Sintra. A Nova.
A da ilha mais húmida e verdejante de Cabo Verde que, por estes mesmos atributos, viu o nome original de São João ser mudado para Brava. A ilha da vila, sua maior povoação que, em 2010, se viu promovida a cidade.
Como a Brava em geral, Nova Sintra provou-se, aos seus colonos portugueses, uma espécie de polo magnético da névoa, de tempos a tempos, também da bruma seca que lhe chega do leste, dos domínios ressequidos e fumarentos do Fogo.
A névoa sempre fez parte de ambas. A tal ponto que um escrito de 1988, denominado “Brava, tradicionais festas de Nho Sandjon e do Município.” afirmar que “a origem do povoamento da ilha se perde na névoa do passado. Por isso, cada qual o imagina um tanto ao jeito das suas simpatias”.
Em vez de o imaginarmos, pouco depois de desembarcarmos do ferry provindo de São Filipe, Djar Fogo, dedicamo-nos a cirandar entre os mil oitocentos e poucos moradores da cidade, o mais intrometidos possível nas suas vidas contemporâneas.
O Verde-Húmido que Granjeou à Principal Povoação o Título de Nova Sintra
A meio do século XIX, a Brava – ainda chamada de ilha de São João – era já, de longe, a ilha mais cultivada de Cabo Verde – contraste absoluto das áridas São Vicente e Sal repleta de milho, feijão, batata-doce, banana, abóbora, mandioca e até de vinha que dava para “150 pipas de mau vinho.”
Trabalhavam a terra povoadores vindos da metrópole e, a determinada altura, escravos levados para a Brava, eventualmente da Ribeira Grande de Santiago, incumbidos de os servir.
O seu cenário de minifúndios semi-tropicais, das papaeiras e dragoeiros que despontavam das plantações e povoações, feitas de casas caiadas com molduras de cor, tudo irrigado pela névoa alísia residente que até no pino do Verão mantém a temperatura máxima abaixo dos 25º, granjeou-lhe o epíteto de “Cintra de Cabo Verde”.
Contado mais algum tempo, este título oficioso deu azo ao nome oficial da, não tarda, vila solitária da ilha: Nova Sintra.
A vila saloia portuguesa, insinuar-se-ia, sob as duas grafias, onde quer que fôssemos, até em forma de mistério engarrafado.
Buscávamos uma mercearia que nos abastecesse de uns poucos mantimentos de reserva.
Mulata a Brava e a Cerveja que Pensávamos Extinta
Ao passarmos os olhos pelas prateleiras, damos com os rótulos familiares de uma das bebidas que, enquanto durou, mais apreciámos: a Cintra “Mulata”, uma cerveja bronzeada e cremosa, de sabor bem balanceado entre o doce e o amargo, lançada, em 2002, pela empresa do ex-Presidente do Sporting Clube de Portugal José de Souza Cintra e que terá durado, em Portugal, apenas até à falência de 2006.
Não víamos nem provávamos a adorada “Mulata” desde que sumiu do mercado. Pensávamos, aliás, que se tinha extinguido. E, no entanto, ali estava ela, diante de nós, uma Fénix de maltes cuidadosamente seleccionados renascida das cinzas.
Perguntamos ao dono como se explicava que ainda tinha à venda todas aquelas garrafas. “Opá… eu não estou a par do que aconteceu por lá, mas estas nem sequer são muito antigas. Vieram cá fornecê-las faz um mês, ou coisa assim.”
À falta de melhor esclarecimento, concluímos que algum acordo pós-falência teria viabilizado a produção e exportação das cervejas Cintra para Cabo Verde, estimávamos que também para o Brasil, eventualmente outras paragens.
Por via das dúvidas, compramos algumas garrafas, decididos a matar saudades.
Nos bares e esplanadas da Praça Eugénio Tavares, a praça central de Nova Sintra, as “Strella” – mais a branca que a preta ou crioula – continuavam a dominar as preferências, desafiadas pela inevitável concorrente Super Bock.
Constatámo-lo quando procurávamos uma cachupa que nos restabelecesse energias.
Em Busca de Cachupa na Praça Eugénio Tavares
Numa demanda esfomeada pelos quatro ou cinco restaurantes e bares em volta do coreto bicudo, o âmago da povoação, sobre a calçada portuguesa que o reveste num padrão ondulante, não fossem os bravenses esquecerem-se do Atlântico que os encerra e embala.
Por fim, damos com um estabelecimento pronto a servir-nos o pitéu cabo-verdiano, mesmo que na sua versão pobre, não a rica, repleta de vegetais que preferíamos.
Saboreamo-la e a Strellas Crioulas, substitutas condignas da enigmática Cintra Mulata, com os olhos postos na TV e no canal Afromusic, em que, ao som da nova música cabo-verdiana e de outras partes de África, sucessivas mulatas, morenas e mais escuras voluptuosas exibiam e abanavam os rabos, entregues aos kuduros e twerks que estimulam as gerações mais jovens do continente.
Regressamos à praça que homenageia a figura histórica proeminente da cidade, Nho Eugénio, o seu grande político, jornalista, poeta, dramaturgo, músico, compositor de mornas e da alma cabo-verdiana, entre outros ofícios.
Eugénio Tavares o Filho Mulato e Pródigo da Brava
Também Eugénio Tavares era mulato, filho de um pai escalabitano e de uma mãe foguense.
Além do baptismo da praça, Nova Sintra louva-o com uma estátua de bronze em que, Eugénio, sentado, de cabelo que nos parece brilhantinado e longo bigode undante, segura uma das obras que o tornou conceituado.
Suamos a bom suar sobre a Praça Eugénio Tavares. Não devido aos movimentos lascivos na TV. Mais por causa do picante em excesso com que condimentámos a cachupa.
Junto ao coreto, uma inesperada nora quebrava o ímpeto das ondas calçadas. Devolvia-nos e quem por ali passasse à abundância de água doce da ilha e à sua badalada fertilidade.
O Dia 14 de Fevereiro Inusitado, da Brava
Em pleno Dia dos Namorados, Don Juans adolescentes e oportunistas aproveitavam a dos canteiros do jardim.
Disputavam as flores frescas que restavam, com que planeavam encantar as suas donzelas.
Na escadaria do Bar Morabeza, um deles, desembaraçado a dobrar, via-se já prendado com beijos de batom cor-de-rosa.
Se os namoricos são universais, sabíamos bem que o abano do kuduro provinha de Angola e o do twerk, tinha ganho embalo nos Estados Unidos, sobretudo nos canais de maior alcance mundial como a MTV e, claro está, o fulminante Trace.
As inúmeras adulações e tentativas de emulação dos videoclipes norte-americanos que constatávamos no Afromusic, tinham, todavia, uma razão adicional.
Desde os finais do século XVIII, quando uma seca devastadora afligiu a Brava, que o principal destino da enorme diáspora de Cabo Verde (vivem mais cabo-verdianos no estrangeiro que no seu país) têm sido os Estados Unidos.
Ora, se os cabo-verdianos há muito sustentam Cabo Verde com suas frequentes e generosas remessas, também remetem para o arquipélago as influências e modas culturais contagiosas dos E.U.A.
Os Ensaios para o Carnaval Iminente
Caminhamos Rua da Cultura acima. Sem que os esperássemos, ribombam tambores.
De qualquer Dia dos Namorados, vislumbra-se quase sempre o eminente Carnaval, ansiado em Nova Sintra como a festa da brava que é suposto ser.
De acordo, tinham lugar ensaios de uma parada animada por músicos e figurantes com meias cascas de coco ilustradas a fazer de máscara.
Decidimos acompanhar o esboço de desfile.
Quando o fazemos, perguntamos a dois tocadores de tambor em descanso se os podíamos fotografar.
A um deles, mais vaidoso, enchem-se os olhos de brilho. Ajustam-se os dois a uma porta azulada que concordamos que serviria de fundo.
Compõem poses das estrelas que os fotógrafos forasteiros tinham escolhido. Sobre a porta, acima das suas cabeças inchadas de orgulho, reparamos numa matrícula ianque que algum emigrante ali mantinha afixada.
Era de New Hampshire, do ano de 1998. Fechava-a, em jeito de rodapé rodoviário, o mote “Live Free or Die”.
A Fé nas Igrejas dos Bravenses
Em Nova Sintra, a livre profusão de igrejas e fés tem o seu quê de milagrosa.
A Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde. Conta com meros 67km2 a que quase poderíamos chamar “redondos” de tão perfeita que é a circunferência em que a moldou o vulcanismo destas partes do Atlântico.
A capital ocupa apenas uns poucos e abriga menos de dois mil habitantes. Mesmo assim, disputam a sua crença a igreja de São Baptista, católica, a anciã, erguida em 1880.
A Igreja do Nazareno, Protestante. Uma Nova Apostólica. Uma outra Adventista. Uma Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
E, por fim, um Salão do Reino das Testemunhas de Jeová.
Este refúgio na fé dos bravenses já vem de há muito.
De tempos a tempos, a ilha do Fogo vizinha e o seu vulcão monstro homónimo assustam e apoquentam a Brava e, em especial a mais próxima Nova Sintra.
Brava: uma Ilha há muito à Mercê dos Vulcões
Quando não é o Fogo é a própria actividade vulcânica da Brava que faz das suas.
Ficou para a história o susto de 1840, quando o Monte da Cruz do Frade entrou em erupção, com estrondos que ensurdeciam os ilhéus, saídos de uma fornalha que, mesmo amostra da gigantesca no cume do Fogo, todos receavam que pudesse explodir sem aviso.
Seja lenda ou realidade, só a ascensão destemida, ao cimo, de um padre de cruz em riste assegurou o exorcismo do demónio que se havia apoderado do vulcão e a tranquilização da população aflita.
Pelo menos, por algum tempo.
Nem a Brava nem, muito menos, Nova Sintra alguma vez estarão realmente a salvo.
Os cientistas chegaram à conclusão de a ilha Brava é um enorme vulcão.
E que o Fundo Grande em que se instalou a capital, uma espécie de caldeira com cerca de 600 metros de diâmetro, é a sua cratera semi-soterrada.
Daí, gerou-se e popularizou-se a teoria apocalíptica de que a Brava tem a forma de um cálice com uma haste delgada que se poderá quebrar em qualquer altura e causar o afundamento súbito da ilha no Atlântico.
Na Brava e em Nova Sintra, qualquer indício mais brusco de actividade vulcânica faz os bravenses recuar à inquietude sofrida pelos seus antepassados e rogarem, em sussurro, pela clemência de Deus, numa qualquer das suas casas.
Todos sabem que quando o Pai olha pelos bravenses, os mantém aconchegados sob a névoa divinal da ilha.