Andamos pelo centro de Santa Cruz de La Palma.
Termina uma missa a decorrer no interior da igreja de El Salvador e os crentes regressam à luz ténue do dia cinzento e a um saudável convívio secular.
Francis – o guia que temos durante alguns percursos pela ilha confirma-nos a religiosidade dos palmeros e também o seu amor pela boa-vida, de preferência ao ar livre: “Nós cá em La Palma somos provavelmente dos europeus mais latino-americanos que existem.
Temos o segundo melhor tabaco do mundo, a seguir ao de Cuba, claro. Também somos grandes adeptos de fumar “puros” e da salsa, da rumba e de outros ritmos caribenhos.
Em La Palma não existem discotecas. O que há é música de rua e, na maior parte das vezes, ao vivo.”
Para quem visita a mais ocidental das ilhas Canárias pela primeira vez, torna-se difícil de dizer quais dos dois aspectos ocupa mais a mente dos moradores.
Seja como for, os palmeros têm boas razões para se entregarem à fé de alma e coração.
O Vulcanismo Potencialmente Arrasador da ilha de La Palma
Segundo uma parte considerável da comunidade científica, vivem paredes meias com uma gigantesca bomba-relógio de que ninguém decifrou ainda o prazo de detonação.
O dia seguinte amanhece ainda mais plúmbeo mas a chuva acaba por não nos perturbar o trajecto até ao Parque Nacional La Caldera de Taburiente.
Atravessamos um túnel escavado na montanha que Francis nos afiança que os nativos tratam por del Tiempo: “É que é quando entramos do lado de lá e o tempo está mau, é quase garantido que, no oposto, vai estar bom.”
Subimos gradualmente a encosta até atingirmos uma secção coberta de pinheiros viçosos, a que a luz solar satura de um verde-amarelado excêntrico.
Dali, avistamos os contornos supremos da caldeira do grande vulcão de La Palma, percorridos por uma caravana de nuvens que os ventos predominantes conseguem forçar para dentro da cratera.
Tendo em conta a beleza extasiante e a paz natural que se vive, interrogamo-nos como terão reagido os palmeros ao inesperado alarmismo mediático e globalizado em volta da sua ilha-mãe.
O Grande Salto das Esperadas Erupções a um Tsunami Apocalíptico
Após o tsunami do sudoeste asiático de 25 de Dezembro de 2004, os media apressaram-se a encontrar possíveis sucessores.
A BBC, em particular, divulgou o documentário “Megatsunami, Onda da Destruição” assente na teoria a que chegaram Stephen N. Ward e Simon Day.
O duo desenvolveu uma simulação computorizada dos efeitos de um eventual desabamento da vertente oeste do vulcão Cumbre Vieja (1949 m) sobre o oceano Atlântico, despoletado por uma grande erupção.
A simulação estimava que a derrocada geraria enorme ondas.
Poderiam ter, na origem, 900 metros de altura.
Após três horas, atingiriam a Península Ibérica – a norte – com cerca de 5 metros mas, depois de mais de seis horas de travessia, ainda chegariam às ilhas das Caraíbas, várias delas tão ou mais vulcânicas.
São os casos de Montserrat, do vulcão Soufrière Hills. Da Martinica e o seu Pelée, de Guadalupe e de Saint Lucia – para mencionar uns poucos exemplos.
Atingiriam ainda os litorais opostos da América do Norte e do Sul, com entre 10 a 15 metros onde provocariam uma destruição avassaladora.
Desde 2005, os media aproveitaram ao máximo o potencial de angariação de audiência e transformaram este estudo científico numa mega-erupção de sensacionalismo.
Mais e mais canais, revistas e websites usaram a teoria da dupla para desenvolver documentários e artigos.
Quase sempre apostados na histeria fácil, com os norte-americanos na liderança deste carnaval, divulgadores de imagens hollywoodescas de ondas gigantes a engolirem a inevitável ilha de Manhattan.
O Vulcão Bomba-Relógio Cumbre Vieja e as suas Várias Crateras
O Cumbre Vieja manteve-se impávido e sereno. Em 19 de Setembro de 2021, voltou a entrar em erupção e a 10 de Outubro (data de revisão deste texto) assim se mantinha.
Da altitudes intermédias porque andávamos, ascendemos em direcção a Roque de Los Muchachos, a 2426 metros.
Ali, estamos sobre um dos pontos mais elevados das Canárias e de toda a Macaronésia que, por essa razão, acolheu um dos melhores observatórios espaciais do hemisfério norte, a par com o do monte Mauna Kea, vizinho do vulcão Kilauea que gera a maior parte dos rios de lava da Big Island.
Um manto de nuvens abaixo impede-nos de avistar os cenários de La Palma, Tenerife e o vulcão supremo El Teide.
Sem alternativas, avançamos para norte e aproximamo-nos da costa ocidental que percorremos em quase toda a extensão.
Por povoações pitorescas mas também através de campos de lava até nos aproximarmos à exacta área de La Palma que pode ceder a qualquer altura e que suscitou toda a comoção.
Passamos o casario colorido de Los Canários e Fuencaliente.
Pouco depois, estamos a ascender a uma nova cratera, desta feita a do vulcão San António, uma das várias que surgem sobre a longa encosta do Cumbre Vieja.
O cone é negro, coberto de uma terra de lava sobreposta por velhas erupções.
A contrastar, brotam do fundo da sua cratera pequenos pinheiros destemidos.
Por si só, o cenário é digno de espanto mas a coisa não fica por aí.
Uma Instalação de Saudosismo Mobiliário junto ao Cume do San António
Caminhamos ao longo de um trilho estreito que dá a volta à cratera e damos com uma qualquer instalação de arte que alguém provisoriamente deixara exposta sobre o solo.
Um centro de sala da década de 50 – ou, vá lá que seja, 60 – destacava-se da negritude dominante.
Compunham-no um sofá, um abajour, um tapete, um velho rádio de madeira e, sobre este, uma TV do mesmo material e da mesma época.
O mistério adensa-se, como a névoa que paira, à distância, sobre o mar, em caso de derrocada, o receptador da vasta encosta abaixo de nós e o culpado do Apocalipse atlântico que se seguiria.
No passado, outros deslizamentos de terras poderiam ter gerado uma enorme destruição não fosse a área em que se deram ser praticamente desabitada.
Em 9 de Julho de 1958, um dos frequentes sismos de grande intensidade do Alasca provocou o deslizamento de uma encosta da baía de Lituya.
Os 30 milhões de km3 de terra desprendidos criaram uma onda que atingiu os 500 metros de altura.
O Receado Colapso da Costa Sul de La Palma e o Polémico e Temido Cataclismo
Ora, a suceder-se, o desprendimento do Cumbre Vieja soltaria 500 milhões de km3.
A onda provocada iria dispersar-se por uma área incomparavelmente mais ampla que a da baía alasquense.
Vemos, para sul, o Teneguia, outro sub-vulcão do Cumbre Vieja, chamemos-lhe assim – o último não submarino de La Palma a entrar em erupção, em 1971, com uma das actividades vulcânicas mais ténues e curtas de que houve registo nas Canárias.
Nos últimos tempos, tem sido o vizinho vulcão El Hierro a assumir o protagonismo. Desde meio de 2011, sofreu quase 10.000 tremores de terra causados por actividade do magma na base da ilha.
Alguns têm-se aproximado dos 4.5 na escala de Richter, valores que já forçaram as autoridades a proibir a pesca em redor e até a desviar o trânsito de partes mais sensíveis de El Hierro.
Os media não perderam tempo.
Nos últimos meses, voltaram a alertar para o risco eminente de colapso do Cumbre Vieja e de tsunami, provocado por uma entrada em erupção por alastramento da actividade intensa de um – ou vários – dos vulcões de El Hierro, a apenas 128 km de distância.
Dali, do topo do San António, a única coisa que vimos precipitar-se no mar foi o sol quase escarlate que o Atlântico engoliu sem qualquer oscilação.
Naquele momento, tínhamos mais com que nos preocupar que a mera destruição da civilização que conhecíamos. A noite caía e o frio começava a incomodarmos.
Por fim, na segunda quinzena de Setembro de 2021, o Cumbre Vieja entrou em erupção e, até à data, gerou um fluxo destruidor de lava que arrasou centenas de casas.
A Natureza é caprichosa. Esperamos para ver.