Andamos pela região entre os rios Paraná e Uruguai a que, por afinidade à dupla fluvial do Crescente Fértil, os colonos baptizaram de Mesopotâmia Argentina.
Fartos de esperar pelo autocarro que nunca mais aparece. Desconfortáveis devido ao frio Invernal que invadia o Cone Sul da América do Sul, apanhamos um outro autocarro qualquer e avançamos até à estação de camionagem que se seguia. Ali, voltamos a comprar passagens para uma viagem que tinha tudo para demorar.
Escurece a olhos vistos. Refugiamo-nos no único café aberto. Pedimos chocolate quente ou algo que nos aconchegue. “Desculpem mas já estamos a fechar. Podem sentar-se mais um bocado mas não temos nada disso.” afiança o dono, entregue a limpezas.
Em desespero, perguntamos se nos serve chá mate, que andávamos para provar fazia algum tempo. “Já não tenho água a ferver.” Responde-nos sem pejo. “Querem tereré??” Esquecemos a necessidade de reaquecer. Em vez, cedemos ao repto de outra das bebidas incontornáveis daquelas paragens.
O Ritual Estimulante da Erva-Mate
Ao jeito de crianças que experimentam cerveja pela primeira vez, desiludem-nos o travo amargo, as folhas grandes a boiar e a temperatura frouxa da bebida.
Sabemos, no entanto, que estamos a saborear parte da história e da cultura da região. Estimulamo-nos a insistir. Por alguma razão haveriam tantos argentinos e uruguaios, entre outros, viajar com termos debaixo do braço e guampas (bombas) por esse mundo fora.
Isto, quando a infusão nem sequer foi criada pelos seus antepassados do Velho Mundo.
Crê-se que os indígenas guarani já consumiam erva mate muito antes da chegada dos primeiros conquistadores e missionários aos seus territórios. Os índios apresentaram o ka’a aos jesuítas. Estes, reconheceram de imediato o milagre da força e vigor concedidos pela cafeína presente nas folhas.
Foi apenas um dos muitos ensinamentos que os nativos lhes transmitiram. De acordo com o que era normal na época, os religiosos depressa assumiriam uma posição de supremacia no que viria a provar-se um longo e profícuo intercâmbio cultural.
A Conversão dos Guaranis nas Missões Jesuíticas
Por volta do século XVII, a Companhia de Jesus aperfeiçoou uma estratégia de controle das populações autóctones abençoada pelo rei Filipe III de Espanha. O método passava por reunir indígenas em missões para anular os seus hábitos de nomadismo e a sua estrutura política.
Simplificava-se, dessa maneira, por vezes sob auspício dos próprios caciques, a sua evangelização, administração e taxação.
O método começou por ser implementado na zona do actual Paraguai. Foi alargado a áreas da Bolívia, Brasil e ao mesmo extremo nordeste da Argentina que agora explorávamos.
Amanhece quando deixamos o transporte alternativo às portas de San Ignacio Miní, uma das 16 congregações que, a partir de 1607, os jesuítas fundaram em redor do Alto Paraná argentino.
A Chegada Madrugadora a San Ignácio Mini
Um edifício moderno adapta a estrutura de nave de igreja, abençoado pela figura de San Ignacio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, que parece supervisionar as intenções dos visitantes a partir de um nicho elevado sobre o centro do frontal.
No interior, encontramos expostas pinturas que recuperam o que terão sido episódios da vida da congregação, com indígenas junto de quase catedrais. E jesuítas na companhia de militares.
Lá fora, damos com um relvado amplo resgatado à selva. Nele se dispõem as ruínas ocres que subsistiram ao passar do tempo, em redor dos resquícios de uma enorme igreja.
O Vasto Complexo das Ruínas Guaranis
Não resiste qualquer tecto dos edifícios erguidos em barroco guarani. Muitos dos aposentos foram reconstruídos e têm expostos fachadas e frontões trabalhados com um visual excêntrico de olaria eclesiástica.
Num deles, percebe-se o trigrama cristológico de Ihejus divulgado no século XIV pelo pregador São Bernardino de Sena, o símbolo IHS que Inácio de Loyola admirava e recuperou para a ordem.
Do lado poente da igreja, surge ainda uma sequência de colunas. Uma delas foi engolida por uma figueira-da-Índia. Apuramos que lhe chamam a árvore com o coração de pedra.
É mais ou menos aquilo que os missionários jesuítas pensavam dos arqui-rivais bandeirantes que os atacavam vindos de Leste, das terras costeiras do Império Português.
Roland Joffe, realizador franco-britânico foi um de vários interessados por este fascinante contexto histórico. Nos anos 80, criou um épico premiado com a Palma de Ouro, galardoado com um Óscar de melhor cinematografia e com lugar proeminente na memória cinéfila.
Mais tarde, já em Posadas, somos questionados por dois irmãos bem-dispostos e curiosos com as nossas origens. “Ah, são portugueses?? Vocês eram os maus, lembram-se?” A abordagem intriga-nos.
“A Missão”: O Épico da Sétima Arte que Narra a Epopeia das Missões
“Não se lembram de “A Missão” ?, do Rodrigo Mendoza?” (n.d.a: personagem representada por Robert de Niro). Vocês é que vinham cá para raptar os pobres indígenas.
Como se não bastasse, ainda destruíram as reduções!” continuam a satirizar com um à vontade que envergonha a mãe a seu lado mas nos diverte.
De acordo com o enredo filmado em redor das Cataratas do Iguaçu, os jesuítas tinham já convertido os nativos e continuavam a formá-los numa série de virtuosidades do Velho Mundo como a mestria musical e os dotes vocais, em grandes coros religiosos.
Com base em São Paulo, os bandeirantes desdenhavam estes progressos. Continuavam obcecados pelos lucros que os escravos lhes garantiam e aproveitavam o facto de algumas das missões ocuparem territórios portugueses ou dúbios para prosseguir com os seus ataques.
Os jesuítas reagiram. Mudaram algumas congregações para terras hispânicas. Com a permissão da Coroa Espanhola e o contributo dos índios guaranis, criaram milícias de defesa que derrotavam os bandeirantes.
Estabilizada a segurança, as missões desenvolveram uma organização social, laboral e militar impressionante que garantiu a auto-subsistência e produções de gado e de erva-mate que os jesuítas transformaram em proveitos.
Os seus exércitos tornaram-se poderosos. Ao ponto de anularem as pretensões expansionistas das forças portuguesas e os ataques de povos indígenas beligerantes. Também apoiaram a Coroa Hispânica contra as primeiras intenções independentistas da região.
O Longo Toma Lá Dá Cá das Coroas Portuguesa e Espanhola
Malgrado a utilidade estratégica das Missões, Fernando VI, considerou prioritária a pacificação do conflito com os rivais ibéricos. Aceitou trocar a praça de Colónia del Sacramento (que tinha mudado várias vezes de lado desde a sua fundação e que os guaranis o tinham ajudado antes a conquistar) por cerca de 500.000 km² detidos pela Companhia de Jesus na bacia do Alto Uruguai.
Em 1750, o Tratado de Madrid oficializou esta permuta. Obrigou sete missões, estâncias pertencentes a outras cinco e quase 30.000 guaranis a aceitar a soberania dos portugueses ou a mudar-se para Ocidente do rio.
Deu ainda origem à Guerra Guaranítica (1754-56) que opôs as forças jesuítas e indígenas às portuguesas e espanholas.
Nós, como, por certo, os irmãos de Posadas, ainda nos recordávamos das cenas épicas de “A Missão” que mostravam o Padre Mendoza arrependido, convertido a líder da resistência indígena.
Atado a uma cruz e, em queda numa das cataratas de Iguaçu, no desfecho de uma batalha que acelerou a mais que provável vitória das potências coloniais.
Também recuperamos com facilidade a banda sonora grandiosa que Ennio Morricone criou para musicar aquelas imagens.
E o Fim Trágico das Missões Jesuíticas
Em 1759, o Marquês de Pombal decidiu afastar os obstáculos ao seu absolutismo e expulsou a Companhia de Jesus de Portugal.
Oito anos depois, o rei Carlos III promulgou a Pragmática Sanción que decretou a sua expulsão dos territórios espanhóis e ditou o fim do projecto missionário na América do Sul.
Por essa altura, o governador hispânico de Montevideu terá entrado na Missão de San Miguel – uma das congregações que não conhecia – e exclamado com fúria: “E é este um dos povos que nos mandam entregar aos portugueses? Deve estar louca esta gente de Madrid!”.
Colónia de Sacramento nunca foi cedida aos espanhóis. Em 1761, durante a guerra dos Sete Anos que se seguiu, o Tratado de Madrid foi anulado pelo Tratado de El Pardo.