelenses adeptos das cartas, encostam-se ao bronze de Diogo Afonso, no intervalo das jogatanas disputadas debaixo de quatro telheiros irmanados.
O Longo Hiato Histórico entre o Descobrimento e o Povoamento
Hoje, os Mindelenses são mais de setenta mil. Têm direito a estas aturadas pausas lúdicas, animadas a dobrar pelas discussões em redor dos eventos futebolísticos da ex-metrópole.
Nas muitas décadas que se seguiram ao descobrimento de Diogo Afonso, as raras tentativas de assentamento fracassaram, umas, mais danosas que outras.
Os piratas e corsários, esses, habituaram-se a usar a Baía do Porto Grande como covil para as suas investidas sobre os navios das potências colonizadoras.
A posição fulcral de São Vicente, como alpondra providencial na navegação para a América do Sul, levou ainda a que, em 1624, os Holandeses lá reagrupassem a sua armada, com o objectivo de tomarem, aos portugueses, a Baía de Todos os Santos (Salvador) e, daí, o que conseguissem do Brasil.
Só um século e meio depois, já saturadas de tanto e continuado abuso do arquipélago (sobretudo dos piratas) as autoridades portuguesas ditaram que São Vicente teria que ser povoado.
Por Fim, o Assentamento que Urgia em Mindelo
Decorreram quase outros quinze anos. Lá desembarcaram, por fim, os primeiros desafortunados: vinte colonos servidos por cinquenta escravos que a Cidade Velha de Santiago há muito traficava, levados da ilha do Fogo.
O capitão-mor de São Vicente, um tavirense endinheirado, fê-los instalarem-se numas poucas cabanas e barracas, no lugar da actual praça da Igreja Nª Srª da Luz, por essa altura, a aldeia de Nª Srª da Luz.
Em 1819, ainda se contavam menos de 120 os habitantes da ilha.
Fazendo fé no potencial do Porto Grande, o novo governador recrutou outras cinquenta e seis famílias, na ocasião, oriundas da bem mais fértil ilha de Santo Antão.
Sonhador, facilmente impressionável pela pompa, António Pusich decidiu homenagear a Imperatriz da Áustria. Rebaptizou a povoação de Leopoldina.
São Vicente, não tinha ainda água que assegurasse a sobrevivência das suas gentes, quanto mais requintes.
Ou sequer a diversidade de vegetais, frutas e outros bens da terra que agora enchem de cor e de ânimo o mercado municipal, o do Peixe, o dos Vegetais e os móveis, de rua, que destes se estendem em redor do vestuário e artesanato predominante na Praça Estrela.
Passados mais dois anos, boa parte dos 295 moradores que alentavam o sonho Pusichiano de Leopoldina, já tinham debandado.
A Entrada em Cena dos Ingleses e do Carvão
A colonização de São Vicente só voltou a ganhar tracção quando os ingleses chegaram, determinados a extrair e vender o carvão até então ignorado da ilha aos navios a vapor, negócio propulsionado pelas várias companhias de navegação inglesas que percorriam o Atlântico.
O carvão depressa se provou o combustível civilizacional de São Vicente, como o sal se revelou o da ilha do Sal.
Com a escravatura abolida e a cidade a abrir-se cada vez mais ao progresso e ao mundo, um surto de febre amarela voltou a reduzir os habitantes da cidade. De 1400 para metade.
Durante os anos 30 do século XX, o súbito declínio da venda de carvão e da ancoragem de barcos no Porto Grande, agravado pelas secas e pela fome da década de 40 levaram a muitas mortes, a uma intensa diáspora e a nova decadência da cidade.
A vida nas restantes ilhas revelava-se, todavia, tão ou mais precária.
A crença de que o Porto Grande abrigava inesgotáveis empregos instigou a migração para o Mindelo. Lá continuam a abundar.
O sol volta a envolver-se com o pico do Monte Cara. Também a praia da Laginha se prepara para a noite.
Eliseu Santos, salva-vidas escultural, bombeiro, segurança e professor de educação-física desce da torre de observação e recolhe uma prancha da beira d’água.
A essa hora, ele e o colega que o ajuda tornam-se silhuetas em movimento contra a baía prateada.
Logo, um grupo dá música à rua de Libertad d’Africa, sobre um palco montado de costas para o Palácio do Povo.
O Mindelo entrega-se de vez ao seu delicioso modo hedónico.
Cesária Évora, Rainha da Morna, a filha mais Famosa do Mindelo
O Mindelo viu nascer e falecer, em 2011, a sua Rainha da Morna, Cesária Évora.
E não tardam a soar também êxitos da “diva dos pés descalços”, a começar pela “Saudade” de San Niclau, todos eles vindos da Casa da Morna, logo ao lado do prédio emblemático da Figueira & Cia, Lda.
O Contributo Decisivo da Migração e da Emigração
O facto de, a determinada altura, o Mindelo ter o único liceu do Barlavento fez com que lá se concentrasse a nata dos intelectuais do arquipélago, incluindo Amílcar Cabral. A sua presença esteve na origem da emergente consciência nacional cabo-verdiana.
A partir de 1968, as verbas enviadas pelos emigrantes da diáspora, sobretudo na Europa e nos E.U.A., melhoraram sobremaneira a vida cabo-verdiana.
Seis anos depois, a Revolução do 25 de Abril abriu as portas à independência e ao regresso à cidade de muitos quadros e políticos que antes viviam emigrados ou noutras ex-colónias portuguesas.
O Mindelo reorganizou-se política e economicamente. Em redor do Porto Grande, claro está.
O legado cultural luso, inglês, o norte-americano e europeu para lá remessado pelas sucessivas gerações de diáspora cabo-verdiana geraram uma capital de São Vicente enérgica, criativa e reluzente, quem sabe, se o entreposto atlântico que o governador António Pusich se atreveu a fantasiar.
O Mindelo é, nos nossos dias, a segunda cidade do arquipélago, a mais dinâmica e viajada.
E, se tivermos em conta a desolação cozida pelo sol e soprada pelos Alísios com que Diogo Afonso se deparou, um luxo como nenhum outro em Cabo Verde.