Em Setembro de 2019, um trejeito do destino viabilizou-nos um há muito buscado périplo pelas Caraíbas.
Contados três meses, tínhamos descido a alpondra insular das Pequenas Antilhas desde a República Dominicana até Antígua.
Montserrat distava uma curta travessia de ferry.
Do cimo do barco, apreciamos o casario de St John e as linhas do relevo de Antigua tornarem-se difusas e, aos poucos, as de Montserrat a ganharem definição.
Tudo sobre um Mar das Caraíbas que mais parecia um lago.
Preparamo-nos para contornar a extremidade norte de Montserrat quando percebemos um barulho estranho no motor.
O barco detém-se.
Rebocam-nos até ao Terminal da Little Bay em que era suposto amararmos.
Uma anfitriã dá-nos as boas-vindas, conduz-nos à imigração. Logo, despacha-nos para um táxi.
Olveston House e a Entrada na História de Montserrat e de Sir George Martin
À conversa com o motorista Milton, chegamos num ápice a Salem e à Olveston House em que nos íamos hospedar. Lá nos recebem Margaret e Peter, um casal inglês jubilado que passava boa parte do tempo em Montserrat.
Erguida em estilo plantation, a sua casa tinha sido propriedade de Sir George Martin, o famoso quinto Beatle. Martin adquiriu a mansão em 1980. Nos anos seguintes, foi lá que acolheu muitos dos músicos que chegavam da Grã-Bretanha para gravar álbuns.
No que restou dessa tarde, descemos até à praia aconchegante de Line Kiln Bay. No afago das suas vagas, ao sol do Caribe, recuperamos do despertar madrugador e do cansaço da viagem.
As eleições locais tinham ditado um feriado inusitado pelo que estava tudo fechado. Previdentes, com o cair da noite, Margaret e Peter trazem-nos caris vegetarianos, bem servidos de arroz. Assim nos mimam para uma ansiada noite de sono.
Acordamos atrasados. Confrontados com a falta de alternativas, devoramos uma aveia meio cimentada com água. Chamam-nos do pátio em frente.
Era Jermaine, candidato de um dos partidos derrotados, o mais jovem a participar, desde há um bom tempo. Jermaine também era guia de uma tal Fabulous Tours, o cicerone incumbido de nos revelar os cantos de Montserrat.
O Montserrat Volcano Observatory
Começa por nos levar de Salem ao Montserrat Volcano Observatory, em que as autoridades monitoram o vulcão Soufrière, e de onde temos o seu primeiro vislumbre, demasiado difuso e obstruído por nuvens.
“Vão vê-lo muito melhor daqui a pouco.” sossega-nos Jermaine. “Vou-vos levar a um lugar tão ou mais único. Vai ser uma missão especial.”
Dali, por ruelas estreitas ladeadas por coqueiros e mato frondoso, chegamos a um cimo de rampa húmido, também ele entregue à vegetação.
E as Ruínas dos Air Studios de Montserrat
Placas presas a numa vedação sinalizavam a Propriedade Privada dos Air Studios Montserrat e, a vermelho, o risco de entrar nas instalações, ferrugentas e instáveis.
Seguimos os passos do guia. Trepamos uma vedação envolta em folhagem.
Do lado de lá, damos com uma piscina cheia de água das chuvas, em vias de se tornar um pântano.
No enfiamento, a entrada para o âmago tecnológico dos velhos Air Studios Montserrat, com a sua vitrine, o tecto de madeira e uma série de encaixes para colunas e outros tipos de equipamento, há muito sumidos.
Malgrado o abandono ao tempo e à flora tropical, nos anos 80, frequentaram aquela piscina e os estúdios estrelas da música como os Beatles, The Police, Dire Straits, Elton John, Duran Duran, Ultravox, Eric Clapton, Lou Reed.
E num estilo mais negro, até os Black Sabath.
Em 1979, ano da inauguração do estúdio, Jimmy Buffet gravou lá um álbum de nome “Volcano”.
A Caminho do Grande Vulcão da Ilha
Por essa altura, o monte Soufrière Hills que o inspirou permanecia dormente. O sono do vulcão seria de pouca dura. Pressionados pela ilegalidade do trespasse, finalizamos umas derradeiras fotos e regressamos à carrinha.
Apontamos a Plymouth e aos domínios sulfurosos do vulcão. No caminho, cruzamos o rio Belham que marca o limiar entre as regiões de São Pedro e de Santo António.
Mesmo entre tanta santidade, uma nova placa alerta para outro risco: “Não Cruzar o Rio Belham. Sempre que há chuva forte, esta área é propensa a torrentes de lava.”
Que todos os perigos fossem esse.
Do lado de lá do rio, passamos pelo Centro Médico abandonado de Cork Hill.
Em frente, na orla de um descampado ervado, passamos por um guardião sob uma guarita precária feita de uma grande placa de madeira sustida, num equilíbrio frágil, por barrotes.
Abrigado do sol castigador e, com muita sorte, de projécteis lançados pelo vulcão, o homem assegurava o controle inaugural da Zona de Exclusão de Montserrat, quase um terço da ilha.
Jermaine cumprimenta-o e obtém uma autorização implícita. Não tarda, chegamos a um estaleiro de extracção de areias.
Uma cancela no prolongamento de uma casinhola de ferro, estabelece um derradeiro Check Point, à entrada no sector proibido.
Jermaine intensifica a comunicação por walkie-talkie e detêm-nos. Aguardamos pela chegada das autoridades, que era suposto seguirem-nos de perto.
“Ok, já aqui estão. Vamos embora!” instrui Jermaine. “Atenção que têm meia-hora. Não se afastem. Eles cobram multas pesadas.”
Avançamos, constrangidos pelas regras, por Jermaine e pela perspectiva de o vulcão entrar em erupção, uma ameaça tão latente e real como a da famosa White Island.
Esta, uma ilha vulcânica, à data, demasiado turístico da Nova Zelândia que, quinze dias mais tarde, tirou a vida a dezasseis visitantes e guias.
À Descoberta da Famigerada Capital de Montserrat: Plymouth
Já dentro da zona de exclusão, Jermaine leva-nos a um hotel antes popular de Plymouth.
Encontramo-lo inundado da cinza compactada que invadira os quartos, a piscina e outras divisões.
Sobre o balcão da recepção, subsistem uma velha calculadora.
E um livro de registos, preenchido à mão, com os dados dos hóspedes recém-chegados e que se viram forçados a antecipar o check-out.
Do hotel e da sua quase beira-mar, mudamo-nos para um sector da encosta bem mais acima, que uma maior altura e concentração de cinza e lava mantinha liberto de mato.
Desse ponto, temos a primeira visão panorâmica do Soufrière Hills, do rio vulcânico que dele havia fluído e do casario da temerária Plymouth, soterrado num mar de cinzas e de lava.
Plymouth era desde há muito a capital altiva de Montserrat, o único porto de entrada nesta ilha, um território ultramarino autónomo do Reino Unido e uma das Pequenas Antilhas que encerram as Caraíbas a oriente.
O Despertar Inclemente do Vulcão Soufrière Hills
Nos anos 90, ainda recuperava da destruição causada pelo furacão Hugo (1989) que vitimou vinte um habitantes e deixou boa parte de Montserrat destruída.
No fim de Junho de 1995, apoiada por assistência internacional (sobretudo britânica), a ilha já tinha recuperado do pior.
Em Julho, em plena época de furacões, em vez de novo ciclone, o Soufrière Hills inaugurou um período de sucessivas erupções.
Com domicílios e negócios no sopé do vulcão, os moradores tiveram que ser evacuados com urgência. Mantiveram alguma esperança de regressarem.
Em vão.
Novas erupções libertaram fluxos piroclásticos e lahares que queimaram e enterraram a cidade, agora fantasma, que tínhamos, em volta.
Dezanove pessoas foram apanhadas desprevenidas e pereceram.
Plymouth permanece votada a um abandono que prováveis novos fenómenos eruptivos justificam.
As cinzas, a lama e o tempo não apagaram, por completo, os rastos das suas vidas.
Nova Incursão à Capital Abandonada de Plymouth, Montserrat
Nesse fim de tarde, pouco antes do pôr-do-sol, já senhores de um jipe alugado, concordamos numa incursão rápida e rebelde à zona do hotel, onde se concentravam dezenas de vivendas, lares de vidas, em tempos, abastadas e resplandecentes.
Perscrutamo-las. Damos com os mais distintos vestígios.
Uma casa de banho ainda com uma embalagem de Colgate, um copo e uma lata de desodorizante, junto a uma cortina de banho semi-derretida.
Um saco de golfe etiquetado com o nome do proprietário e munido de bolas brancas que o calor tinham feito rebentar.
Arquivos de cassetes e tantos outros itens em tempos corriqueiros, agora, misteriosos, perdidos entre florestas de fetos ensopados.
Escurece. Tal como temíamos, vemo-nos aflitos para, no labirinto de ruas geminadas, recuperarmos o caminho que ali nos levara.
Por fim, conseguimos regressar ao abrigo acolhedor da Olveston House.
Um Terror Inesperado e com Pouco de Vulcânico
Para o dia seguinte, Jermaine tinha prevista uma aproximação ao vulcão que nos garantia uma vez mais proibida e que só a nós nos proporcionaria.
Em jeito de preâmbulo, despertamos às sete e pouco, em pânico devido a um troar inesperado e ao fumo que nos enchia o quarto e fazia sufocar. Ensonados, podíamos jurar que se tratava de uma nova erupção.
Ainda quase tão assustada como nós, Margaret grita-nos do pátio: “Não se preocupem, não é o vulcão!”. Explica-nos, furiosa, que as autoridades tinham programado acções de pulverização antimalárica e anti-dengue.
Para mal dos nossos pecados, lembraram-se de começar de madrugada, sem pré-avisarem os moradores.
Sobrevivemos ao susto. Levantamo-nos prontos para continuar a descoberta de Montserrat, incluindo Plymouth.
Jermaine aparece uma hora depois.
Uma vez mais por ele guiados, voltámos às imediações sulfurosas do Soufrière Hills.
Por altura da criação deste artigo, o vulcão Cumbre Vieja da ilha de La Palma, nas Canárias encontrava-se numa fase eruptiva tão ou mais destrutiva.
Por sorte, até à data, nenhuma das povoações da ilha estavam no caminho da lava, entre o vulcão e o destino final do oceano Atlântico.